Paul Celan: do ser ao outro

Reprodução: Revista Purgante

O poema vai na direção do outro. Ele espera juntar-se entregue e desocupado. A obra solitária do poeta escarificando a matéria preciosa das palavras é o ato de expulsar um face a face. O poema torna-se diálogo – ele é frequentemente diálogo perdido,… reencontra, caminhos de uma voz para um tu vigilante.

Emmanuel Levinas*; Tradução: Estevan de Negreiros Ketzer**

Emmanuel Levinas

Ex-professor da Sorbonne

Para Paul Ricoeur

alles ist weniger, als es ist alles ist meh[1]

Paul Celan

Para o outro

Eu não vejo diferença, escreve Paul Celan à Hans Bender, entre um aperto de mão e um poema. Eis então o poema linguagem concluído, trazido ao nível de uma interjeição, de uma expressão também pouco articulada num piscar de olhos, qual num signo dado ao próximo! Signo de quê? De vida? De benevolência? De cumplicidade? Ou signo de nada ou de cumplicidade para nada: dizer sem dito. Ou signo que é seu próprio significado: o sujeito dá signo desta doação de signo. Comunicação elementar e sem revelação, balbuciante infância do discurso, bem desajeitada inserção na famosa língua que fala, no famoso die Sprache spricht, entrada de mendigo na mansão do ser

Aqui se encontra Paul Celan – que Heidegger sabia, no entanto, celebrar durante o curso de sua estadia na Alemanha[2] – nos disse o pouco de compreensão que ele tem para uma certa língua que instaura o mundo no ser, significante como o esplendor da physis dos pré-socráticos: já que Celan compara uma língua a um caminho tão belo na montanha onde sobre a flora à esquerda do matagal, flora selvagem, flora como em lugar nenhum, e sobre a direita erguer-se campânula rapôncio, e onde Dianthus Superbus, o cravo esplêndido, ergue-se não longe de lá… a língua passa por ti e passa por mim – pois, eu o pergunto, para quem portanto é concedida, a terra, esta não é para ti, digo, que ela é concedida, e passa por mim – uma língua, de sempre, sem Eu e sem Ti, nada que Ele, nada que Isso, compreende, Ela simplesmente, é tudo[3]. Língua do neutro.  

Ele se encontra portanto, para Celan, que o poema se situa precisamente a este nível pré-sintático e pré-lógico (como ele é, certo, de rigor hoje!), mas também pré-revelado: ao momento do puro toque, do puro contato, do choque, do serramento, que é, talvez, uma maneira de dar até a mão que oferece. Linguagem da proximidade para a proximidade, mais antiga que aquela da verdade do ser – que provavelmente ele carrega e suporta –, a primeira das linguagens, resposta precedendo a questão, a responsabilidade para o próximo, tornado possível, pelo seu para o outro toda a maravilha do dar.

O poema vai de uma vez só ao antes deste “outro” que ele supõe ao mesmo estar reunido, expelido – solto – vago, talvez… Autor desta preposição do Meridiano[4] se edifica de seu ato poético. Texto elíptico, alusivo, interrompendo-se sem cessar para deixar passar nas interrupções sua outra voz, como se dois ou mais discursos se sobrepusessem, com uma estranha coerência que não é aquela de um diálogo, mas eclodem segundo um contraponto que constitui – apesar de sua unidade melódica imediata – o tecido de seus poemas. Mas as fórmulas vibrantes do Meridiano demandam interpretação.

O poema vai na direção do outro. Ele espera juntar-se entregue e desocupado. A obra solitária do poeta escarificando a matéria preciosa das palavras[5] é o ato de expulsar um face a face. O poema torna-se diálogo – ele é frequentemente diálogo perdido[6],… reencontra, caminhos de uma voz para um tu vigilante[7] – as categorias de Buber! Seriam elas preferidas tanto de genial exegese descendente soberanamente sobre Hölderlin, Trakl e Rilke da misteriosa Schwarzwald para mostrar a poesia praticando o mundo e o lugar entre terra e céu? Seriam elas preferidas ao peso das estruturas no espaço intersideral da Objetividade na qual, em Paris, os poetas sentem toda a hesitação, a boa ou má chance de se pesar, mas pertencendo a eles, de todo seu ser à objetividade de suas estruturas? Poéticas da vanguarda onde o poeta não tem o destino pessoal. Buber a preferia sem sombra de dúvida. O pessoal será a poesia do poema: … o poema fala! Da data que é a sua… da circunstância única que, propriamente, o concerne[8]. O pessoal: de mim ao outro. Mas a meditação sem fôlego de Paul Celan – ousaria citar Malebranche, depois um texto de Walter Benjamin sobre Kafka e Pascal, depois Léon Chestov – não obedece a nenhuma norma. Ele deve escutar de mais perto: o poema que falava de mim, fala disso que concerne ao outro: um todo outro: já ele fala com um outro, com um outro que estaria mesmo próximo, que estaria todo próximo… ele vai de uma só vez diante desse “outro”[9], já estamos longe – fora, da claridade da utopia[10]… A poesia nos precede. Queima nossas etapas[11].

A transcendência

O movimento assim descrito vai do lugar para o não-lugar, daqui para a utopia. Que haja no ensaio de Celan sobre o poema uma tentativa de pensar a transcendência é evidente[12]. A poesia – : Conversão em infinito da mortalidade pura e da letra morta[13].  O paradoxo não é somente na aventura infinita de uma letra morta; ele é na antinomia onde se desenvolve o conceito mesmo de transcendência – salto por cima o abismo aberto no ser a quem a identidade mesma do saltador inflige um desmentido. Não deve morrer para transcender contra a natureza e mesmo contra o ser? Ou é a vez de saltar e não saltar? A menos que o poema permita ao eu de se separar de si mesmo. Em termos de Celan: descobrir um lugar onde a pessoa, no choque do eu – como estrangeiro a ela – se desobstrui[14]. A menos que o poema que vá ao outro e volte, em face dele – difere de seu êxtase, se agrava no entretempo – em termos de Celan, mas tão ambíguo, persiste aos confins de si mesmo. Ao menos que o poema, para durar, adie sua perspicácia – em termos de Celan… revogue-se… adie-se sem pausa, afim de durar de seu já-mais ao seu sempre-ainda. Mas para este sempre-ainda, o poeta não conserva na passagem ao outro sua supremacia orgulhosa de criador. Em termos de Celan: o poeta fala no ângulo de inclinação de sua existência, no ângulo de inclinação onde a criatura se enuncia… Que o vestígio (quem vestigia o poema) se revela a ele dedicado[15]. Singularmente de-substancializado do Eu! Se faz todo inteiro signo, é talvez isso[16]. Trégua de gloriosos alaridos do criador! Que deixamos tranquilo com o poien (ação) e outras frivolidades – escreve Celan à Hans Bender. Signo do fato ao outro, aperto de mão, dizer sem dito, importantes por sua inclinação, por sua interpelação mais que por sua mensagem; importantes por sua atenção! Atenção como pura oração da alma em que fala Malebranche com tanto de imprevista sonoridade debaixo da pena de Walter Benjamin: receptível ao extremo, mas extrema doação; atenção – modo de consciência sem distração, isto é, sem poder de evasão por obscuros subterrâneos; plano luminoso projetado não para ver as ideais, mas para interditar a evasão; sentido primeiro da insônia que é a consciência – linearidade da responsabilidade ante todo aparecer de formas, de imagens, de coisas.

As coisas aparecerão certas – o dito deste dizer poético; mas no movimento que as portam ao outro, como figuras deste movimento. Toda coisa, todo ser, como ele caminha para o outro, será figura, para o poema, deste outro… autor do eu que o interpela e a ele dá nome, ela pode se juntar. O movimento centrifugo para o outro seria ele o eixo móvel do ser? Ou sua ruptura? Ou seu sentido? O fato de falar ao outro – o poema – precede toda tematização; estão nele qualidades que se configuram em coisas: mas o poema deixa assim real a alteridade que a imaginação pura lhe arranca, ele concede ao outro uma parcela de sua verdade: o tempo do outro[17].  

Saída em direção ao outro homem é uma saída? Um passo fora do humano, leva-se a uma esfera dirigida para o humano, mas excêntrico[18].  Como se a humanidade fosse um gênero admitido ao interior de seu espaço lógico – de sua extensão – uma ruptura absoluta, como se andando para o outro homem transcendêssemos o humano em direção a utopia. E como se a utopia fosse não o sonho e o prêmio de uma maldita errância mas a clareira onde o homem se prova: … claridade da utopia… E o homem? E a criatura? – Em tal clareza[19].

Na claridade da utopia…

Este exterior insólito não é uma outra paisagem. Além do simplesmente estranho da arte e da abertura sobre o ser do ente[20] o poema faz um passo a mais; o estranho é estrangeiro ou o próximo. Nada é mais estranho nem mais estrangeiro que o outro homem e é na clareza da utopia que se mostra o homem. Fora de todo enraizamento e de toda domiciliação; apátrida como autêntico!

Mas a surpresa desta aventura onde a palavra se dedicou ao outro no não-lugar é o retorno.  Não a partir da resposta do interpelado, mas pela circularidade deste movimento sem retorno, desta trajetória perfeita, deste meridiano que, em sua finalidade sem fim, descreve o poema. Como se andando em voltas do outro, eu me juntaria e me implantaria em uma terra, doravante natal, descarregada de todo o peso de minha identidade. Terra natal que não deve nada ao enraizamento, nada à primeira ocupação; terra natal que não deve nada à de nascença. Terra natal ou terra prometida? Ela vomita seus habitantes quando eles esquecem o curso circular que lhes devolveram familiares desta terra, e sua errância que não seria para a desorientação, que seria des-paganização? Mas a habitação justificada pelo movimento versa o outro, é da essência judaica.

Celan não se refere ao judaísmo como a um particularismo pitoresco ou a um folclore familiar. Sem dúvida a paixão de Israel sob Hitler – tema das vinte páginas de Strette em Strette, lamento dos lamentos, admiravelmente traduzido por Jean Daive – tinha ela, aos olhos do poeta, uma significação para a humanidade abreviada, cujo judaísmo é uma possibilidade – extrema, ruptura da ingenuidade do arauto, do mensageiro ou do pastor da letra. Decência do mundo que oferece não uma estadia, mas para passar a noite, das pedras contra as quais bate o bastão do errante repercutindo-se em linguagem mineral. Insone no leito do ser, impossibilidade de se enrolar para se esquecer. Expulsão fora da mundanidade do mundo, nudidade daquele que empresta tudo que ele possui; insensibilidade à natureza… pois o judeu, tu o dizes bem, que lhe possui que lhe pertence verdadeiramente, que não está pronto, emprestado, jamais restituído… Aqui estamos de novo na Montanha entre o matagal e a campânula rapôncio. Dois judeus são aqui detidos ou um só judeu tragicamente, dois com ele mesmo. Mas a eles, primos nascidos de alemães, ele falta… dos olhos ou, mais exatamente, a seus olhos um véu recobre o aparecer de toda a imagem, pois o judeu e a natureza, isso sempre são dois distintos, e mesmo hoje mesmo aqui… pobre matagal, pobre campânula rapôncio! … Pobres de vocês, vocês não são começo, vocês não estão em flor, e julho não é julho. E estas montanhas em sua imponente solidez? O que a imponente montanha na qual Hegel dizia é assim com submissão e liberdade? Celan escreve: … a terra é dobrada do topo, é dobrada uma vez e duas vezes e três vezes, e aberta ao meio, e ao meio há água, e a água é verde, e o verde é branco, e o branco vem do mais alto ainda, vem dos glaciares[21]

Acima e além, deste silêncio e a insignificância de um dobramento do terreno dito montanha, e para interromper o ruído do pau golpeando a pedra e a repercussão deste ruído pelos rochedos, é necessário – contra a língua em uso aqui – uma verdadeira palavra.

Para Celan também – em um mundo que Mallarmé de repente não pudera supor – o poema é o ato espiritual por excelência. Ato, às vezes, inevitável e impossível à causa de um poema absoluto que não existe. O poema absoluto não diz do ser, ele não é uma variação sobre o dichterisch wohnet der Mensch auf diser Erde**** de Hölderlin. Ele diz a defecção de toda a dimensão, ele vai versar a utopia, sobre o impossível caminho do impossível[22]. Mais e menos que o ser. O poema absoluto – não, ele não existe, ele não pode existir[23]. Celan evocaria-o a identidade do irrealizável? Palavra gratuita e fácil que é difícil de lhe emprestar. Ele não sugere uma modalidade outra que aquelas que se alojam entre os limites do ser e do não ser? Não sugere a poesia ela mesma como uma modalidade sem precedentes do outro modo de ser? O Meridiano – à semelhança da palavra – imaterial, mas terrestre[24]. Ter de partir de todo poema sem presunção… esta interrogação inicial, esta presunção sem precedentes[25]. O iniludível: a interrupção da ordem lúdica do belo e do jogo dos conceitos e do jogo do mundo; a interrogação do Outro, busca do Outro. Busca se dedicando do poema ao outro: um canto monta ao dar-se, no um para o outro, na significância mesma da significação. Significação mais antiga que a ontologia e o pensado do ser e que supõe saber e desejar, filosofia e libido.

* Emmanuel Levinas (1906-1995) era filósofo de origem lituana erradicado na França. Foi professor e diretor da École normale israélite orientale (ENIO). Ex-professor das universidades de Poitiers, Paris-Nanterre (1967) e da Sorbonne (1973).

** Do original “Paul Celan: de l’être à l’autre” . Paris: Fata Morgana, 2002. Apareceu originalmente como capítulo no livro Noms Propres, de 1974. A tradução foi realizada por Estevan de Negreiros Ketzer, Doutor em Letras pela PUCRS. Email: [email protected]; contou com as revisões de Grégori Elias Laitano, Doutor em Filosofia pela PUCRS. Email: [email protected].


[1] “tudo é menos quando mais nada é” (N. do T.).

[2] Em que cada um alteraria profundamente, depois de um testemunho incontestável que recebeu em seus próprios termos.

[3] Entretien dans La montagne. Fata Morgana, 1996, tradução de John E. Jackson e André du Bouchet, p. 13 et pp. 16-17.

[4] Le méridien, Fata Morgana, 1994, tradução de André Du Bouchet, p. 30.

[5] Affaire de mains, escrito de Celan à Hans Bender.

[6] Le méridien, p. 34.

[7] Ibid., p. 40.

[8] Ibid., p. 30.

[9] Ibid., pp. 30-31.

[10] Ibid., pp. 35 et 42.

[11] Ibid.

[12] Transcendência pela poesia – é sério? É, contudo, um traço distintivo do espírito ou do racionalismo moderno: ao lado da matematização dos fatos, pela ascensão das formas, – o esquematismo, ao sentido kantiano do termo, dos inteligíveis pela descida na sensibilidade. Controlado no concreto, impuro, os conceitos formais e puros ressoam (ou raciocinam) de outro modo e tomam novas significações. Expor as categorias do entendimento no tempo seria certo limitar os direitos da razão, mas também descobrir uma física ao fundo da lógica matemática: a ideia abstrata da substância é feita princípio de permanência da massa e a ideia vazia da comunidade, princípio da interação recíproca. – Em Hegel, as figuras da dialética, não se desenham de uma maneira vigorosa no conteúdo da história da humanidade? – A fenomenologia husserliana não é uma maneira de esquematizar o real nos horizontes insuspeitos da subjetividade sensível? Tudo como a lógica formal é referida à concreção da subjetividade, do mundo da percepção e da história, em sua objetividade, se acusa de abstração – se não do formalismo – e se faz fio condutor para a descoberta dos horizontes de sentido onde ele vai significar a verdadeira significação. Lendo a recente, muito curiosa e bela obra sobre a Psicose (Nauwelaerts éditeur, Louvain/Paris) de Alphonse de Waelhens para quem nem Husserl nem Heidegger tiveram segredos, tivemos a impressão que o freudismo apenas restitui o sensível fenomenológico, que seria ainda lógico ou puro em suas imagens, suas oposições, suas convergências e suas iterações, a uma espécie de sensibilidade última, onde a diferença dos sexos notadamente determina as possibilidades de um esquematismo no qual as significações sensíveis seriam ainda também abstratas como a ideia de causa para fora da sucessão temporal, diante da Crítica da Razão Pura. Todo um drama se move, portanto nas combinações da matemática e o jogo de conceitos puros da metafísica. A crítica da razão pura continua!

[13] Le méridien, p. 39.

[14] Ibid., p. 26.

[15] Ibid,. pp. 32-33.

[16] Simone Weil pode dizer: Pai, arranques de mim este corpo e esta alma para fazer as coisas a ti e não deixar subsistir de mim eternamente que ele arranque a si próprio.

[17] Le méridien, p. 35.

[18] Ibid., pp. 19-20.

[19] Ibid., p. 37.

[20] Doch Kunst ist Erfahrung des Seins des Seinden (Mas a arte é a experiência do ser dos entes), Heidegger, Einführung in die Metaphysik, p. 101.

[21] Entretien dans la montagne, p. 16.

**** O ser humano mora poeticamente sobre essa terra (N. do T.)

[22] Le méridien, p. 43.

[23] Ibid., p. 36.

[24] Ibid., p. 43.

[25] Ibid., p. 36.

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