O Potencial Poético da Cabala

Elias - Bíblia

Giuseppe Angeli – Elias se eleva em uma carruagem de fogo (1740), National Gallery of Art, Washington, DC, USA.

A descoberta do imenso potencial poético da Cabala, na sua linguagem particular não menos do que nos poemas que chegaram até nós em grande quantidade – aqui constitui um campo quase inexplorado e certamente muito promissor. […] aqueles que tiverem a sorte de fazer essas descobertas que ainda estão por vir encontrarão tesouros de uma riqueza incrível.

Gershom Scholem[i]

Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer [ii]

Discurso proferido por ocasião do recebimento do Prêmio Bialik de 1977.

Tenho o grande prazer de agradecer a todos aqueles que me deram a grande honra de me conceder o Prêmio Bialik em reconhecimento ao meu trabalho no campo dos estudos judaicos ou, para ser mais preciso, meus esforços para entender a história e o conteúdo do esoterismo e misticismo judaico.

Também estou satisfeito que o poeta Ouri-Tsvi Greenberg e eu estejamos participando da mesma solenidade. Sempre estivemos em extremos opostos do campo Sionista. Mas apesar das nossas profundas diferenças, ambos pertencemos à família daqueles que, como diriam os nossos pais, “têm apenas uma profissão”. Nós nos apegamos e ainda nos esforçamos para alcançar o objetivo único que cada um de nós estabeleceu para si mesmo.

Minha alegria por ser honrado com esta distinção é dupla, porque o prêmio leva o nome de Hayyim-Nahman Bialik, o qual tive o privilégio de conhecer durante vários anos e que me ajudou, marcando para mim simpatia, no início da minha pesquisa sobre Cabala. Eu mantenho a lembrança das minhas muitas horas de conversa com ele, bem como das palestras que ele organizou em sua casa ou nas reuniões de sábado à tarde às quais eu frequentava sempre que vinha à Tel Aviv durante sua vida. Como esquecer os momentos de estímulo intelectual que ele me inspirou?

Conheci Bialik logo após terminar meus estudos, em Berlim e Bad Homburg, antes de emigrar para a Palestina, quando Agnon me apresentou a ele: ele achou interessante que um jovem judeu alemão pretendia pesquisar este canto negligenciado e aparentemente obscuro o que era a Cabala e ele me deu boa acolhida. Ele estava bastante curioso para saber o que me levou a descer até aquele jardim fechado e se perguntou se eu conseguiria encontrar a chave para abri-lo.

Quando nos conhecemos na Palestina, depois de ele ter emigrado para lá, ele esbanjou também o seu encorajamento e foi um daqueles a quem devo a minha nomeação para a Universidade Hebraica desde o ano em que foi fundado. Isso me permitiu dedicar todo o meu tempo à Universidade em nome da qual estou aqui diante de vocês. Até hoje não consigo segurar minha emoção ao ler as cartas que trocamos no verão de 1925. A seu pedido, eu havia exibido diante dele o programa do meu trabalho de pesquisa. Ele respondeu com palavras entusiasmadas, expressando seu apoio, palavras essas que foram publicadas em sua correspondência.

Gostaria de contar uma anedota a esse respeito que não deixa de ser picante. Um dia Bialik veio a Jerusalém e eu o visitei. Eu publiquei um ensaio de pesquisa crítica sobre o Zohar[iii], sobre o conhecimento da Terra de Israel que é aparente nele, a fim de demonstrar que o autor deste livro nunca a tinha visto. Nós conversamos sobre isso e aquilo e de repente Bialik me disse fingindo estar bravo: “Infeliz homem, o que você fez aí? Que horrível!” – “Senhor Bialik, o que você quer dizer?” Eu retruquei. – “Há uma frase terrível no seu artigo!” – “O que eu escrevi?” Eu perguntei a ele. – “Você escreveu: “o cadáver de Shimon bar Yohai[iv]. Céus! Como você pode falar nesses termos de um homem justo?” Eu disse a ele com o espanto de alguém que não fala iídiche fluentemente: “Mas, Sr. Bialik, não está escrito na oração da manhã: ‘Tu que trazes de volta as almas nos cadáveres dos mortos’?” Bialik olhou para mim longamente e apenas me disse: “Yeke!”[v]

Esse erro de hebraico que cometi desencadeou outra reação vinte anos depois. Minha pesquisa sobre o movimento sabático nem sempre agradou aos ortodoxos e aprendi que o gosto amargo das polêmicas do passado havia sido preservado intacto. Eu ingenuamente acreditava que havia chegado o momento de conduzir uma pesquisa imparcial e não partidária sobre este grande assunto do sabatismo e seus seguidores. Foi um grande erro. Quando Expressei a opinião, após uma investigação completa, de que o grande mestre de pilpul[vi] Jonathan Eibeschütz havia de fato aderido secretamente à crença em Sabbatai Zevi[vii]. Toquei em um ponto muito sensível em muitos. Eles não se importam com a posição de um estudioso sobre a questão de se o Zohar foi realmente escrito por Shimon bar Yochai e seus discípulos, mas afirmar publicamente que um mestre de pilpul era um sabatiano seria ir longe demais. Se tal coisa fosse possível, então tudo é possível! Eles ficaram furiosos comigo e me acusaram de falta de consideração pelo judaísmo tradicional e abrigar disposições hostis em relação a ele. Nós começamos a procurar erros em meus escritos – assim, esta fórmula infeliz foi descoberta em Shimon bar Yochai, e lá vimos a prova impressionante da minha aversão ao judaísmo rabínico. Eis então o preço de uma expressão inoportuna!

Gostaria agora de dizer algumas palavras sobre minha área específica de conhecimento. Em minhas pesquisas sobre Cabala, minha atenção sempre esteve dividida entre dois polos. Eu reconheço isso, em minhas publicações essa tensão não aparece em toda a sua acuidade. O primeiro polo – vamos chamá-lo de polo manifesto – é o do meu interesse científico pela literatura esotérica judaica, ou seja, para textos místicos, tanto do ponto de vista histórico quanto especulativo-filosófico. Claro, levei muito tempo para descobrir completamente a extraordinária dinâmica que se manifesta no desenvolvimento deste movimento, com seus picos e seus abismos, e apreciar a poderosa dialética que ali se desenrolou a partir do momento histórico no qual, após a expulsão dos judeus da Espanha, o messianismo foi instilado e se tornou uma força ativa. Tratava-se de compreender os processos internos ligados às funções que a Cabala assumia como fator histórico na cena pública. Este imbróglio me fascinou e estimulou a todos meus poderes de imaginação histórica tanto quanto eu os tivesse comigo. E quando vi a abertura de perspectivas completamente novas, o campo de questões não resolvidas se expandia na mesma medida. Eu tentei formular respostas para algumas delas, mas são mais numerosas aquelas sobre as quais as controvérsias ainda estão fortes ou que ainda aguardam solução. Então, há muito trabalho a ser feito, tanto para meus alunos quanto para os alunos dos meus alunos, tanto por meus adversários que, graças a Deus, não falharam e não falharão. Porque o campo que eu arei era terra virgem e por mais fértil que tenha sido, ela promete produzir ainda muitos frutos.

Quanto ao segundo polo que me chamou a atenção, ele não foi destacado na mesma medida em minhas inúmeras publicações ao longo de meio século. E ainda assim não foi menos importante aos meus olhos, isto é, aos olhos de alguém que considerou e ainda considera o judaísmo como um organismo vivo que está em constante renovação e transformação, que por vezes assume uma forma, às vezes outra, uma entidade difícil de determinar de forma fixa e acordada. Eu quero falar do interesse que o universo imaginativo dos místicos, sejam eles visionários, despertou em mim desde a carruagem divina na época do Talmud, dos cabalistas que se sucederam ao longo das gerações, Sabbateanos ou Hasidim[viii]. Os padrões, imagens e símbolos que apareceram neste solo ou que o fertilizaram como chuvas abundantes pareciam-me cheias de significado poético e lírico, de igual importância ao significado especulativo que lhe é atribuído e que eu tinha a ambição de decifrar. A descoberta do imenso potencial poético da Cabala, na sua linguagem particular não menos do que nos poemas que chegaram até nós em grande quantidade – aqui constitui um campo quase inexplorado e certamente muito promissor. Hillel Zeitlin, este grande escritor que morreu na Shoah[ix], mas cuja memória nunca nos deixará, foi tanto quanto eu fui o primeiro a compreender este aspecto da literatura mística há setenta anos, em seus ensaios “Shekhinah” e “O Judeu Acima”. Posteriormente, Fishel Lachover continuou nesta direção em seus ensaios sobre Moses-Hayyim Luzzatto[x]. Mas um vasto campo está aberto aqui para aqueles que têm habilidades para especialistas em análise estética e literatura. A poesia cabalística de Luzzatto atraiu a atenção de alguns pesquisadores da nossa geração, mas ainda não desenvolveu os instrumentos necessários para acessar o plano lírico na linguagem dos cabalistas e hassídicos. Sem tais instrumentos, o assunto não pode ser abordado em profundidade. Eu não consegui alcançar ou satisfazer meu desejo secreto de alcançá-lo. Para concluir, gostaria de expressar um desejo: aqueles que tiverem a sorte de fazer essas descobertas que ainda estão por vir encontrarão tesouros de uma riqueza incrível.

Texto publicado no diário israelense Ha-Aretz, 21 de janeiro de 1977, sob o título: “Compreendendo os processos internos”. Tradução do hebraico por Cyril Aslanov.


[i] Professor da cátedra de Cabala na Universidade Hebraica de Jerusalém.

[ii] Email: [email protected]. Tradução do francês, encontrado no livro: KRIEGEL, Maurice (org.). L’Herne Scholem. Paris: Éditions Cahier de L’Herne, 2009, pp. 168-170.

[iii] Zohar — The Book of Splendor: Basic Readings from the Kabbalah. New York: Schocken Books, 1995. (N. do. T.)

[iv] Shimon bar Yochai foi discípulo de Rabi Akiva e suposto autor do Zohar escrito por seu filho Eliezer bem Shimon. Seu túmulo está no monte Meron. O feriado de Lag ba-Homer, 18 de Iyyar, é dedicado a ele.

[v] Yeke é um termo pejorativo usado para distinguir a mentalidade assimilada dos judeus alemães. Seu nome pode ser um acróstico de Yehudi Ketzer Havaná, cujo significado é judeu de pensamento limitado. Também, e mais acertadamente, Yeke pode derivar da palavra alemã Jacke, a qual significa jaqueta ou paletó, pois os judeus alemães não deixavam de usar paletós mesmo no clima quente da Palestina. Não menos importante é o significado em alemão do termo do baixo alemão Jeck, alto alemão Geck, que significa “tolo” (N. do T.).

[vi] Pilpul termo hebraico que significa “pimenta”. Sai ideia reside nas discussões rabínicas desempenhadas nos debates talmúdicos que “apimentavam” quando entravam em disputa entre dois estudantes candidatos a rabinos, levando em algumas circunstâncias a certa confusão argumentativa (N. do T.).

[vii] Sabbatai Zevi (1626 a 1676). Rabino e cabalista turco que foi líder de uma seita em Esmirna, na qual se intitulava o Messias (mashiach) (N. do T.).

[viii] O movimento dos hassidim tem sua origem nos ensinamos de Israel Baal Shem Tov (1698-1760), fundador do movimento espiritualista ortodoxo chamado de Chabad. Para mais informações: chabad.org (N. do T.).

[ix] Forma hebraica que significa o irrepresentável. Shoah é na prática o período do holocausto cometido entre os anos de 1939 a 1945 no período de ocupação nazista da Europa.

[x] Cabalista italiano que viveu entre 1707 e 1746.

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