
No discurso de agradecimento pelo Prêmio da Academia de Belas Artes da Baviera, Gershom Scholem reflete sobre sua trajetória intelectual e literária, marcada pela dualidade entre o alemão e o hebraico. Ele relembra sua juventude em Munique, onde iniciou estudos sobre a Cabala, e sua mudança para a Palestina em 1923, onde se dedicou ao hebraico e à espiritualidade judaica. O autor destaca a importância de obras como a Bíblia, o Zohar e os escritos de Kafka, que considera fundamentais para compreender a mente judaica ao longo dos séculos. Ele também aborda o impacto do Nacional-Socialismo na língua alemã e seu distanciamento dela, além de seu retorno ao alemão após a Segunda Guerra Mundial, influenciado por palestras em eventos como as reuniões de Eranos. Assim, Scholem enfatiza a importância da coragem, da paixão e da clareza de pensamento em sua jornada, culminando no reconhecimento de seu trabalho literário e acadêmico.
Gershom Scholem 1
Tradução: Estevan de Negreiros Ketzer 2
Ao expressar minha gratidão pela grande honra que vocês me concederam ao me conceder o Prêmio da Academia de Belas Artes da Baviera, é certamente apropriado que eu diga algumas palavras sobre as circunstâncias que me levaram a esta situação obviamente alegre, mas também um tanto paradoxal, na qual me considero merecedor de receber tal prêmio. Foi de longe a honra mais inesperada que alguém como eu recebesse um prémio literário na Alemanha, pois durante cinquenta anos mantive apenas laços frouxos com a esfera da língua alemã e, neste preciso momento, estou a preparar a publicação de uma coleção de alguns escritos hebraicos espalhados ao longo deste meio século.
Eu tenho me comprometido nos últimos dez anos, e por algum tempo ainda, a colher os frutos do meu trabalho de pesquisa, dedicado a trazer à luz uma dimensão obliterada da história e espiritualidade judaica que escapou da consciência dos grandes círculos do povo judeu, sem mencionar o mundo não judeu. Comecei esta tarefa aqui em Munique há cinquenta e cinco anos; eu era então um jovem que, por sua formação e educação, era totalmente estranho às fontes vivas da tradição judaica e buscava acessá-las apesar de fortes conflitos e pressões consideráveis; para trilhar esse caminho foi necessária uma boa dose de coragem, mesmo de imprudência. Necessitava também de mais: algo como uma bússola interna que guiasse as decisões que eu tomasse e que determinassem minha existência e, portanto, meu trabalho e o caminho a ser seguido por mim.
Na minha juventude, quando comecei a aprender hebraico em oposição direta aos desejos dos meus pais e em rebelião contra eles, senti-me profundamente atraído por uma tradição cujo caráter arcaico era óbvio para mim, mas na qual eu podia, no entanto, sentir as pulsações que lhe deram a capacidade de renascer, e que tentei, no meu trabalho, tornar perceptível. Esta ligação dialética, talvez mesmo paradoxal, de teimosia conservadora, restauração e utopia, formando um todo significativo, e que eu acreditava encontrar no judaísmo e da qual eu discernia com maior evidência o espaço histórico no misticismo, me deu a visão que era o pano de fundo do meu trabalho e lhe deu seu caráter próprio. Para impor uma concepção que se desviava claramente da representação tradicional da espiritualidade judaica, uma concepção que ainda era vaga aos meus olhos de principiante e que foi se tornando mais clara posteriormente. Essa bússola e essa coragem eram necessárias, mas também exigissem uma certa paixão e talvez uma disposição inata à clareza de pensamento, para a qual minha formação universitária em matemática contribuiu.
No outono de 1919, vim para Munique para estudar os manuscritos cabalísticos na Biblioteca da Baviera. Eu pretendia escrever um estudo sobre a teoria da linguagem da Cabala, obra com a qual esperava obter o título de doutor por Clemens Bäumker 3 , de quem me lembro com respeito. Abandonei este projeto quando percebi que meu conhecimento era muito limitado, insuficiente para tal empreendimento. Empreendi então o que hoje seria chamado de longa marcha através de livros e manuscritos antigos que, finalmente, também me levou, sob tão respeitáveis auspícios, perante sua assembleia. A obra para a qual não me senti preparado na juventude foi exatamente, cinquenta anos depois, e com a consciência um tanto fortalecida, a qual escrevi em Jerusalém.
Vou contar uma anedota contemporânea do início desta longa jornada. Em 1922, quando cheguei a Berlim como um jovem doutor em Cabala, descobri que o único estudioso judeu da geração anterior que havia estudado Cabala e publicado sobre o assunto, um aluno do grande historiador judeu Heinrich Graetz, havia se estabelecido naquela cidade. Fui prestar-lhe homenagem. Era um senhor idoso, muito animado, de 82 anos, a quem o Imperador Guilherme havia conferido o título de Professor, o antigo rabino de Posen. Ele me recebeu da maneira afável e me disse: “você e eu somos os únicos dois loucos envolvidos neste negócio”. Ele me mostrou sua biblioteca – ele era o único na Alemanha a ter uma vasta coleção de obras cabalísticas, entre as quais estava um longo manuscrito da escola de Isaac Luria 4 . No meu entusiasmo juvenil, em face a esse tesouro, eu disse a ele: “É extraordinário, professor, que você tenha estudado tudo isso!” Ao que o velho respondeu: “O quê? Eu também deveria ler esse absurdo?”
Deixe-me dizer algumas palavras sobre o problema linguístico que sempre me confrontou ao longo da minha vida: ficar preso entre o alemão e o hebraico. Quando parti em 1923 para a Terra de Israel, então Palestina, eu havia me preparado seriamente à transição ao hebraico. Durante doze anos “eu o estudei minuciosamente, com extremo zelo” 5 . Entrei, assim, num universo linguístico conservador, cujo modo tradicional de expressão me impressionou muito. Mas o hebraico regulamentado, no qual a maioria dos meus trabalhos estão escritos, passou por uma transformação muito profunda em Israel. Desde que deixou livros antigos na boca de crianças pequenas e bebês, ela entrou em declínio em favor de uma linguagem muito viva, mas anárquica em sua ausência de nomes. O hebraico do futuro está sendo forjado a partir do choque entre esses dois mundos linguísticos, e sua forma emergirá da experiência frutífera do encontro entre esses dois universos – um processo frutífero, mas também perigosamente mortal. Eu estava profundamente envolvido nessas transformações. Diante disso, o alemão que trouxe comigo foi a língua dos meus primeiros vinte e cinco anos, e assim permaneceu. Na época, eu só levei as obras completas – tudo o que me era acessível de suas obras – de dois autores alemães: Jean Paul e Paul Scheerbart 6 , cujos livros me iluminaram de uma maneira singular. Eles representavam o que mais importava para mim sobre a herança alemã. Eu provavelmente era, na época, e talvez ainda hoje, a única pessoa a colecionar todas as obras de Scheerbart, esse autor completamente ultrapassado, tão querido ao meu coração e cuja vida eu nada sabia, exceto que ele havia morrido de fome durante a Primeira Guerra Mundial…
Não participei das transformações pelas quais a língua alemã passou posteriormente, especialmente durante o período do Nacional-Socialismo. Ainda consigo ver o enorme cartaz vermelho do novo NSDAP 7 colado nas colunas de publicidade de Munique, onde os horrores do extermínio dos judeus e a terrível degeneração linguística que os acompanhou já foram anunciados. Naquela época, eu já havia tomado a decisão de me mudar para um país antigo para viver uma vida nova, então mal registrei essas questões. Naqueles anos, passei a maior parte dos meus dias no tranquilo departamento de manuscritos da Biblioteca da Baviera e na sala de estudos do velho rabino do pequeno grupo de judeus ortodoxos com quem eu “estudei”.
Todos os dias uma página do Talmud, bem como na companhia de um punhado de pessoas que compartilhavam o mesmo estado de espírito que eu. Então o alemão permaneceu vivo para mim, mas de alguma forma congelado, enquanto eu tentava encontrar meu caminho para o hebraico. Não é de se estranhar, portanto, que, durante o resto da minha vida em Israel, eu tenha lido atentamente apenas três “livros”, isto é, nunca parei de relê-los, com o coração aberto e a mente tensa (por mais estranha que pareça essa maneira de me expressar para descrever esse encontro de atitudes aparentemente contraditórias em relação a grandes textos): a Bíblia, escrita em hebraico, o Zohar, escrito em aramaico, e toda a obra de Kafka, escrita em alemão por um autor judeu de Praga que sabia ser um escritor alemão, mas não um alemão. Três corpus literários nos quais, ao longo de três milênios, se sedimentaram configurações da mente que chamamos de judaica. Você pode dizer que não é muito. Na minha vida, isso foi o suficiente.
Os escritos de Kafka estão estranhamente ligados às características essenciais dos outros dois conjuntos de obras que mencionei. Eles têm, em grande medida, algo de canônico, o que significa que são em si mesmos indefinidamente interpretáveis; muitas delas, e justamente as mais impressionantes, constituem interpretações. E esses escritos devem, como dizemos tão bem hoje, permanecer fechados a uma interpretação que seria “estranha à obra”?! O que um leitor atento poderia dizer sobre uma literatura que não mede esforços para, por exemplo, contornar o significado judaico do último conto de Kafka, “Josefina a cantora ou o povo dos ratos”, alegando o pretexto absurdo de que o termo “judeu” não aparece na obra? Eu tenho em pouca estima a essa estranha arrogância capaz de rejeitar a interpretação de um autor — cujas obras tocaram e abalaram tantos de nós no fundo de nossas vidas — por homens que testemunharam esse abalo, sob o pretexto perverso de que as formas de elaboração literária, pré-requisito de toda ciência e de toda escrita, não foram levadas em conta, ou foram levadas em conta insuficientemente pelos intérpretes. Deixemos que um homem que passou a vida como pesquisador sendo filólogo seriamente e ao mesmo tempo não sem ironia, e que tem poucas ilusões sobre os limites da chamada ciência literária, mostre reserva diante de tais pretensões. Certamente, os três grupos de textos que citei fazem parte da literatura e, como tal, podem ser submetidos aos critérios da ciência literária, se é que existem hoje critérios desse tipo que tenham alguma validade. Mas quem iria querer duvidar disso que esses três conjuntos de obras são muito mais do que literatura? E não deveríamos prestar atenção a esse “mais”, e não estaríamos justificados em buscar categorias que nos permitissem descrevê-lo ou concebê-lo? As formas de discurso bíblico ou meditações cabalísticas certamente têm uma relevância, mas elas realmente querem que acreditemos – e mesmo que fosse apenas escondendo-nos atrás do escritor Kafka que ordenou, obedecendo a um sentimento de vergonha (o menos literário dos sentimentos), que seus manuscritos fossem queimados – elas realmente querem nos persuadir, cujo o apelo que vinha ou ainda vem de sua obra se esgotaria em tal pesquisa formal, qualquer que seja seu valor, ou poderia ser desvinculado dela?
Em 1946, fui enviado à Alemanha com a missão única de rastrear o destino das bibliotecas judaicas, relatando o estado daquelas que sobreviveram e fazendo propostas para seu fornecimento. É difícil descrever para vocês o choque que senti quando fui confrontado com a língua alemã daqueles anos. Ela tinha alguma coisa da cabeça da Medusa, algo paralisante, pois, ela havia registrado de forma inconcebível os acontecimentos daquela época. O fato de eu ter começado a escrever em alemão com mais frequência a partir de 1949 provavelmente se deve ao choque que experimentei, mas também às palestras que dei em Ascona como parte das reuniões de Eranos 8 . Tive então a oportunidade de apresentar, em forma de sínteses, coisas nas quais trabalhei durante trinta anos, sem sacrificar os aspectos da crítica histórica e da reflexão filosófica. No ambiente desses encontros, pareceu-me possível retomar o contato com a língua alemã de forma adequada, sem sucumbir à provocação causada por esse choque. Na verdade, eu me beneficiei não apenas do fato de ter perdido há muito tempo o hábito de usar a língua alemã literária, mas também da obrigação, tão rara quanto bem-vinda para um palestrante, de ter que preparar uma apresentação completa de duas horas, enquanto, como é bem sabido, geralmente você é solicitado a falar sobre qualquer coisa, desde que não ultrapasse cinquenta minutos. Lá encontrei a inspiração necessária para apresentar temas como o meu. Então, eu tenho que confessar que a prosa, digna do reconhecimento que me concedeis, resultou para mim de um duplo impulso, o do rigor e o do prazer, e é sem dúvida também isso que aí podemos encontrar.
1 Filósofo e professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém.
2 Tradução realizada por Estevan de Negreiros Ketzer (Email: [email protected]) da versão francesa
“Mon chemin vers la Babale” no livro de KRIEGEL, Maurice (org.). L’Herne Scholem. Paris: Éditions Cahier de
L’Herne, 2009, pp. 151-153.
3 Clemens Bäumker (16 September 1853 – 7 October 1924) orientador de Scholem historiador da filosofia,
especialista em tomismo medieval (N. do T.).
4 Isaac ben Solomon Luria Ashkenazi (nascido em Jerusalém no ano de 1534, morto em Tsfat, 25 de julho de
1572), famoso cabalista junto a Moshe Cordovero, criaram a Escola de Safed (N. do T.).
5 Scholem retoma um verso do início do Fausto de Goethe (Nota de Marc de Launay).
6 Paul Karl Wilhelm Scheerbart (nascimento em Danzigue, 8 de janeiro de 1863, morte em Berlim, 15 de
outubro de 1915). Escritor de literatura fantástica.
7 Sigla para o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães) (N. do T.)
8 O grupo de estudos intitulado Eranos, ocorreu em Ascona na Suíça, e foi liderado por Carl Gustav Jung, tendo
participação de grandes intelectuais internacionais. Scholem participou das reuniões a partir de 1949 com a
conferência “Kabbalah e Mito” (N. do T).
Discurso proferido por Gershom Scholem por ocasião da cerimônia de premiação da Academia de Belas Artes da Baviera e publicado no Süddeutsche Zeitung, edição de 22 a 23 de junho de 1974.Tradução do alemão por Marc de Launay.