
Como diz a oração diária: “Em Sua bondade, Ele renova a obra da Criação a cada dia”. Mas será que a “bondade” mencionada aqui pode realmente produzir algum bem que já não tenha sido acumulado no primeiro ato da Criação? Esse processo não contém momentos em que algo novo, sempre renovado, pode surgir? A liberdade de Deus nesses sempre renovados começos não é tão imprevisível quanto a do homem em suas decisões morais?
Reflexões sobre a Teologia Judaica[1]
Gershom Scholem
Filósofo e professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected].
Se me proponho aqui a refletir sobre a posição e as possibilidades da teologia judaica hoje, deve ficar claro que, do jeito que as coisas estão, uma discussão sistemática só poderia ser feita por alguém que possuísse um ponto de vista fixo, um ponto arquimediano, por assim dizer, a partir do qual essas questões pudessem ser sistematizadas. Eu não estou entre esses afortunados. O que posso fazer, basicamente, é levantar questões fundamentais; pois não tenho uma teologia positiva de um judaísmo inflexível. A seguir, espero esclarecer por que isso acontece.
Há quatro questões que hoje são centrais para mim em discussões desse tipo:
(1) A questão das fontes autorizadas nas quais tal teologia pode se basear; em outras palavras, a questão da legitimidade da Revelação e da Tradição como categorias religiosas que podem constituir o fundamento de uma teologia judaica.
(2) A questão dos valores centrais, ou das ideias subjacentes a tais valores, que podem ser estabelecidos a partir de tais fontes e da convicção de que Deus existe.
(3) A questão da posição do judaísmo e de sua tradição em um mundo secularizado e tecnologizado.
(4) Finalmente, a questão do significado, neste contexto, para nossa vida e pensamento como judeus, dos eventos decisivos e subversivos da história judaica em nosso tempo, isto é, da catástrofe do Holocausto e tudo o que está relacionado a ele, bem como do estabelecimento de uma comunidade judaica em Israel, o Judenstaat.
I
É evidente que a questão da nossa relação com a tradição do judaísmo e com a sua história como a de um povo que, mesmo sob relações sociais muito diferentes, sempre foi formado e desenvolvido de forma decisiva pela inspiração religiosa, não se tornou sem sentido ou irrelevante, mesmo numa era de secularização.
O facto de tantas pessoas de campos opostos, como o dos piedosos e o dos conscientes e enfaticamente seculares, confessarem, ainda assim, a sua identidade como judeus com tanta intensidade, basta para tornar clara a atualidade da questão. No entanto, não devemos sucumbir à ilusão de que, face à experiência concreta dos anos de Hitler – que afetou as nossas vidas como judeus de uma forma tão avassaladora e insondável, e de uma forma que, no fundo, é provavelmente também impensável – esta questão não recebeu uma nova Gestalt ou não é representada numa nova configuração e contra um novo pano de fundo. Se me permitem usar uma expressão da moda neste contexto, a “situação existencial” dos judeus mudou em nossa geração. Além disso, é até questionável se nós mesmos somos capazes de formular as implicações dessa mudança adequadamente, para não falar de fazê-lo exaustivamente.
Na medida em que nos consideramos membros de uma comunidade que está passando por um processo histórico de transformação visível a todos, que em parte também está em um estado de início como mal conhecemos desde a destruição do Templo, pode-se duvidar que sejamos capazes de antecipar as múltiplas facetas desse processo seminal, que se desdobrará apenas no curso de seu desenvolvimento concreto. Estamos necessariamente bloqueando nosso próprio caminho, sendo incapazes de saltar sobre nossa própria sombra. É impossível refletir objetivamente a experiência de uma comunidade enquanto o processo ainda está em andamento. É por isso que o que vou dizer aqui deve necessariamente ser apresentado com a devida modéstia.
Quão mais fácil, neste contexto, é para os ortodoxos, sobretudo no que diz respeito à primeira e à segunda questões! Eles possuem uma estrutura fixa, um sistema de coordenadas, que não pode ser questionado. São os afortunados possuidores de um ponto arquimediano que torna sem sentido questões como as que colocamos; isso porque sua convicção do caráter divino da Torá — que a coloca além do questionamento histórico — lhes fornece um padrão que, pelo menos em princípio, lhes permite formular respostas a todas as questões que surgem na vida do judeu. Além disso, certamente, não precisamos esconder que o significado do que é chamado de “ortodoxia”, isto é, o que se entende pela expressão hebraica, [2]שלומי אמני ישראל, é totalmente controverso. Caso contrário, é claro, não teriam ocorrido aquelas amargas disputas sobre essa questão que ocorreram nos séculos X, XIII e do século XVI ao XVIII. Mesmo hoje, é possível obter de judeus que se declaram ortodoxos respostas muito diferentes à questão do que querem dizer com isso. Talvez um ou outro dos participantes deste simpósio que professa lealdade a esse grupo consiga assumir uma posição mais legítima sobre essa questão do que eu. Ele também poderá talvez responder à pergunta sobre se a escala de valores que está sendo proclamada e propagada como judaica na teologia — teologia moral, em particular — é realmente fixa e inalterável e pode resistir até mesmo às tempestades destes tempos em que um mundo secularizado se gaba de possuir valores inteiramente diferentes, às vezes diametralmente opostos.
As três primeiras perguntas que levantei no início são de particular urgência – Eu diria até mesmo amarga – para qualquer um que não possa mais o sistema ortodoxo de coordenadas. A primeira questão, realmente a mais abrangente, também por implicação inclui a questão quanto à validade ou aplicabilidade de ensinamentos importantes e codificados da teologia judaica; terei oportunidade de falar sobre eles.
Antes que se possa falar sobre teologia, deve-se necessariamente falar sobre as fontes nas quais tal teologia pode se basear. O observador confronta pelo menos três estágios diferentes nos quais o mundo religioso do judaísmo se desenrolou, embora cada um desses estágios fosse repleto de fluxo interno e rico, na verdade, riquíssimo, em contradições. Refiro-me à Bíblia, à tradição rabínica e à cabala; esta última deve ser considerada como um novo começo definitivamente original com base nas duas fontes anteriores.
Neste contexto, a Bíblia não é entendida como o registro histórico da literatura nacional de Israel, na medida em que foi preservada; como tal, poderia conter os elementos mais díspares sem levantar qualquer necessidade de harmonizá-los — uma perspectiva completamente legítima, para a qual a validade teológica das declarações bíblicas é irrelevante. Aqui, estou pensando na Bíblia como um cânone de declarações religiosas autoritativas, das quais pelo menos uma parte se apresenta como a palavra de Deus, e ao todo cuja autoridade religiosa foi atribuída pelo judaísmo no curso de sua cristalização histórica. Tanto em vista de seu caráter de autoridade religiosa quanto por causa das numerosas e em parte flagrantes contradições que aparecem nela, todo esse conjunto exigiu interpretação, hermenêutica e harmonização. Esse processo ocorreu de maneira impressionante na tradição rabínica, na halakhah e na agadá; esta última foi de particular relevância teológica porque a expressão imediata do pensamento religioso de amplos círculos se concentrou nela com particular originalidade, isto é, por meio da interpretação das Sagradas Escrituras.
Todos os três estágios deixaram uma marca especialmente impressionante na liturgia da sinagoga, que assim se tornou um precioso e verdadeiro espelho do mundo religioso do judaísmo; os autores mais recentes, certamente (como se pode ver sobretudo no caso de Franz Rosenzweig), fizeram uso muito seletivo de seu testemunho. O que esses três estágios têm em comum é seu caráter apologético, como é particularmente evidente na agadá e na cabala. Os processos de pensamento desta última tendem a ser comunicados irrefletidamente, e eles forjam sua própria justificação em comparação com outras categorias. Nisso, eles diferem essencialmente da literatura teológica própria da filosofia medieval da religião, de Sa’adia, passando por Maimônides, até Crescas e Alba, bem como das reflexões mais modernas sobre o judaísmo, de Mendelssohn até os dias de hoje. Lá, o pensamento religioso é apologeticamente orientado para as respectivas categorias das filosofias dominantes, do Kalam árabe e Aristóteles a Kant, Hegel, Dewey e até mesmo Heidegger. A característica marcante dessas teologias, independentemente de suas diferenças básicas, é sua atitude estritamente seletiva em relação à tradição. Elas desconsideram qualquer coisa tradicional que considerem indigesta e, por sua natureza, inadequada para propósitos apologéticos. Essa, por exemplo, é a razão pela qual o mundo religioso da Cabala é completamente excluído da teologia judaica do século XIX até a época de Hermann Cohen e outros; ele é vítima da censura dos preconceitos contemporâneos. Cada um corta a fatia que lhe convém do grande bolo.
Assim, uma grande variedade de escolhas se apresenta. O leitor da literatura relevante que espera encontrar uma imagem uniforme do que lhe é apresentado como Judaísmo deve se surpreender com a multidão de contradições que dominam tais representações. A mais importante dessas contradições, e precisamente para o observador contemporâneo, certamente não diz respeito à convicção da existência de Deus, sobre a qual não havia dúvida em nenhum dos estágios do desenvolvimento religioso do judaísmo, e sem a qual eu dificilmente poderia imaginar uma discussão como a presente, diz respeito à interpretação à qual o conceito de Revelação foi submetido. Em que sentido um judeu poderia falar de Revelação no contexto histórico de sua tradição? E em que sentido podemos, aqui e agora, ainda ver na Revelação uma categoria que tenha significado para nós? Revelação não é uma palavra que tenha equivalente nas fontes antigas que abrangem todas as ocorrências de Revelação. Há uma palavra para a Revelação Sinaítica, bem como para o caráter da Revelação da Torá como um todo. A ocorrência é chamada de mattan Torah, “entrega da Torá”; a qualidade da Revelação é chamada de Torá min hashamayim, “a Torá do céu” (ou seja, de Deus). Em contraste, as teofanias nas quais Deus aparece e se comunica com os patriarcas ou indivíduos ilustres, e acima de tudo os profetas, não estão incluídas neste conceito.
A tradição rabínica, certamente, reconhece uma manifestação da presença divina, mas, ao contrário dos pronunciamentos sobre a Torá, isso não constitui autoridade. Não são as experiências dos sentidos da visão, tato ou paladar que constituem autoridade, mas exclusivamente aquelas dentro da esfera da audição. Para o judaísmo, a Revelação era a palavra de Deus, e a tradição concebia toda a Torá como tal palavra. A questão quanto ao sentido em que se pode falar da palavra ainda permanece pertinente, mesmo além da concepção ortodoxa. Afinal, o assunto em discussão é a palavra de Deus, que originalmente era considerada sensivelmente perceptível. Isso não é menos antropomorfismo do que aquelas outras afirmações que atribuem atividades sensíveis a Deus ou falam de Sua aparição, e que mais tarde, portanto, foram submetidas a reinterpretações radicais com o objetivo de eliminar justamente esse elemento antropomórfico.
Nessas discussões sobre o significado da Revelação como a palavra de Deus, duas concepções opostas vieram à tona; ambas, certamente, ainda eram capazes de permanecer dentro da estrutura de um fundamentalismo religioso. Aqui, deve-se enfatizar que o fundamentalismo foi mantido vivo por muito mais tempo e com muito mais intensidade nos círculos judaico-ortodoxos do que entre os não judeus[3]. A crítica histórica que atacava o caráter imediatamente divino dos textos “revelados”, isto é, a aceitação da inspiração verbal das Sagradas Escrituras e, acima de tudo, da Torá, não tinha importância aqui — a discussão avançou para um nível totalmente diferente. Com a inspiração verbal da Torá, uma esfera diferente foi introduzida na história: uma esfera que podia, no entanto, encontrar sua expressão nos meios humanos e históricos e por meio deles. É claro que tal suposição representa um paradoxo fundamental. Pode a palavra humana conter a palavra de Deus em sua forma pura, ou pode a palavra de Deus, se existir, expressar-se dentro dos limites da linguagem humana? Este é o paradoxo que leva às especulações dos teólogos judeus sobre o possível significado de tais Revelações. Gostaria de oferecer aqui algumas observações sobre o assunto.
Era difícil escapar das questões acima, descartando-as como irrelevantes, mas isso foi feito de maneira particularmente drástica por S. L. Steinheim, em 1835, ao publicar uma grande obra com o impressionante título de A Revelação Segundo o Conceito de Ensino da Sinagoga (Die Offenbarung nach dem Lehrbegriffe der Synagoge), uma defesa apaixonada do sobrenaturalismo — influenciada por Heinrich Friedrich Jacobi — ou seja, da tese de que, para não ser uma metáfora desprovida de conteúdo, a Revelação deve necessariamente ter como objeto uma comunicação que a razão humana, mesmo em sua aplicação imanente mais perfeita e legítima, jamais poderia conceber. Assim, a razão humana deve lutar contra a Revelação, e esta deve ser um paradoxo. O conteúdo desta comunicação consiste — e se baseia — na doutrina da criação a partir do nada. Quando, no decorrer de uma famosa discussão, Abraham Geiger perguntou-lhe onde se encontrava, nos escritos que ele aceitava como “revelados”, o conteúdo desta Revelação. Ele respondeu que essas convicções estavam vivas na sinagoga e que, se ele próprio as tivesse inventado, seriam doravante características da sinagoga (pode-se dizer que tal franqueza só é encontrada raramente na teologia judaica!). À pergunta posterior de Geiger sobre como a Revelação chegou ao seu primeiro órgão, ele respondeu que isso ele realmente não precisava saber — “mas provavelmente através do ouvido”[4].
No entanto, se há validade na suposição de que a revelação provém da esfera da audição — e isso é de fato suposto por todas as autoridades da tradição rabínica, desde o Rabino Akiva até os fundamentalistas de nosso tempo — devemos nos perguntar como a fala da voz de Deus poderia ser algo mais do que uma metáfora antropomórfica. Essa, porém, é uma questão que, como a história da teologia demonstrou, logo levou à dissolução da tese da inspiração verbal, a menos que recebesse uma reinterpretação mística.
Afinal, é digno de nota que a concepção de Revelação geralmente aceita nos círculos cabalísticos judaicos, não importa quão distante se tornasse de seu significado original e ingênuo, de acordo com suas premissas, não apenas permitiu um pensamento vivo e com muita lógica interna sobre o conceito de Revelação; além disso, também abriu uma surpreendente medida de liberdade para o pensamento judaico precisamente dentro da tese fundamentalista da inspiração verbal e do caráter divino de cada palavra – na verdade, de cada letra.
De acordo com a cabala, o poder criativo de Deus está concentrado em nome de Deus, que é a palavra essencial que emana de Deus. O aspecto de Deus que representa esse Seu poder criativo – pode haver muitos outros aspectos ainda ocultos para nós – está imbuído de Sua infinitude. Ele é muito maior do que qualquer palavra humana, qualquer expressão articulada, poderia compreender. Somente por meio da refração infinita o infinito pode se transformar na palavra humana finita, e mesmo assim empresta a tal palavra uma profundidade que vai muito além de qualquer coisa que represente um significado específico, uma comunicação com outros seres. A palavra de Deus — se é que existe tal coisa — é um absoluto, do qual se pode dizer tanto que repousa em si mesma quanto que se move em si mesma. Suas emanações estão presentes em tudo, em todo o mundo, que luta por expressão e forma. Nesse contexto, a Torá aparece como uma textura tecida a partir do nome de Deus. Ela representa uma unidade misteriosa cujo propósito não é primariamente transmitir um sentido específico, “significar” algo, mas sim dar expressão àquele poder criativo em si que está concentrado no nome de Deus e que está presente em toda a criação como sua assinatura secreta em uma ou outra variação. A Torá não apenas é construída sobre esse nome e se desdobra a partir dele, como uma árvore que cresce a partir de sua raiz, mas em última análise, representa esse nome de Deus. Mas isso também implica que qualquer coisa que nos pareça a “Palavra de Deus” perceptível e, além disso, contenha uma comunicação inteligível sobre nós e o nosso mundo, é, na verdade, algo que já passou por muitas, muitas mediações. A palavra de Deus deve conter uma riqueza infinita, que é comunicada por ela. Essa comunicação, no entanto — e aqui reside o cerne da concepção cabalística da Revelação — é ininteligível. Seu propósito não é uma comunicação facilmente inteligível. Somente depois de ter passado por inúmeros meios, tal mensagem está habilitada, originalmente embora seja uma expressão do próprio Ser, pode tornar-se também comunicação.
Assim, a diferença entre o que é chamado de palavra de Deus e a palavra humana também contém a chave para a Revelação. Não aparece nela uma única conexão de significado definível, mas uma infinidade de conexões nas quais essa palavra se subdivide para nós. Em outras palavras, o sinal da verdadeira Revelação não é mais o peso das declarações que nela se comunicam, mas o número infinito de interpretações às quais ela está aberta. O caráter do absoluto é reconhecível por seu número infinito de interpretações possíveis. A Revelação não produz um significado específico; antes, é aquilo que está por trás do significado de cada palavra e que, assim, empresta um significado infinitamente rico a cada palavra revelada. Para empregar a linguagem dos cabalistas: infinitas luzes queimam em cada palavra. Ou cada palavra da Torá tem setenta e, segundo alguns, 600.000 faces ou facetas. Sem abandonar a tese fundamentalista do caráter divino das Escrituras, tais teses místicas, no entanto, conseguem um afrouxamento surpreendente do conceito de Revelação. Aqui, a autoridade da Revelação também constitui a base da liberdade em sua aplicação e interpretação.
Sem dúvida, essa tese era tão abrangente quanto perigosa. Eu me arriscaria a dizer que somente um sentimento muito vital pela importância das doutrinas teológicas e dos valores religiosos, conforme muitas gerações os desenvolveram ou derivaram da Torá, e pela continuidade de sua tradição, impediu uma ruptura em posições heréticas — e mesmo isso nem sempre foi o caso. Não é de se admirar, portanto, que isso também tenha fornecido aos cabalistas uma legitimação para pensamentos extraordinariamente audaciosos que pareciam defensáveis perante a Ortodoxia dentro da estrutura da exegese mística e de uma tradição mística, enquanto na consciência dos pensadores judeus que não compartilhavam dessa concepção da Revelação, eles já haviam se desviado há muito tempo para a heresia ou mesmo para o paganismo. Em grande medida, isso também explica aqueles protestos violentos e as amargas queixas contra a teologia dos cabalistas que abundam na literatura relevante, particularmente no século XIX.
O fascínio que inúmeras ideias cabalísticas, sem dúvida, exercem sobre muitos judeus de nosso tempo, para quem o judaísmo é um todo vivo, só poderia despertar o desgosto daqueles cujo objetivo era uma apologia baseada na possível racionalidade do judaísmo em um contexto que parecia admitir apenas formulações dogmáticas inequívocas. Eles consideravam a cabala uma monstruosidade e um absurdo blasfemos (Steinheim) ou pagãos (Formstecher, Cohen). Durante o século XIX e até Cohen, uma característica dominante dessa apologia era a convicção de que a Revelação — e tudo o que nela se baseava — representava, ou pelo menos iniciava, uma polêmica contra o mito e uma superação dele e (como eles o viam) suas transformações especulativas no panteísmo. Certamente, essa visão foi posta em dúvida pela cabala, que irrompeu no centro do judaísmo rabínico e na qual o elemento mítico primordial reaparece com bastante frequência e grande força. Mas, neste contexto, não preciso abordar essa questão.
II
O conceito de Revelação, como aqui exposto, tinha, portanto, dois aspectos fundamentais cuja coincidência constitui seu significado particular para a fenomenologia religiosa do judaísmo. Por um lado, a afirmação da tese fundamentalista do caráter divino da Torá como a Palavra absoluta produziu um sistema absoluto de referência, uma base autoritativa comum à qual todo o pensamento judaico posterior poderia se referir. Por outro lado, também foi concedida legitimidade à percepção e especulação progressivas, que podiam combinar um elemento subjetivo com o que era objetivamente dado. Se cada palavra da Torá estava repleta de significado sem estar inequivocamente vinculada a um único significado, era apenas um curto caminho para a tese radical de que as sessenta miríades de Israel que receberam a Torá correspondiam às 600.000 facetas ocultas em cada palavra, cada uma das quais iluminava apenas aquele a quem se destinava. Em princípio, então, cada um da comunidade de Israel tem seu próprio acesso à Revelação, que está aberto somente a ele e que ele mesmo deve descobrir.
A extraordinária audácia de tal tese, na qual a autoridade era combinada com a liberdade, foi, no entanto, modificada no judaísmo pelo conceito de Tradição, que no judaísmo está ao lado do conceito de Revelação e está coordenado a ele. Pois, se a Revelação era um absoluto, sua aplicação à vida de seus destinatários era impossível sem mediação. O chamado nela implícito transcende os limites da ação concreta individual. Somente nas infinitas facetas, nas contingências de realização nas quais a palavra absoluta se reflete, ela se torna aplicável e, portanto, também pode ser concretamente apreendida pela ação humana. Em outras palavras, o significado infinito da Revelação, que não pode ser apreendido na imediatez única de sua recepção, se desdobrará apenas em relação contínua ao tempo, na tradição que é uma tradição sobre a palavra de Deus e que está na raiz de todo ato religioso. A Tradição torna a palavra de Deus aplicável no tempo. Essa me parece ser a tese complementar básica, por meio da qual o judaísmo conseguiu concretizar seu conceito de Revelação e torná-lo frutífero. Daí, a chamada Torá oral obteve sua legitimação metafísica. Não é surpreendente que a “voz do Sinai”, que continua a ressoar todos os dias, e da qual as fontes talmúdicas nos falam, tenha se tornado para os cabalistas o meio de onde a Tradição se originou. A voz que incessantemente clama do Sinai recebe sua articulação e tradução humana na Tradição, que transmite a palavra inesgotável da Revelação a qualquer momento e através de cada “estudioso” que se submete à sua continuidade.
O que eu disse aqui é um resumo dos pensamentos que por muitos séculos tiveram influência decisiva sobre as ideias de Revelação e Tradição no Judaísmo, e que foram resumidos por volta do ano de 1625 nas Duas Tábuas da Lei, de Isaiah Horowitz, um dos livros mais populares da literatura judaica[5]. É inegável, admita-se ou não, que o livro representa uma teoria mística, embora uma teoria mística de grande alcance. Ele não contornou o problema de como Deus poderia se revelar a nós em palavras humanas, propondo a tese fácil de que isso simplesmente aconteceu de ser um milagre; ou seja, um ato de liberdade e da misericórdia de Deus no qual Deus se revela a nós em nossa própria língua[6]. Obviamente, tal concepção mística da Revelação, que ao mesmo tempo tornou possível uma afirmação do fundamentalismo ortodoxo, não era algo que o século XIX pudesse absorver ou apreciar.
No entanto, com o enfraquecimento quase completo, ou em qualquer caso ilimitadamente efetivo, da tese fundamentalista pela crítica histórica e pelas filosofias que a sustentavam, assim como eram sustentadas por ela, a questão no judaísmo sobre isso se aplica a autores tão diferentes quanto Kaufmann Kohler, Hermann Cohen, Franz Rosenzweig e Martin Buber. Todos eles polemizaram contra o misticismo, tomando emprestadas suas metáforas em caso de necessidade. Kohler, o teólogo clássico do Judaísmo Reformista, definiu a Revelação como “a aparição de Deus nas profundezas do espelho da alma”, à qual, certamente, ele acrescenta um elemento ético específico do Judaísmo: “A autorrevelação de Deus como um poder ético é o ato histórico no qual o Judaísmo se fundamenta”[7]. Mesmo Cohen, que encontra o desenvolvimento progressivo do senso e da consciência religiosa e ética nos registros da Revelação, em suas obras posteriores considera não tanto o “fato” isolado da Revelação no Monte Sinai, mas sim a “realocação do Sinai no coração humano” supostamente realizada pelo autor de Deuteronômio (30:14) — uma fórmula mística que tem seus paralelos nos cabalistas e que parece ser bastante peculiar como a culminância da tese racionalista, porém profundamente piedosa, segundo a qual a Revelação, pela qual Deus entra em uma relação com o homem, é aquele ato “no qual o ser humano racional nasce”[8].
As dissertações de Rosenzweig e Buber sobre este ponto, embora executadas no âmbito de uma filosofia do diálogo entre o homem e Deus, reconhecem fundamentalmente apenas um tipo de Revelação — a mística, embora se recusem a chamá-la por esse nome. Assim, para Buber, a Revelação é um “gegenwiirtiges Urphiinomenon” (fenômeno primordial presente) no aqui e agora, isto é, potencialmente em todo aqui e agora, a saber, o do encontro criativo entre o Eu e o Tu eterno em convocação e resposta. Na Revelação, o homem recebe não um “conteúdo”, mas uma “presença como força”. Ele não recebe plenitude de significado, mas a garantia de que existe algum significado, “a confirmação inexprimível de significado”. Este significado não é o de outra vida — não, digamos, da vida de Deus —, mas desta nossa própria vida, deste nosso próprio mundo. A Revelação, portanto, é o encontro puro, no qual nada pode ser expresso, nada formulado, nada definido. O significado fundado nela só pode alcançar expressão na ação do homem. Este significado não é transferível e não deve ser forjado em conhecimento de validade geral. Não pode sequer ser apresentado como uma injunção reivindicando validade.
Não está inscrito em nenhuma tábua que deva ser erguida acima de todas as nossas cabeças. Cada um de nós só pode preservar o significado que recebeu através da singularidade do seu ser e da singularidade da sua vida. Assim como nenhuma prescrição pode nos levar ao encontro [com Deus], nenhuma pode nos levar a partir dele… Essa é a Revelação que está eternamente presente no aqui e agora. Não conheço nenhuma que não seja a mesma em seu fenômeno primordial. Eu não acredito em nenhuma. Não acredito em uma autoidentificação de Deus ou em uma autodeterminação de Deus em relação ao homem… O que existe é, e nada mais. A fonte eterna de poder está fluindo, o contato eterno está esperando, a voz eterna está ressoando, e nada mais[9].
Na época de Schleiermacher, as antecipações protestantes de Steinheim, um genuíno anti-místico, foram cunhadas contra frases como esta. Segundo Steinheim, “A palavra Revelação é tão grandiosa e venerável que mesmo aquele que, por seus atos, a profanou ou a destruiu, ainda acredita que deve preservá-la e honrá-la em sua concha vazia, como o cadáver de um herói ou rei assassinado”[10].
Originalmente, a noção de uma Revelação única como fato histórico dificilmente era compatível com a de uma Revelação contínua que sempre se repetia ou se renovava, como é, em última análise, pressuposta pela categoria de Tradição, mesmo nas fontes rabínicas e cabalísticas. No entanto, quando a primeira noção foi vítima da crítica histórica — uma de suas vítimas mais importantes, se não a mais importante — restou apenas a segunda, uma doutrina que conduz à imprecisão e à ambiguidade sobre a inspiração de textos sagrados ou homens santos, inspiração que não se manifesta por um milagre, mas por um processo natural, que em certas circunstâncias é até repetível. Isso, então, correspondia em grande medida — mesmo que não fosse tão claramente expresso — à fala dos místicos sobre uma “luz interior” ou “palavra interior” como a base real de toda a Revelação. Em vez de falar sobre ma-amad har sinai (o evento no Sinai) como a experiência histórica formativa do povo judeu, falava-se agora de ruah hakodesh (o Espírito Santo) como o instrumento de uma Revelação que potencialmente era sempre possível. Nem mesmo os teólogos existencialistas conseguiram obstruir ou apagar da memória esse estado de coisas destrutivo, embora seja preciso admitir que eles — acima de todos, Martin Buber e Abraham Joshua Heschel — empregaram sua considerável eloquência com o propósito de fugir do assunto.
III
Esta é a situação em que se encontra hoje a grande maioria daqueles cuja convicção da existência de Deus não pode ser afetada pela crítica histórica. O caráter vinculativo da Revelação para um coletivo desapareceu. A palavra de Deus não serve mais como fonte para a definição de possíveis conteúdos de uma Tradição religiosa e, portanto, de uma possível teologia. Mesmo onde uma concepção mística da Revelação é positivamente admitida, ela necessariamente carece de caráter autoritativo. As declarações de natureza religiosa que surgiram dessa maneira não têm força vinculativa e permanecem subjetivas, mesmo quando se apresentam como existencialmente fundamentadas (apesar dos protestos de seus protagonistas). Eu me aventuraria a dizer que não há grande distância de tal concepção subjetiva, que transplanta a Revelação para o coração humano, para uma concepção secular-humanista, como talvez seja mais facilmente aparente em Ahad ha-Am. Aqui, algumas categorias profanas, mais ou menos românticas ou pragmáticas, como o Volksgeist (gênio do povo), assumem o lugar de autoridade ético-religiosa. Como ex-seguidor de Ahad ha-Am, não tenho ilusões quanto à fragilidade dos fundamentos humanísticos para declarações religiosas, nas quais Deus pode aparecer, na melhor das hipóteses, como uma ficção, embora talvez como uma ficção necessária.
Muito recentemente, Alex Derczansky falou com bastante felicidade sobre os “Gêmeos Siameses da impotência judaica (impuissance), do humanismo e do fundamentalismo, onde a miragem do primeiro (le mirage humaniste) seria a resposta à esclerose do fundamentalismo[11]. Quando o coletivo ao qual a Revelação dirige seus pronunciamentos é ele próprio a fonte da qual eles emanam, como em Ahad ha-Am, então é de fato possível compreender as mudanças sofridas pelas manifestações do “gênio do povo” durante a evolução, mas certamente não sua legitimação. Os revolucionários, que negam tal pretensão efêmera, emergem subsequentemente como pioneiros de uma nova metamorfose, ao defender a visão histórica. O critério para o que deve ser considerado “judaico” torna-se questionável e as credenciais incertas. De tal perspectiva, torna-se até mesmo possível considerar o judaísmo não mais baseado em uma autoridade positiva, mas como um protesto eterno, uma incitação à revolução que deve ser avaliada positivamente, como “O Chamado Bíblico à Revolta”, o subtítulo de Escolha a Vida, de Eric Gutkind, uma das tentativas mais significativas de discutir a relação entre a Revelação Bíblica e o mundo moderno de 1950. Tampouco é surpreendente que tal tentativa tendesse a apontar na direção de uma anti-teologia cujas iniciativas teológicas estavam fadadas ao fracasso[12].
Na exploração anterior, parti da busca pelas fontes autoritativas às quais uma teologia judaica seria devida. Não parti da fé em Deus. A razão é óbvia. A convicção da existência de Deus, na medida em que não é evocada pela Revelação (e esse é o único caso em que está de alguma forma conectada com o conteúdo de tal Revelação), pode ser considerada inteiramente independente da Revelação. Nenhuma teologia flui dela. Ela pode se expressar em tantas formas diferentes quanto correspondam à multifacetada do espírito humano. Uma teologia como a que experimentamos recentemente, que nega a existência de seu “objeto”, seria, obviamente, autocontraditória, enquanto a afirmação de Deus é viável mesmo que nenhuma consequência teológica definitiva possa ser extraída dela. As consequências que se extraem nas diferentes religiões originalmente emanaram da consciência de que existe algo como Revelação, e só muito mais tarde foram traduzidas em teses filosóficas. O que resta disso em nosso mundo, o que permaneceu vivo ou é capaz de se manter neste mundo com força renovada — esta pode muito bem ser a questão que mais nos ocupa. A relevância da tradição religiosa, das Sagradas Escrituras, das tradições e afirmações a elas relacionadas, só pode reivindicar um valor heurístico, o valor de provocações as quais talvez se mostrem indissolúveis no caldeirão do niilismo moderno e repletas de possibilidades futuras.
Mesmo alguém que considera o Judaísmo não como algo estático, mas como um todo vital, variável e inesgotável o qual se desenvolveu sob a influência da ideia básica da unicidade de Deus, confronta a questão de como as consequências extraídas do Judaísmo em sua concepção básica mantêm seu significado em nossa época. Aqui, como tantas vezes, os ortodoxos têm mais facilidade; encontram as múltiplas doutrinas, conectadas ao longo dos milênios com a proclamação monoteísta divina, firmes e dogmaticamente ancoradas na Torá, seja ela escrita ou oral (Tradição). Para eles, o objetivo, como formulado por Samson Raphael Hirsch, consistia na “elevação da era ao nível da Torá, não na degradação da Torá ao daquela era”[13]. Mas para aqueles que não compartilham as premissas de Hirsch, provavelmente a maioria daqueles para quem a existência de Deus não apresenta problema, questões quanto ao conteúdo do Conhecimento monoteísta ou Revelação, e sua confrontação com a época, permanecem pertinentes. Os conceitos em que esses conteúdos foram formulados, e, portanto, também os valores cujo reconhecimento era obrigatório, são, em sua versão mais geral, provavelmente comuns a todos os teólogos do judaísmo. Sua compreensão detalhada, certamente, estava sujeita às mais profundas diferenças. Isso também se aplica aos três temas em que a relação de Deus com o mundo e com o homem foi tradicionalmente representada: os temas da Criação, Revelação e Redenção.
Já discuti o problema da Revelação, embora de uma perspectiva bastante metodológica. Na medida em que continha uma mensagem referente ao próprio Deus e às Suas obras, não importa como tenha surgido, referia-se, nos estágios originais do Judaísmo, precisamente à unicidade de Deus e à sua condição de criador. Uma grande medida de adaptação às novas circunstâncias já era necessária para descobrir a ideia da Redenção como parte essencial da Revelação[14]. Mas, uma vez aceita como um dos ingredientes da Revelação, a perspectiva da Redenção não se mostrou menos potente em seu efeito do que a ideia da criação do mundo por Deus “do nada”. É uma das peculiaridades da era atual que a ideia da Redenção, seja em sua forma pura ou em suas metamorfoses secularizadas, tenha sido mantida com muito mais vigor nas mentes de amplos círculos do que, por exemplo, a ideia da Criação. As mesmas pessoas que falam mais alto sobre a Redenção e suas implicações são, muitas vezes, aquelas que menos querem ouvir sobre o mundo como Criação. Contudo, nenhuma teologia judaica pode renunciar à doutrina de que o mundo é uma criação — como um evento único ou como um processo contínuo e sempre auto-renovável.
Qualquer judaísmo vivo, independentemente de seu conceito de Deus, terá que se opor ao naturalismo puro com um “não” definitivo. Terá que insistir que a noção atualmente tão difundida de um mundo que se desenvolve a partir de si mesmo e até mesmo é capaz de produzir independentemente o fenômeno do significado — o menos compreensível de todos — pode, certamente, ser mantida, mas não seriamente sustentada. A alternativa da falta de sentido do mundo é inquestionavelmente possível, desde que se esteja preparado para aceitar suas consequências. A frivolidade filosófica com que vários biólogos tentam reduzir categorias morais a biológicas — uma das características mais assustadoras do clima intelectual de nossa época — não pode nos enganar sobre a desesperança desse empreendimento. Basta estudar cuidadosamente uma dessas obras para perceber os equívocos, as petitiones principiipeti, as teologias latentes e as rachaduras e fissuras em tais edifícios intelectuais. Nunca será possível provar a suposição de que o mundo tem um significado extrapolando a partir de contextos limitados de significado, mas é a convicção básica que fundamenta a fé na Criação. Portanto, ela também se situa além das teorias físicas em constante mudança que, de acordo com sua própria natureza, nada têm a dizer sobre a origem dos elementos aos quais, em última análise, desejam rastrear todos os processos.
A fé judaica em Deus como Criador manterá seu lugar, além de todas as imagens e mitos, quando se trata de escolher uma alternativa: o mundo como Criação e o mundo como algo que se cria por acaso. A Criação é reconhecidamente inconcebível em termos do primeiro capítulo do Livro do Gênesis, nem o Apocalipse em termos de Êxodo 20, ou a Redenção em termos das imagens de Isaías — e, no entanto, todos eles contêm um núcleo que seria capaz de uma nova articulação mesmo em nossa época. Não há dúvida de que esses conceitos sofreram mudanças no curso do desenvolvimento histórico do judaísmo. Sua história pode ser escrita. O fato de os ortodoxos, surpreendentemente e sem oposição, terem aceitado até mesmo as especulações mais ousadas, como aparecem, digamos, no segundo volume da Estrela da Redenção de Rosenzweig, que talvez pudessem ser descritas como variações desses temas, atesta eloquentemente como um renascimento contemporâneo dos antigos ditames poderia prevalecer. Que isso só foi possível dentro de uma estrutura de reconhecimento da tradição judaica quanto à observância dos mandamentos da Torá é demonstrado pelo fracasso de esforços semelhantes de Martin Buber, que dispensou essa estrutura e, portanto – em contraste com Rosenzweig – tornou-se inaceitável para os judeus ortodoxos. Que sua afirmação de Deus, nas formas apropriadas a eles, continha um forte apelo para a nossa época é certo – apesar de seu caráter exegético frequentemente duvidoso. Parece-me evidente que a fé (qualquer que seja a nuance que se possa atribuir a essa palavra) em Deus tem uma conexão particularmente estreita com a concepção do mundo como Criação.
A famosa questão de por que algo existia em vez de não haver nada, proposta por filósofos existencialistas de Schelling a Heidegger, não era respondível fora e independentemente da questão sobre Deus, e este, é claro, era o significado que tinha originalmente, ou seja, em Schelling. Deus como Criador era uma tese mais fundamental do que Deus em Sua capacidade de Revelador ou Redentor. É possível imaginar uma teologia na qual a única Revelação seja a própria Criação, e de fato muitos crentes na Revelação a conceberam como tal. Uma tese adicional — independente no sentido de não ser dedutível da anterior — que foi estabelecida pelas religiões monoteístas, embora em formas muito diferentes, é que outra Revelação de Deus à Sua criatura ocorreu além do ato único ou repetido da Criação que tornou o processo do mundo possível. Aqui, a criatura era o ser humano que, dotado de razão, por mais limitada que fosse sua razão, possuía, ainda assim, um instrumento capaz de realizar as coisas mais elevadas. No sentido religioso, certamente, essa realização suprema não era o que o homem moderno, nosso contemporâneo, entende por ela: a penetração científica no próprio edifício da Criação. Era, antes, a capacidade de perceber a Revelação, assimilá-la e penetrá-la. Essa capacidade poderia, reconhecidamente, incluir também a outra, e não é por acaso que a avaliação da razão sempre foi um dos problemas centrais das religiões baseadas na Revelação.
Uma superestimação da razão, que proporcionava um frequente ponto de encontro comum para “racionalistas” e “místicos”, contrastava com uma depreciação cética que enfatizava e, muitas vezes, exagerava as limitações da razão. Esta última buscava definir a Revelação e a razão como dois polos opostos, mas não conseguia se esquivar do fato central de que a Revelação exigia que ela fosse acessível à razão do homem. Aqui, também, no judaísmo, os cabalistas eram aqueles para quem existia uma afinidade específica entre a Criação e a Revelação, visto que ambas eram concebidas como a linguagem na qual o Ser divino se comunicava. E eram os cabalistas que consideravam o pensamento racional um processo linguístico. Desenvolvi essas conexões com mais detalhes em outro lugar[15]. Seja o ímpeto criativo é de natureza linguística, o qual, portanto, uma infinidade de línguas permeia o mundo, que todas as estruturas que descobrimos nele têm uma tendência à linguagem — isso pode ser considerado uma formulação extravagante da base comum da Criação e da Revelação, mas é uma tese que, mesmo nesta forma provocativa não perdeu seu significado para nós.
O mesmo se aplica a outro ponto não menos essencial da teologia judaica: a proibição de fazer imagens, cujo significado fundamental dificilmente pode ser superestimado. A unicidade de Deus, uma vez confrontada com a multiplicidade dos deuses míticos, era a condição para o fato de que Ele era impossível de visualizar. Este foi um dos passos mais revolucionários na história da humanidade. A veneração de um Deus sem imagens simultaneamente lançou dúvidas sobre o caráter visualizável que parecia pertencer a tudo o que foi criado. Nada criado era digno de representar o que estava além da visualização. Ali também estava virtualmente incorporada uma possível conclusão que transcendia em muito a compreensão do mundo bíblico e medieval. O aspecto visualizável do mundo não é mera pretensão; o que é visualizável não é meramente uma aproximação incapaz de expressar a Criação? A própria Criação não está, à sua maneira, tão além da visualização quanto o Criador? A tese de um mundo em princípio além da visualização, que no século XX revolucionou a física não menos do que as ideias de Copérnico e Newton o fizeram anteriormente, não corresponde à noção de Criação resultante da ideia da unidade invisualizável de Deus? O nome de Deus, que os místicos redescobriram em toda a Criação e em toda a Revelação, era o fator invisualizável transmitido por Deus à Sua criação ou comunicado nela. Ele privava o aspecto visualizável do mundo de seu poder de evidência; tais coisas só poderiam ser atribuídas ao mundo metaforicamente.
A unidade da qual o nome de Deus dava testemunho estava além de conceitos como “estático” ou “dinâmico”. Seu ser era simultaneamente movimento. Nos diferentes estágios da teologia tradicional do judaísmo, ele poderia, portanto, ser concebido tanto em uma categoria quanto em outra. Ambas não são mais do que aspectos unilaterais da própria questão.
Correspondente a isso está a discussão basicamente estéril e interminável sobre os chamados atributos de Deus, na qual não vou entrar aqui. Isso se aplica sobretudo a duas teses que estão conectadas às noções tradicionais da doutrina dos atributos e que só poderiam surgir por meio de uma transferência totalmente impraticável para Deus de categorias puramente seculares. Assim, é claro, elas imediatamente entraram em conflito desesperado entre si, um conflito impossível de resolver por qualquer tipo de acrobacia verbal.
O que tenho em mente são os atributos de onipotência e providência, que são supostamente evidentes nos atos de Deus e que estão em flagrante contradição com a liberdade humana de decisão moral. Essa liberdade de decisão, no entanto, é a base do mundo moral do judaísmo, que se mantém e cai com ele, hoje como há 3.000 anos. Hoje em dia, a menos plausível de todas as afirmações “dogmáticas” da teologia judaica é a tese da providência de Deus, que em Sua infinita e abrangente sabedoria supostamente previu não apenas o significado da Criação, mas também seu desenvolvimento em cada detalhe e em cada estágio. Mesmo aqueles convencidos da existência de Deus terão dificuldade em aceitar essa doutrina. O Deus vivo da religião judaica, o Criador, que, tendo se revelado, também pode ser abordado, não apenas iniciou a Criação, mas participa e está presente nela a cada momento de uma maneira insondável para nós. Como diz a oração diária: “Em Sua bondade, Ele renova a obra da Criação a cada dia”. Mas será que a “bondade” mencionada aqui pode realmente produzir algum bem que já não tenha sido acumulado no primeiro ato da Criação? Esse processo não contém momentos em que algo novo, sempre renovado, pode surgir? A liberdade de Deus nesses sempre renovados começos não é tão imprevisível quanto a do homem em suas decisões morais?
O paradoxo necessariamente engendrado ao investir Deus com atributos humanos é estéril; duvido que contribua de alguma forma para a atitude religiosa que se manifesta na visão do mundo como Criação de Deus. Nada se ganha com sua dissecação dialética em “atributos”. Permanece intocada por esta discussão a questão quanto ao significado da Criação, se ela tem algum significado, e se tal significado (que não é a mesma questão) também seria inteligível para os seres criados — e essa ainda é a questão no cerne da religião. E mesmo aqueles que afirmam a ideia da Criação estão indecisos quanto se realmente existe uma estrutura dentro da qual todas as coisas criadas se desenvolvem uniformemente e em um sentido definido (ou seja, o que o Judaísmo chama de plano da Criação), ou se a Criação consiste em impulsos sempre novos que se desdobram apenas no próprio desenvolvimento e no qual a Criação, movida pelo sempre novo, eventualmente reverte a si mesma.
Em relação à primeira suposição, eu tenderia a compartilhar a opinião — apesar de seu caráter metafórico — de Erich Neumann, que disse: “Por que a Criação? A resposta ‘o que não fosse refletido brilhasse apenas em si mesmo, brilhasse em infinita diversidade’ é antiga, mas me satisfaz”[16]. Em linguagem não metafórica, é claro, isso não significa nada além de que não podemos formular esse significado, mesmo que o afirmemos. Em relação à segunda suposição, no entanto, a ideia de Criação é de fato impensável sem estar conectada com a de Redenção. Pois aquilo que se desdobra definitiva e perfeitamente na Criação nada mais seria do que o estado de Redenção. O sempre novo nela implicaria uma promessa na qual ela se apresenta não como um impulso oculto, mas como cumprimento aberto. Esse desenvolvimento, que tem seu início no mundo como Criação, certamente não segue um curso reto. É um processo dialeticamente constituído, composto de contradições e fatores retardantes, seja de natureza ontológica ou, no nível humano, moral.
Antes de abordar este aspecto da Redenção como um conceito que tem um interesse tópico particular para nós, gostaria de dizer algo mais sobre o conceito de Criação. A noção de Criação contínua está conectada a um conceito importante através do qual os cabalistas tentaram apreendê-lo intelectualmente por meio de uma manobra ousada. Como a Criação era ao mesmo tempo um milagre, eles buscaram tornar esse milagre inteligível por meio do conceito de tzimtzum (contração) — embora a um preço, o de abandonar o conceito da imutabilidade absoluta de Deus. Essa imutabilidade, certamente, por mais que tenha sido dogmaticamente enfatizada e formulada, sempre foi apenas uma expressão de impotência diante da infinita variedade de Deus, que (como já mencionei) poderia muito bem ser descrita em metáforas humanas como a mobilidade absoluta de Deus. O universo de espaço e tempo, esse processo vivo que chamamos de Criação, parecia aos cabalistas ser inteligível apenas se constituísse um ato de renúncia de Deus no qual Ele estabeleceu um limite para Si mesmo. A criação a partir do nada, do vazio, não poderia ser outra coisa senão a criação do vazio, isto é, da possibilidade de pensar em qualquer coisa que não fosse Deus. Sem tal ato de autolimitação, afinal, haveria apenas Deus — e obviamente nada mais. Um ser que não é Deus só poderia se tornar possível e se originar em virtude de tal contração, tal retração paradoxal de Deus para dentro de Si mesmo. Ao postular um fator negativo em Si mesmo, Deus liberta a Criação.
Este ato, no entanto, não é um evento único; ele deve se repetir constantemente; repetidamente, uma corrente flui para o vazio, um “algo” de Deus. Este, certamente, é o ponto em que a horrível experiência da ausência de Deus em nosso mundo colide irreconciliavelmente e catastroficamente com a doutrina de uma Criação que se renova. A radiação da qual os místicos falam e que deve atestar a Revelação de Deus na Criação — essa radiação não é mais perceptível pelo desespero. O esvaziamento do mundo em um vazio sem sentido, não iluminado por nenhum raio de significado ou direção, é a experiência daquele a quem eu chamaria de ateu piedoso. O vazio é o abismo, o abismo ou a fenda que se abre em tudo o que existe. Esta é a experiência do homem moderno, extraordinariamente bem retratada em toda a sua desolação por Kafka, para quem nada restou de Deus além do vazio — no sentido de Kafka, certamente, o vazio de Deus.
A redenção foi, a princípio, um conceito histórico mantido em um equilíbrio precário entre elementos politicamente nacionais e universais, mas posteriormente tornou-se muito mais. A esperança pelo totalmente novo, permeando e se apresentando abertamente, na Criação como tal e na Criação como arena da história, competiu aqui com a esperança pela restituição de um todo perdido que havia se despedaçado. Tal estado de paraíso ou felicidade nacional era sonhado como uma realidade passada, embora nunca tenha existido.
Parece particularmente notável que a ideia messiânica, o terceiro elemento naquela trilogia de Criação, Revelação e Redenção, exerça um poder ininterrupto e vital até hoje. A Criação, tão intimamente ligada à convicção da existência de Deus, recuou ou desapareceu, em uma extensão extraordinária, da consciência contemporânea. Fora da minoria fundamentalista, a Revelação persiste apenas em reinterpretações iluministas ou místicas que, por mais legítimas que sejam, não possuem mais a veemência original que promoveu sua enorme influência na história da religião. No entanto, a ideia messiânica manteve precisamente essa veemência. Apesar de todas as atenuações, provou ser uma ideia da mais alta eficácia e relevância, mesmo em suas formas secularizadas. Ela foi mais capaz de suportar uma reinterpretação no âmbito secular do que as outras ideias. Enquanto há mais de 100 anos tal reinterpretação ainda era considerada uma completa falsificação da ideia judaica de Redenção e messianismo — e justamente pelos defensores da escola histórica no judaísmo — ela se tornou o centro de grandes visões na era atual. Certamente, as tensões entre as possíveis concepções do conteúdo da ideia messiânica foram particularmente fortes ao longo dos últimos dois milênios. Em sua profusão, as fontes de nossa tradição permitiram a extrapolação de elementos muito diferentes, até mesmo contraditórios, em qualquer época e a sua colocação no centro. Em outro lugar, tratei de vários desses aspectos em detalhes[17].
A tradição judaica preserva um conflito constante — interminável e jamais resolvido — entre elementos opostos no messianismo. Mesmo hoje, a exposição de tais tendências pode gerar controvérsias acaloradas. As principais são o conflito entre tendências apocalípticas e aquelas que visam à sua abolição, bem como entre tendências restauradoras e utópicas. O messianismo poderia ser representado sobriamente, quase à maneira da Realpolitik, com um leve toque utópico, como o foi por Maimônides, que via seus traços apocalípticos e radicalmente utópicos com grande desconfiança e buscava eliminá-los completamente ou, pelo menos, reduzi-los ao mínimo. No entanto, também foi possível trazer os elementos apocalípticos à tona, como nas impressionantes codificações das obras de Isaac Abarbanel e do Maharal de Praga. A Redenção poderia ser entendida como um processo histórico — como a culminância ou o colapso da história — cujas revoluções apocalípticas eram necessárias antes que a novidade total de um mundo renovado pudesse se constituir ou ser formado por Deus. Mas a Redenção também poderia ser interpretada em um sentido muito mais amplo: como a Redenção da natureza, da multiplicidade da Criação buscando uniformidade.
A visão da Cabala Luriânica foi ainda mais longe: ela abrangia toda a criação. Nela, a soma total do processo mundial, começando com tzimtzum (contração), era representada como um drama gnóstico, um drama de fracasso e reconstrução, mas era preciso alcançar o que havia sido seminal nele e nunca havia existido antes. Aqui, a Redenção não era apenas o objetivo da história, que lhe dava significado, mas o objetivo de todo o universo como tal. Neste caso, o Reino de Deus não era mais apenas a realização do bem em nossa Terra, de um estado em que o bem seria feito por um impulso natural. Era a atualização deste reinado em todas as esferas infinitas da criação que são afetadas pela shevirat hakelim (a quebra dos vasos). Por mais extravagante que nos impressione esse entusiasmo pela redenção cósmica de tudo o que existe e não está no lugar certo, mas sim no exílio, tão veemente é o apelo inerente a essa noção.
São precisamente os aspectos extravagantes da visão messiânica que desempenharam um papel tão importante em sua transformação em profana e secular, como se pode deduzir ainda hoje dos escritos de um pensador como Ernst Bloch. O otimismo, ainda que apenas escatológico, preservado nas diversas formas dessas reinterpretações seculares superou os sinais de alerta lançados contra ele pela razão e pela história. O messianismo em nossa época prova sua imensa força precisamente nessa forma de apocalipse revolucionário, e não mais na utopia racional (se assim se pode chamar) do progresso eterno como substituto iluminista da Redenção. Essa versão tem muito pouco em comum com os conceitos de realização de valores éticos no conceito ideal de um futuro messiânico, tal como era considerado central, por exemplo, por Cohen, para a ideia messiânica[18]. A moralidade continua a aparecer nela apenas como uma fronteira muito distante. Ela escapa ao relativismo dos conceitos morais empíricos em um mundo imperfeito ao abandoná-los e por sua rejeição niilista. Este já era o caso no messianismo herético dos seguidores de Sabbatai Tzvi, que forneceu à nossa história um exemplo de messianismo não mais teórico, mas aplicado. Não é alheio a isso que a utopia da revolução transformadora do mundo, que deve constituir o primeiro começo real da experiência humana autêntica, desenvolve seu próprio código moral.
Em um ponto importante, a apocalíptica secularizada — ou teoria da catástrofe — da revolução, que desempenha um papel tão importante nas discussões contemporâneas, permanece relacionada ao impulso teológico judaico em que se originou (embora se recuse a admitir isso). Trata-se da rejeição da internalização radical da Redenção. Não que a história do judaísmo tenha sido desprovida de tentativas — particularmente no misticismo, como era de se esperar — de descobrir tal dimensão também no messianismo judaico. Mas, em todas as suas formas históricas, o judaísmo rejeitou completamente a tese de uma interioridade da Redenção que seja, por assim dizer, quimicamente pura. Uma interioridade que não se manifestasse também nas coisas mais externas e que, de fato, não estivesse completamente conectada a elas, não contava para nada aqui. O impulso em direção ao núcleo era, ao mesmo tempo, um impulso para fora. Afinal, aquela restituição de todas as coisas ao seu devido lugar, que é a Redenção, reconstrói um todo que desconhece tal separação entre interioridade e exterioridade. O elemento utópico do messianismo, que reina tão supremo na tradição judaica, preocupava-se com o todo e nada além deste todo[19].
A diferença entre a moderna “teologia da Revolução”, como nos chega de tantas direções, e a ideia messiânica do judaísmo consiste, em grande medida, numa transposição de terminologia. Em sua nova forma, a história se torna pré-história; a experiência humana da qual falamos acaba não tendo sido a autêntica, sendo esta última acessível apenas a uma humanidade redimida. Isso simplificou as discussões sobre o valor, ou a falta de valor, da história anterior (que carecia do elemento essencial da liberdade e autonomia do homem) e, assim, colocou todas as discussões sobre valores humanos reais e autênticos no plano da escatologia. Isso abriu porta após porta para uma utopia desinibidamente otimista, que nem mesmo poderia ser descrita pelos conceitos derivados de um estado não redimido do mundo. Essa é a atitude por trás dos escritos dos mais importantes ideólogos do messianismo revolucionário, como Ernst Bloch, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, cujos laços, reconhecidos ou não, com sua herança judaica são evidentes.
No entanto, na versão judaica do messianismo que, desde a era dos Profetas, não perdeu a visão de uma humanidade renovada, libertada e pacificada, tal visão permanece intimamente conectada com o Reino de Deus. A aliança a qual une Deus e o homem não apenas na Revelação, mas novamente na Redenção confirma tanto a Revelação quanto a Redenção como dois aspectos do mesmo fenômeno. O verdadeiro Reino de Deus é a atualização do verdadeiro humanismo. Infelizmente, o uso moderno do termo “humanismo” implica um duplo sentido insuportável e altamente enganador. Quando, nos séculos XVIII e XIX, humanismo e humanidade foram mencionados, não se pretendia contrastar com uma orientação teísta. Naquela época, o verdadeiramente humano ainda era a imagem de Deus no homem, que precisava ser trazida à tona e realizada. Só muito mais tarde surgiu um uso oposto, no qual o humanismo pressupunha uma visão agnóstica do mundo, uma imagem do homem na qual não havia mais espaço para Deus. Em vez disso, obtemos um conceito extravagante da dignidade do homem, que realiza sua própria Redenção.
Mas há outro ponto em que as concepções secularizadas e religiosas do messianismo — em seu desenvolvimento recente — concordam: a liquidação da pessoa do Messias como portador da mensagem da Redenção, que encontra nele sua expressão e realização. Esse elemento pessoal está, sem dúvida, ligado às origens históricas da esperança messiânica. Ela se tornou irrelevante para amplos círculos de judeus, mesmo para alguns que nutrem fortes sentimentos religiosos, e sua única utilidade restante é simbólica, como um resumo de tudo o que a ideia messiânica implica. Para a consciência religiosa, o “filho de Davi”, que renovaria o reinado davídico e, assim, ao mesmo tempo, estabeleceria o Reino de Deus na Terra, não constituía um componente necessário da expectativa messiânica. Certamente, certas características do messianismo que lhe haviam assegurado grande popularidade foram, assim, erradicadas. Estas são as características que, nas profecias do servo de Deus como figura messiânica, apelaram aos sentimentos religiosos de tantas gerações, precisamente em virtude de seus inquietantes e estimulantes paradoxos.
Embora essa figura tenha sido retratada aqui como extremamente pessoal, até mesmo trágica, sempre houve uma tendência a ver nela não a encarnação de uma personalidade messiânica, mas sim a de alguém do povo de Israel como portador dessa profecia. Em seu destino histórico, teria que pagar o alto preço por ter mantido a fé, ao longo de sua história, na profecia de um Estado que transcende a história, talvez até mesmo a menosprezando. Tal reinterpretação abriu o caminho para uma generalização ainda maior. Em um mundo secularizado, a própria humanidade sofredora, ou o proletariado — proclamado pelos fundadores do socialismo, em um fantástico tour de force, como o verdadeiro representante da humanidade — poderia tomar o lugar do servo sofredor de Deus. No entanto, mesmo sem essa extensão e reformulação “humanista”, o messianismo desenvolveu uma dialética destrutiva própria também dentro do judaísmo.
Durante um século inteiro, o passatempo favorito da teologia liberal do judaísmo foi usar a ideia messiânica para proibir os judeus de viverem suas vidas no plano histórico. Para isso, eles poderiam, é claro, basear-se em uma tendência muito mais antiga dentro do judaísmo ortodoxo, que fazia da necessidade histórica uma virtude e proibia o povo judeu de qualquer iniciativa histórica, embora o suposto mandamento da passividade histórica fosse dificilmente compatível com os impulsos mais profundos do messianismo e, de fato, representasse sua perversão. Nenhum dos muitos representantes se saiu melhor em expressar isso em toda a sua contradição do que Cohen, que escreveu: “A perda do Estado nacional já está condicionada pelo messianismo. Mas esta é a base da tragédia do povo judeu [itálico no original – G. S.] em toda a profundidade histórica. Como pode um povo existir e cumprir sua tarefa messiânica se for privado da proteção humana oferecida por um Estado ao seu povo? E, no entanto, esta é exatamente a situação do povo judeu e, portanto, deve ser o significado da história dos judeus, se de fato esse significado reside no messianismo”[20]. Uma experiência histórica de intensidade incomparável revelou o caráter sinistro dessas frases (assim como de tantos axiomas teológicos liberais). Essa tragédia foi muito vazia e muito barata em suas adaptações a uma era de ilusões burguesas. No entanto, permanece inegável que a discrepância reconhecida, embora pervertida, por Cohen entre a história real dos judeus, mesmo em sua reinserção na história contemporânea, e o impulso messiânico que acompanha essa história ao mesmo tempo em que a enfraquece, representa um problema genuíno que qualquer teologia judaica em nosso tempo considerará inescapável.
IV
Tenho falado de conceitos religiosos básicos que, mesmo dentro de um judaísmo que não repudia sua tradição, contêm problemas que me parecem inevitáveis fora do fundamentalismo. Várias de suas reinterpretações fizeram concessões à era do secularismo. Algumas — sobretudo aquelas na esfera da concepção do mundo como Criação — não podem prescindir de uma contradição e confrontação fundamental e inescapável do secularismo. Do ponto de vista do humanismo secularizado, esta é sua fraqueza; do ponto de vista de uma filosofia da história, que permanece consciente da natureza questionável de um mundo totalmente secularizado, esta é sua força.
Esses conceitos, no entanto, não estavam no mesmo nível dos conceitos morais subjacentes aos mandamentos da Torá na medida em que estes últimos pudessem ser entendidos como significativos e na medida em que também divulgassem tal significado nas próprias fontes As ações do homem, mesmo quando direcionadas ao seu semelhante e à comunidade, são determinadas por conceitos, por uma escala de valores, originários da relação do homem com Deus.
As exigências da ética religiosa estão em conflito com um mundo secularizado. Tais valores determinantes são as exigências de temor a Deus, amor a Deus, humildade e, acima de tudo, de santificação, que não podem ser imaginadas como alheias à esfera religiosa. Conceitos como reconciliação, justiça e fidelidade (emuná) têm um significado, embora muito restrito, no nível puramente social; podem ser imaginados sem qualquer referência a Deus. Quanto à santidade e à santificação, e talvez mais do que qualquer outra coisa ao temor a Deus, os valores mais elevados da ética judaica, eles não podem ser postos em prática dentro da estrutura de uma ética puramente mundana. As características ou aspectos mais proeminentes da concepção das ações de Deus no mundo, a saber, severidade e compaixão, foram, no mundo em que vivemos, transferidos das mãos de Deus para as dos materialistas e psicanalistas.
Malcolm Muggeridge, um contemporâneo nosso com o dom da sagacidade mordaz, expressou essa situação da seguinte forma: em vez das antigas questões teológicas, ele considera que a nossa é uma época de “freudianos em busca de seu Marx e marxistas em busca de seu Freud”[21]. O judaísmo certamente reconhecia a existência de uma esfera secular a ser imbuída de santidade. O medo e o amor eram poderes que, sob o ditame da demanda pela santificação da atividade humana, alcançaram um conteúdo religioso que ia muito além da experiência dada ao homem em sua vida natural. A esfera profana, que sobreviveu sozinha em uma secularização cada vez mais disseminada da condição humana, não tinha utilidade para um chamado como o da santificação. Pois tal chamado pressupõe uma esfera que transcende os valores imanentes, preenchendo-se no curso do desenvolvimento e permanecendo necessariamente relativa a este último. Esta era a exigência moral e o chamado do judaísmo.
O discurso secularizador da “santidade da vida” é uma quadratura do círculo. Ele contrabandeia um valor absoluto para um mundo que jamais poderia tê-lo formado a partir de seus próprios recursos, um valor que aponta sub-repticiamente para uma teleologia da Criação que é, afinal, repudiada por uma visão racionalista puramente naturalista do mundo. Mas, por outro lado, até onde se pode ver, esse processo de secularização de todos os aspectos do humano carrega seu próprio ímpeto e não pode ser detido; portanto, nem o pode ser declínio da autoridade religiosa visível. Sociologia, tecnologia e psicologia parecem levar vantagem. O otimismo desinibido inerente à expectativa de que a aplicação de descobertas científicas progressivas voltadas para o domínio da natureza (a chamada revolução tecnológica) também resolveria problemas de valores é completamente infundado. No entanto, parece que isso terá que se esgotar até que reconheça claramente suas limitações que, é claro, são necessariamente as mesmas do conhecimento científico em geral. Tal conhecimento ainda pode ser capaz de revelar fatos profundamente ocultos ou dar a esses fatos uma coerência teórica, mas não pode estabelecer valores. Isso, no entanto, levanta a questão se o progresso nessas áreas, partindo da expectativa de torná-las autárquicas, poderia levar ao conhecimento de que elas são fechadas em si mesmas ou abertas. No estado atual das coisas, isso não pode ser determinado, embora possa ser de importância decisiva.
Se este “mundo tecnológico” for fechado em si mesmo e não deixar espaço para outras perspectivas, então o conflito entre tal mundo e o mundo do judaísmo persistirá com veemência inabalável. Em tal mundo, o homem seria um instrumento indefeso de forças avassaladoras e, ao mesmo tempo, atomizado e isolado, desprotegido diante da solidão e da insensatez que o oprimem e sufocam. Se, com certeza, as áreas que designei como tecnologia, sociologia e psicologia fossem abertas ou porosas, de modo que algo mais pudesse se tornar transparente nelas, essa seria uma situação cuja atitude religiosa poderia se desenvolver em um diálogo frutífero com elas.
A urgência da questão quanto à importância da secularização para o judaísmo contemporâneo é evidente. Podemos adotar a visão de que o judaísmo tem uma posição positiva em relação a tal processo que, por assim dizer, o complementa, e tudo isso sem entrar em conflito com ele? Poderíamos talvez dizer com Jacob Neusner: “Os céus proclamam a glória de Deus. O mundo revela a Sua santidade. Através das mitzvot (boas ações), respondemos ao que os céus dizem; através da Torá, apreendemos as revelações do mundo. O Judaísmo, portanto, regozija-se com o convite da cidade secular. Nunca conheceu verdadeiramente outro mundo; e, portanto, sabe o que seus imperativos exigem” [itálico meu, G.S.][22]. Contra isso, não se deveria sustentar que a demanda, partindo do conceito puramente religioso de santidade, pela santificação do secular por meio de um cumprimento da Torá baseado em uma legitimação divina, representa precisamente o oposto da secularização real e é incompatível com os valores imanentes ao mundo da nova escala de valores que o naturalismo busca estabelecer? Na sociedade judaica contemporânea, essa questão, a qual se intromete nas mais variadas facetas, não pode de forma alguma ser contornada.
Se vivemos em um mundo em que a Revelação como posse positiva foi perdida, a primeira pergunta é: isso não significa a liquidação do judaísmo na medida em que a Revelação é entendida como uma característica específica do povo judeu, como a forma como se apresentou na história mundial? O slogan “como todas as nações” não é, então, a solução, já que muitos o consideram o surgimento do sionismo? E, além disso, como pode o temor a Deus ser não apenas um valor que se realiza no mundo como tal — o mesmo que a maioria dos valores em nível religioso —, mas também um valor imanente ao mundo, originário dele? Isso foi possível na esfera chamada theologia naturalis pela teologia cristã, porque aqui havia uma teologia racional do conhecimento de Deus que derivava seus argumentos da meditação no próprio mundo. A teologia judaica, embora evitasse a expressão “teologia natural”, seguia em grande medida a mesma linha.
Onde, no entanto, tal dimensão da teologia deixa de existir, como ocorre na visão puramente secular do mundo, parece muito difícil antecipar uma resposta positiva a essa questão. Mas será que a visão agnóstica puramente naturalista, que admite o secularismo como a única possibilidade, pode ser conciliada com a afirmação feita por tantos pensadores de que há sentido mesmo na esfera secular? Muito depende da resposta a essa questão, cuja discussão produz tantas disputas.
O estabelecimento de valores depende da aceitação de um significado a eles atribuído. Filósofos do secularismo puro, como Guyau há cem anos e Walter Kaufmann hoje, têm tentado compreender o fenômeno do significado por meio de considerações naturalistas. O argumento de que isso era, em última análise, uma tentativa de se livrar do atoleiro por conta própria, foi refutado pelos neo-hegelianos e neomarxistas com um apelo à dialética, que supostamente põe fim ao dogmatismo de tais controvérsias. Considero difícil acompanhar esses argumentos, mas, de qualquer forma, deve-se admitir que, com base nesses pressupostos, um encontro e uma discussão frutíferos são possíveis entre a religião, cuja mensagem começa e termina com a significância do mundo, e o secularismo. De fato, se fosse possível seguir a linha de argumentação dos reconstrucionistas judeus, talvez até houvesse um entendimento entre os dois. Os desenvolvimentos das últimas décadas, contudo, não justificaram o otimismo que inspirou expectativas desse tipo. A posição do homem da era secularista em relação à sua sociedade é mais indefesa do que nunca em seu confronto com o niilismo puro e simples.
Tem sido frequentemente dito que, ao longo de milênios, o judaísmo provou ser infinitamente adaptável sem perder seu ímpeto original. Adaptou-se a formas muito diferentes de sociedade sem alterar essencialmente seus valores. Provou sua vitalidade em uma sociedade agrária na antiguidade, em uma sociedade medieval onde as massas judaicas eram urbanizadas e suas condições de vida eram determinadas por ocupações totalmente diferentes, em uma sociedade absolutista e, finalmente, em uma sociedade industrialista. Por que, então, não deveria prevalecer também em uma era tecnológica?
Se a tecnologia é a dominação e a exploração da conexão funcional entre as coisas, poder-se-ia dizer que não nega tanto a esfera religiosa, mas a exclui per definitionem. Mesmo a tecnologia mais desenvolvida não pode fazer uma afirmação sobre nada que não entre em tal conexão funcional. Sua força, embora se manifeste de forma tão preponderante na vida cotidiana, ainda permanece sujeita às condições que governam a ciência em geral e, portanto, também aos seus eventuais limites. As prioridades de tal dominação e exploração, em outras palavras, a “moralidade” da tecnologia e, portanto, também a moralidade de uma era completamente mecanizada — tudo isso ainda é determinado por interesses que, não importa como se olhe, estão além dessa tecnologia. A moral burguesa, a moral anarquista da revolta, a moral de combate da revolução — todas derivam sua legitimação de outras fontes que não os próprios desenvolvimentos científicos ou técnicos.
Deveriam, então, os valores que regem a “sociedade permissiva” americana de hoje, por exemplo, ser aceitos como consequência lógica da secularização radical? Ou existe alguma chance para aquelas forças que estão decididas a se opor a tal sociedade com suas próprias demandas? Na verdade, mesmo colocar essa questão já significaria respondê-la afirmativamente – não fosse o ceticismo, exposto acima em maiores detalhes, que é o resultado da desintegração do dogma da Revelação. Pode aquilo que somos capazes de aprender das fontes desses três estágios do judaísmo discutidos acima persistir inalterado, especialmente em suas formulações e demandas morais, quando a sanção da Revelação se tornou duvidosa ou quando só pode ser mantida em formas místicas? Considero particularmente urgente colocar essa questão para discussão.
Gostaria de dizer algo sobre o slogan acima mencionado “como todas as nações”, que se tornou do maior interesse contemporâneo através do sionismo, através da construção pelos judeus de uma nova sociedade em sua própria terra, uma sociedade com plena responsabilidade por seu sucesso ou fracasso, por nossas relações com o mundo ao nosso redor, bem como pelos valores que determinarão essa construção. Nunca estive entre aqueles que aceitaram isso como uma formulação legítima do objetivo do sionismo. Estou bastante convencido de que a concretização desse slogan só poderia significar a transição para o declínio ou mesmo o desaparecimento do povo judeu. A normalização, com a qual todos nós que apoiamos a causa sionista sonhávamos, referia-se ao estabelecimento de condições sociais nas quais o apelo daqueles imperativos que por milênios foram o fundamento, a justificativa e, em tempos de catástrofes fatais, até mesmo a confirmação de nossa existência, não seriam distorcidos, falsificados e tornados em grande parte sem esperança pela força das circunstâncias. Muitos de nós acreditávamos que as formas em que esses imperativos poderiam aparecer poderiam mudar; nunca acreditávamos seriamente que eles iriam ou mesmo poderiam desaparecer do centro de nossa existência. Admito que essa crença inabalável em um centro moral específico, que confere significado à história mundial do povo judeu, transcende a esfera da pura secularização. Eu nem mesmo negaria que nela um resquício de esperança teocrática também acompanha essa reentrada na história mundial do povo judeu, que ao mesmo tempo significa o retorno verdadeiramente utópico à sua própria história.
Essa esperança permaneceria inalterada mesmo por um processo de secularização completa. Pois, em uma tentativa de liquidação dos valores originários da esfera religiosa, ainda se tornaria evidente quais desses valores poderiam resistir à liquidação. Tal tentativa de liquidação, sem dúvida, é perigosa como tudo o que é criativo. Isso levaria a um ponto de dissolução de tudo o que era específico dos judeus como um todo, ou então a um ponto em que isso se transformasse em algo positivo, mais firme do que toda a tradição, porque seria menos esperado e bastante imprevisível das perspectivas da esfera da secularização. Considero isso uma das grandes chances para o judaísmo vivo – na verdade, a chance decisiva – de que ele não tente se esquivar dessa escolha com compromissos fáceis, mas sim que a enfrente abertamente e na arena desprotegida do engajamento histórico. Em outras palavras, estou convencido de que, por trás de sua fachada profana e secular, o sionismo envolve conteúdos religiosos potenciais, e que essa potencialidade é muito mais forte do que o conteúdo real que encontra sua expressão no “sionismo religioso” dos partidos políticos. Por quê? Porque a questão central sobre a dialética da Tradição viva — e no contexto do Judaísmo isso significa, sobretudo, a tradição haláchica — será colocada de forma mais frutífera em Israel com um elemento de dúvida do que da maneira como é colocada lá, a partir de uma posição de força, hoje fortalecida por leis covardes. O caráter secular do movimento sionista sempre contradisse seu envolvimento inescapável com problemáticas religiosas. Sujeito a ataques violentos de ambos os lados, dos ortodoxos, de um lado, e dos liberais e assimilacionistas, de outro, e condenado como supostamente não judaico por ambos os lados, de acordo com suas respectivas doutrinas de salvação, ele teve que desenvolver um senso vívido do que ocorreria em seu confronto com a história, independentemente de seus detratores.
Enquanto o sionismo estava em sua fase retórica, pôde proporcionar um lar relativamente pacífico para os mais variados slogans. No momento em que a visão sionista estava prestes a se concretizar, logo ficou claro que seu apoio mais ativo vinha do setor que mais se inclinava ao secularismo. O Estado de Israel jamais teria se tornado realidade sem ele. Mas quanto mais forte se tornava a posição desse setor, mais fortes também se tornavam as tendências à reconsideração de pontos de vista. A atitude em relação à tradição, em construção ou destruição, tornou-se inescapavelmente uma questão central — verdadeiramente candente e ainda não resolvida — que ainda deixa tudo em aberto.
É evidente que, também no nível religioso, a situação em Israel difere daquela da Diáspora. O choque sofrido pelo Holocausto por todos os judeus que tinham consciência de sua identidade, e por muitos judeus que não tinham, afetou todos os centros da vida judaica. O quão profundamente eles foram afetados ainda não é compreensível hoje, embora possamos supor que os efeitos posteriores, repercussões e reverberações deste evento forneçam o pano de fundo e estejam presentes em tudo o que está acontecendo agora. Na Diáspora, esses efeitos são bastante difusos. Eles não se cristalizaram visivelmente em torno de um foco, embora eu não diria que, portanto, sejam menos poderosos. Em Israel, no entanto, onde a atividade de reconstrução forneceu um foco claro que era capaz de cristalizar o choque emocional – causado pelo assassinato de judeus pelos alemães e pela apatia do mundo – em torno de uma nova comunidade judaica, tanto os aspectos negativos quanto os positivos se fundiram em um todo, uma enteléquia. Nenhum evento na história judaica transcendeu tanto as dimensões encontráveis nas experiências anteriores daquela história quanto este evento em que o massacre de milhões sob as mais horríveis circunstâncias foi ligado ao esforço mais intenso por um novo começo histórico.
No entanto, ao mesmo tempo, a discrepância entre as possíveis tendências do renascimento nacional foi exacerbada pela situação aqui delineada. E isso impediu a formação de uma cristalização pura ou Gestalt nesse renascimento. Isso se aplica sobretudo ao nível religioso, no qual um judaísmo vivo poderia se provar tanto na renovação da halakha quanto na mudança de sua Gestalt histórica, na qual os valores da Tradição devem ser reformulados em novos contextos. Ambas as possibilidades estão em contradição insolúvel com a secularização discutida aqui, na qual um povo judeu vivo resolveria renunciar ao judaísmo vivo como uma ordem vinculativa de valores. Essas alternativas são, até onde posso julgar, muito menos operantes na Diáspora.
As circunstâncias especiais prevalecentes na Diáspora permitem a coexistência quase pacífica dessas alternativas. Mas em Israel isso é impossível a longo prazo. Precisamente a vitalidade do empreendimento israelense — a alta temperatura, se assim posso dizer, de todos os processos ali — torna isso impossível. Aqui também reside a causa da crescente tensão entre Israel e a Diáspora em tantas questões relativas ao futuro da “vida judaica”.
Seria um grave erro se nos iludíssemos, ignorando esse estado de coisas. Essa tensão não tem, como se afirma com frequência, sua principal fonte na organização do Estado de Israel e em sua presuntiva exigência de que seus interesses mundanos sejam identificados com preceitos morais. Tal identificação é manifestamente impossível, sem mencionar que pode haver grandes diferenças de opinião sobre os verdadeiros interesses do Estado em qualquer situação. Não é o Estado, mas os problemas da sociedade israelense como uma realidade viva que são relevantes aqui. Se, quando e de que forma a religião será uma força efetiva na sociedade — essa é de fato uma questão decisiva, cujas consequências também em relação à Diáspora são imprevisíveis, mesmo que consideremos um fato indiscutível que (como certamente me parece) tais questões também assumirão considerável importância nas condições que prevalecerão na própria Diáspora.
Considero uma secularização completa de Israel fora de questão enquanto a fé em Deus ainda for um fenômeno fundamental de qualquer coisa humana e não puder ser liquidada “ideologicamente”. Considero um diálogo com tal secularização sobre sua validade, legitimidade e limitações como frutífero e decisivo. Eu não poderia designar as duas partes desse diálogo melhor do que por duas palavras talmúdicas que provavelmente constituem a sinopse mais sublime do judaísmo religioso no passado, e possivelmente também no futuro. Refiro-me às palavras que permeiam 2.000 anos de tradição judaica: “a liberdade das tábuas” da Lei e das “tábuas quebradas”, que ainda jazem junto com as tábuas sagradas na Arca da Aliança — isto é, dentro da dimensão religiosa do judaísmo.
Tradução realizada a partir da versão inglesa: SCHOLEM, Gershom. “Reflections on Jewish Theology”, In: On Jews and Judaism in crisis. Edited by Werner J. Dannhauser. New York: Schocken Books, 1976, pp. 261-298.
[1] Originalmente publicado na Revista The Center, Vol. VII, nº 2 (março-abril de 1974), pp. 57-7 1, traduzido por Gabriela Shalit e baseado em uma palestra proferida no Centro de Estudos das Instituições Democráticas. A presente versão é revisada de acordo com o manuscrito original em alemão.
[2] Trecho bíblico retirado de 2 Samuel 20:19, sendo por nós traduzido como “buscadores da paz entre os féis de Israel” [N. do T.].
[3] Isto, aliás, já foi notado por Franz Rosenzweig; ver Kleinere Schriften [Escritos Menores] (1937). p. 522.
[4] Geiger, em sua carta a De Renbourg no ano de 1936, cf. Allgemeine Zeitung des Judentums [Jornal Geral do Judaísmo] (1896), p. 130. Na própria obra de Steinheim (Vol. I, p. 88):
Na medida em que a Revelação é ensinamento divino, um novo anúncio de Deus por Ele e sobre Si mesmo (não apenas por Ele como mero autor, mas também sobre Ele como o sujeito de Seu anúncio), ela promete ensinar ao homem sobre um Deus que, para nossas mentes, é um Deus novo; sobre um espírito supremo que a alma humana não pode descobrir e não pode conceber sem essa informação externa e sem essa mensagem. Nem por meio da reflexão, nem por meio da experiência, nem por quaisquer meios possíveis pelos quais a mente humana desenvolva outras verdades dentro de si ou a partir de si mesma, esta doutrina da Revelação será explicável, mas deverá ser de tal natureza que só possa ter alcançado o homem através do ouvido por uma palavra audível vinda de fora.
[5] Ver Scholem, The Messianic Idea in Judaism (Nova York: Schocken Books, 1971), pp. 262-303: “Revelação e Tradição como Categorias Religiosas no Judaísmo”, especialmente pp. 300-303.
[6] Esta é uma teoria proposta em muitos escritos católicos, que professavam ter encontrado uma resposta para essas questões em sua concepção da palavra de Deus como uma “expressão análoga”. Cf., por exemplo, Luis Alonso Schockel, The Inspired Word (Nova York: Herder and Herder, 1965)
[7] Kaufmann Kohler, Grundriss einer Systematischen Theologie des Judentums auf Geschichtlicher Grundlage [Esboço de uma Teologia Sistemática do Judaísmo com Base Histórica] (Leipzig: Gustav Fock, 1910), pp. 28-29.
[8] H. Cohen, Religion der Vemunft aus den Quellen des Judentums (Religião de Razão Fora das Fontes do Judaísmo) (Frankfurt: J. Kauffmann, 1929), pp. 82, 83, 98 (Tradução para o inglês de Simon Kaplan, 1972.)
[9] Martin Buber, Gesammelte Schriften, Vol. I (Munich : Kosel-Verlag, 1962), pp. 152-54. Ver também pp. 158-59 acima.
[10] S. L. Steinheim, Die Offenbarung nach dem Lehrbegriffe der Synagoge [A Revelação Segundo a Doutrina da Sinagoga] (Frankfurt am-Main: 1835), p. 85.
[11] Les Nouveaux-Cahiers [Os novos cadernos], N. 32 (1973), p. 74.
[12] E. Gutkind, Choose Life: The Biblical Call to Revolt [Escolha a Vida: O Chamado Bíblico à Revolta] (Nova York: Henry Schuman, 1952). Até onde sei, o livro não deixou vestígios na literatura relevante; o mesmo se aplica a suas outras duas obras sobre o judaísmo: The Absolute Collective [O Coletivo Absoluto] (Londres: C. W. Daniel, 1937) e The Body of God: First Steps Toward an Anti-Theology [O Corpo de Deus: primeiros passos em direção à anti-teologia] (Nova York: Horizon Press, 196g).
[13] S. R. Hirsch, Neunzehn Briefe Über Judentum [Dezenove cartas sobre o judaísmo] (Frankfurt: I. Kauffmann, 1911), p. 92.
[14] O processo de interação desses três elos da cadeia: Criação-Revelação-Redenção, atingiu seu ápice na segunda parte da Estrela da Redenção [Der Stern der Erlösung], de Rosenzweig. Deve-se dizer, porém, que nelas o entusiasmo arquitetônico pela teologia se excedeu consideravelmente. Uma reação de desilusão, como evidenciada nos escritos de teólogos judeus da última geração nos Estados Unidos, foi inevitável.
[15] Cf. meu ensaio Der Name Gottes und die Sprachtheorie der Kabbala in Judaica 3, Studien zur ]iidischen Mystik [O Nome de Deus e a Teoria Linguística da Cabala na Judaica 3, Estudos sobre o Misticismo Judaico] (Frankfurt-am-Main: Bibliothek Suhrkamp, 1973), pp. 7-70.
[16] Em uma carta de Neumann a C.G. Jung, que ficou muito descontente com esta frase, cf. C.G. Jung, Briefe [Cartas], Vol. III (Olten: Walter Verlag, 1973), pp. 40-41.
[17] Nos quatro primeiros capítulos de The Messianic Idea in Judaism [A Ideia Messiânica no Judaísmo], pp. 1-141
[18] Cohen (p. 291) chegou à formulação radical: “O futuro messiânico é a primeira expressão consciente do contraste com a sensualidade empírica dos valores éticos”. Por isso, presumo, entende-se o caráter temporário demonstrado no relativismo da aplicação de tais valores no mundo imperfeito da história. Em contraste com isso, então, o futuro messiânico denota uma esfera que se afasta das restrições do mundo experienciado e na qual os valores encontram sua realização perfeita e “absoluta”.
[19] Meu livro The Messianic Idea in Judaism [A Ideia Messiânica no Judaísmo], p. 17.
[20] Cohen, pp. 311-12.
[21] Malcolm Muggeridge, Chronicles of Wasted Time [Crônicas do tempo perdido] (London: Colliers, 1972), p. 15.
[22] Jacob Neusner, Judaism in the Secular Age [Judaísmo na Era Secular] (London : Valentine, Mitchell and Company, 197 1), p. 64.