
Derivado de uma espécie de poema coletivo chamado hokku que, por sua vez, é a primeira estrofe de um poema coletivo chamado renga, o haicai não pode ser compreendido sem que se compreenda as premissas básicas da tradição budista mahayana (महायान), tradição a partir da qual surge a versão japonesa do zen através dos ensinamentos de Myōan Eisai.
Bernardo Souto
Sendo uma espécie de adaptação do koan (公案) à forma poética — embora, do ponto de vista meramente estrutural, tenha sido derivado do poema tanka — a micropoesia japonesa nasce intimamente vinculada ao fenômeno religioso do Satori (悟り), que, dentro do Zen Budismo, é uma espécie de ‘iluminação mística repentina’. Tal ‘iluminação’ é sobretudo intuitiva e pré-verbal, como tão bem compreendeu Daisetsu Teitaro Suzuki: “A erudição sempre tende à abstração e ao conceitualismo, obscurecendo a luz da intuição, faculdade que é necessária principalmente à vida religiosa” (in: “A Doutrina Zen da Não-Mente”). Dessa forma, antes de ser uma poesia centrada na ideia, o haicai é um tipo de poema que tenta capturar a alma do instante, registrando o que há de ‘eterno’ nos movimentos transitórios da natureza.
É evidente, portanto, que num Ocidente em que a poesia logopeica fez escola — seja através de Propércio, Donne ou Pessoa — o fanopeico haicai seja visto com estranheza e desconfiança, sobretudo porque, através de escritores inábeis e irresponsáveis, ganhou enorme popularidade e, por assim dizer, virou arroz de festa na pena de leminskianos maconheiros e semiletrados.
Mas não se engane: uma forma poética prestigiada por gigantes como Ezra Pound, Giuseppe Ungaretti, Jorge Luis Borges, Octavio Paz e Wallace Stevens pode, sob o estro dum Kobayashi Issa, dum Matsuo Bashō ou dum Yosa Buson, apresentar uma concisão [condensação/ essencialidade] e uma riqueza metonímica que apenas a poesia do Extremo Oriente pode nos oferecer.
“Na floresta fria,
Sem apego a nada,
Canta a cotovia.”
— Haicai de Matsuo Bashō,
tradução livre de R. D. Diéguez e Bernardo Souto.
Muitos, erroneamente, acreditam que escrever haicais é fácil. Não há ideia mais enganosa. O bom haicai deve ser ritmicamente harmônico e também conciso ao extremo (ou seja: deve dizer muito com pouquíssimas palavras); o verso, portanto, não pode ser obeso (cheio de argamassas sintáticas, como adjetivos inúteis e conjunções extensas). Além do mais, o haijin precisa saber capturar a alma do instante e o que há de imortal nos momentos efêmeros. O bom haicai deve surtir o efeito de uma dinamite lançada contra os discursos pré-moldados e contra os sistemas verbais totalizantes, que pretendem explicar os mistérios da vida através de silogismos e de frias e entediantes cadeias lógico-argumentativas.

Como bem percebeu Daisetsu Teitaro Suzuki, “a superestima da erudição sempre tende à abstração e ao conceitualismo, obscurecendo a luz da intuição, faculdade que é necessária principalmente à vida religiosa”. Sendo assim, o bom haicai deve, partindo da intuição e do pressentimento, exprimir verbalmente aquilo que há de pré-verbal e de pós-verbal na existência. O haicai é uma escola de contemplação cujo professor é o Silêncio.

Para saber mais sobre o haicai e outras artes literárias da poesia oriental, conheça o curso inédito do Instituto Ágora Perene oferecido ao público brasileiro, Introduction to the Study of Mystical Poetry, ministrado pelo prof. Bernardo Souto. O curso se encontra com gravações online disponíveis. Veja o programa completo do curso here.

Bernardo Valois Souto has a bachelor's degree in Literature/Literary Criticism from the Federal University of Pernambuco and a master's degree in Literature and Culture: Comparative Studies from the Federal University of Paraíba. She taught Brazilian Literature, Portuguese Literature and Literature Theory at the Araripina Teacher Training College in Pernambuco for several years. He has published poems and essays in literary magazines such as Zunái, Germina, Eutomia (UFPE), Tom, Cronópios, Vila Nova, Síntese, Unamuno, among others. He received the Poetry Prize from the Pernambuco Academy of Letters in 2020.