O fim do mundo na tradição popular galega

Imagem: The Last Judgment Triptych (open), entre 1467 e 1471, óleo sobre painel, de Hans Memling. Coleção do National Museum in Gdańsk. Fonte: Wikimedia Commons. Domínio público.

Texto que reflete o interesse do escritor galego Vicente Risco pela mitologia e escatologia popular galega, integrando influências bíblicas, célticas e medievais em um retrato do imaginário coletivo sobre o fim dos tempos.

Pedro Gómez Anton[1]

Tradução e Introdução de Tiago Barreira[2]

Introdução

Vicente Risco é considerado um dos maiores intelectuais e escritores galegos do século XX e de grande importância para os estudos culturais ibéricos, legando um rico trabalho que une filosofia, espiritualidade e antropologia galego-portuguesa, dialogando o particular local com o universal e transcendente. Conforme publicado aqui na Revista em ensaios anteriores, as obras do autor falecido em 1963, amplamente difundidas dentro do território geográfico espanhol, ainda não possuem a devida repercussão fora da sua região.

O texto a seguir, publicado por Pedro Gómez Anton em comemoração ao ano de Vicente Risco no Dia das Letras Galegas em 1981, integra uma coletânea de textos inédita ao público de língua portuguesa dos escritos risqueanos sobre as tradições populares galegas. Tradições estas que guardam uma profunda similitude em termos de língua e imaginário com Portugal e Brasil, que possuem ecos em regiões rurais e tradicionais do país.

Neste texto, Antón reúne e comenta as concepções escatológicas recolhidas por Vicente Risco no imaginário popular galego, evidenciando a permanência de mitos e crenças sobre o fim do mundo transmitidos pela tradição oral. Trata-se de um retrato sensível do modo como o povo galego, na sua sabedoria ancestral, interpreta o destino do mundo e da alma.

Pedro Gomez Anton

Esse fenômeno popular nasce, segundo Risco, não apenas da necessidade de preencher o vazio deixado pela Revelação e pela Tradição eclesiástica, mas também de uma certa tendência das pessoas a ver próxima a consumação das últimas coisas. Como fontes, ele aponta ideias alheias ao cristianismo e lembranças de sermões. Essa tradição aparece em versos impressos e em “folhas volantes”[3]. Risco cita um romance intitulado: “Piedosa e contemplativa relação na qual se descrevem os sinais que precedem o fim do mundo.”

Em certas tradições regionais, fala-se de quando o fim do mundo chegará, através deste diálogo original:
(São João pergunta ao Senhor quantos anos duraria o mundo.) E Jesus Cristo responde:
— “Chegará a mil e não a milhares.”

Essa tradição tem uma variante em outra narrativa sobre a despedida de Jesus do mundo:
— “Aí te deixo, mundo, por mil e tantos anos; a dois mil não chegarás.”

Outra versão registrada em Santa María de Barxeles diz:
— “Aí te deixo, mundo, por mil e duzentos anos; passarás de mil, mas a dois mil não chegarás.”

Há ainda outra tradição na qual o Senhor teria dito a João:
— “No dia em que a tua festa coincidir com a minha.”

Esse “dia do Senhor” é identificado como o Corpus Christi, e Risco observa que tal coincidência já ocorreu seis vezes desde 1264, ano em que Urbano VI instituiu a festa. A “Páscoa altíssima”, na qual pode ocorrer tal conjunção, já aconteceu dezesseis vezes desde o início da Era Cristã. Risco, crítico diante da lenda, diz que o mundo já excedeu em cinquenta e sete anos o prazo previsto por ela, e adere ao critério evangélico de que “o dia e a hora só o Pai conhece, nem o próprio Filho o sabe”.

Os sinais que acompanham o fim do mundo são de três tipos: celestes, terrestres e históricos.

Celestes:

“Os planetas mudarão de posição; aparecerão novas estrelas e astros desconhecidos; surgirá no céu uma cruz muito brilhante; o sol escurecerá…”

Terrestres:

“Pestes, fomes, terremotos; o mar agitado por ondas tremendas; doenças nunca vistas; choverá sangue; as fontes e rios secarão…”

Históricas:

“O Evangelho será pregado em todo o mundo; a impiedade dos homens será maior do que nunca; virão estrangeiros pregando contra a religião católica; até sacerdotes se tornarão pecadores; alguns mencionam os trens… e também os maiores inventos que jamais se imaginaram, que espantarão as pessoas.”

Entre esses sinais, Risco destaca um particularmente curioso:

“Antes do fim do mundo, por sete anos não nascerá nenhuma criança, para que, no Juízo Final, todos tenham uso da razão. Outros dizem que nascerão muitas crianças durante sete anos e, nos sete seguintes, nenhuma.”

Risco vê nessas lendas influências bíblicas, especialmente a das “sete vacas gordas e sete vacas magras”, além de paralelos com tradições polonesas e alemãs dos séculos XVII e XVIII, nas quais se dizia: “Os homens voarão pelos ares e viajarão em carruagens sem cavalos quando o fim do mundo se aproximar.” Essas lendas, observa ele, mostraram-se parcialmente proféticas.

Um caso curioso é o de um famoso louco ourensano, Dom Ramoncito de Cabeza de Vaca, que teria predito acontecimentos políticos, mudança de moeda, automóveis e aviação.

As guerras ocupam lugar especial como sinal escatológico. Serão guerras fratricidas: filhos contra pais, irmãos contra irmãos, amigos contra amigos e vizinhos contra vizinhos. No final, haverá uma guerra tão grande que “feliz será a mulher que puder ver o rosto de um homem”.

Em Galicia, há uma versão mais específica:

“A última batalha do mundo ocorrerá no monte Faro, e será uma guerra de crianças e mulheres, porque já não restarão homens na Terra.”

O papel do Anticristo também aparece amplamente nas lendas populares: “Terá sete fileiras de dentes e uma cabeça monstruosa; pregará uma doutrina contrária à de Cristo; fará milagres; cortará o braço dos homens e o seio das mulheres. Uns o identificam com um político, outros com uma mulher, uma fera ou um dragão…”

Uma versão particularmente curiosa diz que: “No centro da Terra existe um mundo maior e mais belo que o nosso, habitado por homens gigantes e mulheres cruéis que, por se recusarem a amamentar os filhos, os lançam a um monte. O Anticristo nascerá dessa linhagem, sairá à superfície pela cratera de um vulcão às margens do Tejo e se alimentará dos peixes do rio.”

Risco vê nessas narrativas influências célticas e germânicas, misturadas a mitos gregos sobre os Titãs.

Em quase todas as tradições, o fim do mundo virá pelo fogo — um incêndio universal. As opiniões divergem sobre se o cosmos sobreviverá ou não. A ideia mais difundida é que o fogo virá como um dilúvio, à semelhança do bíblico, mas de chamas.

Risco observa que essa concepção tem múltiplas origens — desde as tradições indianas (água, fogo e vento) até antigas concepções jaféticas, presentes nos povos nórdicos. Há também versões modernas que atribuem o fogo final à queda de uma estrela (como no Apocalipse), de óleo ou mesmo de gasolina. O arco-íris, por sua vez, é visto como símbolo que une ambos os dilúvios: o da água, representado pelo azul, e o do fogo, pelo vermelho.

Risco analisa ainda influências bíblicas na ideia do fogo como destruidor do mundo, citando 2 Pedro 3:7 e 1 Coríntios 3:13, mas sem intenção de exegese teológica, apelando ao inconsciente popular que busca o consumo das abominações e tende ao holocausto purificador.

Por fim, Risco afirma ter recolhido todas essas tradições de narrativas orais de amigos (em especial Antón de Ulloa), de coleções e informes, concluindo que elas permanecem latentes na própria alma do povo galego.

Referências

Comerlato, E., & Hohlfeldt, A. (2023). As folhas-volantes na América Latina: uma análise do fenômeno comunicacional que antecedeu o jornalismo periódico. methaodos. Revista de Ciencias Sociales, 11(2), m231102a04. https://doi.org/10.17502/mrcs.v11i2.618;

J. G. de O., de Oliveira, E. F., & Possas, H. de M. (2019). Folhas volantes: o cordel encantado como saber cultural e prática educativa no Nordeste na Amazônia Paraense. Revista Cocar, (5), 235–255. Disponível em: https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/2358. Acesso em: 18 out. 2025.)


[1] Esta tradução é publicada para fins de estudo e difusão cultural, com base em edição de circulação restrita e fora de catálogo. O tradutor e a Revista Ágora Perene reconhecem integralmente os direitos do autor e da instituição publicadora original.

[2] Tradução a partir do texto original “El fin del mundo en la tradición popular gallega”, publicado em* Apuntes Menores de Risco* — Ayuntamiento de Orense e Diputación Provincial, 1981

[3] Nota do Tradutor: As folhas-volantes (em espanhol, hojas volantes ou pliegos sueltos) eram impressos populares avulsos que difundiam relatos sobre acontecimentos como batalhas, festas religiosas ou fatos políticos, antecedendo o jornalismo periódico (Comerlato & Hohlfeldt, 2023). Circularam amplamente na Península Ibérica e chegaram ao Brasil, especialmente ao Norte e Nordeste, onde se integraram à tradição do cordel (Castro, de Oliveira & Possas, 2019).

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Tiago Barreira é doutorando em Filosofia pela Universidade Santiago de Compostela (USC), pós-graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-RJ, graduado em Economia pela Fundação Getulio Vargas Rio (FGV-Rio), consultor e analista de dados. Escreve regularmente sobre tópicos relacionados a Economia, Filosofia e Cultura.

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