
Vivemos um tempo em que a dúvida se converteu em método e a sabedoria em esquecimento, no qual a filosofia, antes voltada ao ser e ao mistério do real, reduziu-se a um exercício de suspeita. Talvez seja hora de retomar a trilha esquecida da sabedoria perene, onde ciência, metafísica e espírito ainda falavam a mesma língua.
Tiago Barreira
A Era da Epistemologia
A epistemologia tornou-se o passatempo filosófico predileto do meio científico atual. Mais do que se perguntar sobre o sentido do ser e a realidade, como se fazia em épocas de outrora, a pergunta-chave ao redor da qual todo debate científico parece girar é: de onde chegou a mim a ideia de ser e a realidade?
Desde Kant e Descartes, a mente se habituou a duvidar de si e de sua capacidade de voar além dos dados e dos fenômenos aparentes e sensíveis, daquilo que está além dos próprios olhos, o reino do pensamento e das ideias abstratas. Todo e qualquer tipo de ideia, raciocínio e construção intelectual que integre o todo em uma chave interpretativa inteligível, compreensível e coerente, é objeto de suspeita e ceticismo, sob o caráter de “ideologia”, “vontade de poder” ou “inconsciente recalcado”.
Do Método à Dúvida Permanente
Os catedráticos das ciências naturais e sociais executam e seguem com um rigor impressionante a dúvida hiperbólica cartesiana que põe em parênteses o mundo e as coisas. Apenas relevam que este ceticismo radical foi tão somente uma etapa inicial do método propugnado pelo filósofo francês do século XVII, educado no jesuitismo religioso. Ele o utilizou como um instrumento temporário, e não como um fim permanente em si mesmo, para a construção de um edifício de certezas mais sólido para as nascentes ciências modernas.
O mesmo faria Kant, ao aplicar seu método crítico da razão pura como uma etapa depurativa intermediária, direcionada à construção de um sistema de verdades sólidas na Filosofia Moral, a residir não mais em dogmas arbitrários e impostos externamente, mas na supremacia da Razão prática e na consciência racional livre humana.
Husserl, outro pensador tomado como o papa da epoché relativizante, construiria, em obras mais avançadas, sua teoria da Lebenswelt, conceito que versa sobre a totalidade do real vivido. Uma totalidade da qual não podemos pôr em dúvida, mas não de maneira doutrinária, pois tampouco sabemos expressá-la plenamente em palavras ou linguagem discursiva. Um tema pouco discutido e menos famoso que a própria epoché.
A ideia de que uma verdade existe foi questionada metodicamente, mas nunca negada pelos filósofos fundadores da modernidade. Ao contrário do que vem sendo feito hoje pela filosofia de massas, mal digerida por vários cientistas dos dias atuais.
A Crise do Espírito e a Rejeição da Metafísica
A recusa em perguntar e discutir temas metafísicos no espaço público, como verdades sobre a alma, a realidade espiritual, a transcendência dos símbolos e o mundo supraterreno, é um sintoma de crise intelectual em escala global. Sociologicamente, pode ser explicada, em parte, pela burocratização acadêmica das disciplinas científicas e pela instrumentalização do pensamento livre por interesses materiais imediatos, ao seu adestramento pavloviano pela distribuição de recursos econômicos de institutos e think tanks comandados por governos e grandes corporações.
Ou talvez por aquilo que Eric Voegelin consideraria como gnosticismo e o seu ódio revolucionário a qualquer sentido de verdade transcendental, ordenada e estável, sem cair nos excessos voeglinianos da direita conservadora que vê gnose em qualquer fenômeno da vida social.
Ou ainda naquilo que Guénon afirmaria como uma marcha histórica kaliyuguiana da Contra-Tradição, trazendo um entorpecimento degenerativo das consciências em suas faculdades de percepção da realidade supraterrena. Essa degeneração substitui o olhar espiritual por formas empobrecidas, mecanicistas e materialistas de representação, como se vê na fusão entre física quântica e espiritualismo de autoajuda New Age, cujas técnicas espirituais propagandeadas por seus gurus resultam não em uma elevação humana no sentido tradicional, mas em seu rebaixamento ao infra-humano animalesco.
O Silêncio do Sagrado e a Resistência Poética
Especulações à parte, o próprio estranhamento com que alguns poderiam se levantar contra as teses dos autores que mencionei é um dos sintomas do quadro geral de crise a que me refiro. No século XX, em uma verdadeira espiral do silêncio, poucos pensadores se aventuraram a explorar temas do sagrado e seus vínculos com a filosofia e a ciência, sob o risco de terem suas reputações e prestígio abalados sob o rótulo de “ocultistas”, termo igualmente alvo de escárnio por doutrinários religiosos e ateus.
Apenas o campo da literatura e da poesia, reduto da liberdade artística, se mostrou aberto a tais expressões de pensamento. Quando muito, alguns puderam camuflar o tema da espiritualidade em uma espécie de linguagem hermética – mitológica ou esotérica. Caberia a um Fernando Pessoa, a um T.S. Eliot, a um Yeats ou a um Tolkien a tarefa de serem esses portadores de uma sabedoria perene cifrada, para não escandalizar o oficialismo inteletcual do momento.
A Sabedoria Perene
Um parêntese merece ser feito ao tema que venho investigando no doutorado na Espanha. Por aqui, um dos pensadores que mais tem me fascinado é Mario Roso de Luna. Um homem eruditíssimo e formado nas ciências, teria estabelecido, no início do século XX, pontes relevantes entre espiritualidade, esoterismo e ciência.
Mario Roso de Luna é um daqueles autores que vieram ao mundo com grandes pretensões intelectuais, mas frustrados pelo redor medíocre que o despreza. Um retrato de uma Espanha particularista e polarizada entre ultramontanos católicos e liberais anticlericais pré-Guerra Civil, em uma atmosfera cultural e social que não se diferencia muito de outros países como o Brasil.
Um dos grandes divulgadores da teosofia na Espanha, muito embora tenha se afastado do pensamento de Blavatsky ao final da vida – uma pensadora reconhecidamente controvertida– e seguido um caminho mais filosófico, sua obra, de grande qualidade intelectual e literária, permanece praticamente esquecida e dispersa ao redor das bibliotecas espanholas.
Isolado e maldito, assim como outro pensador espanhol que foi por Luna influenciado diretamente, Vicente Risco. Também seus escritos filosóficos e espiritualistas, que perpassam o mero ensaio filosófico a abrangem também uma rica literatura de ficção, foram parcialmente esquecidos, tratando de temas que se estendiam da mitologia celta e galego-portuguesa, a metafísica oriental ao pensamento esotérico.
Tratam-se de pensadores de valor filosófico singular, herdeiros de uma corrente intelectual que atravessa séculos no Ocidente, centrada em uma metafísica simbólica e perene, unificadora do real. Nela participam Platão, Plotino, Avicena, São Boaventura, Giambattista Vico, René Guénon, Mircea Eliade, Jung, Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon, Eric Voegelin, Leo Strauss e Mário Ferreira dos Santos. Essa corrente é cada vez menos compreendida pelos especialistas em epistemologia da ciência, presos a um nominalismo antiespiritual.
Adaptando-o ao linguajar filosófico, podemos falar em uma tradição de pensamento que, com todas as suas divergências e tensões internas, encarna um intento legítimo de aproximar o homem daquilo que o projeto filosófico, desde Tales de Mileto, buscou alcançar: a busca dos princípios primeiros da realidade, capazes de compreender a multiplicidade dos fenômenos de maneira coerente e coesa.
Tiago Barreira é doutorando em Filosofia pela Universidade Santiago de Compostela (USC), pós-graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-RJ, graduado em Economia pela Fundação Getulio Vargas Rio (FGV-Rio), consultor e analista de dados. Escreve regularmente sobre tópicos relacionados a Economia, Filosofia e Cultura.
- Tiago Barreirahttps://agorap.org/author/tiagoc-barreira/
- Tiago Barreirahttps://agorap.org/author/tiagoc-barreira/
- Tiago Barreirahttps://agorap.org/author/tiagoc-barreira/
- Tiago Barreirahttps://agorap.org/author/tiagoc-barreira/














