O mestre do falso saber

Surge a pergunta “onde eu estou?”. Pergunta de grande importância, pois ao perguntar isso eu irei refletir sobre quem eu realmente sou, com quem ando, quais são minhas influências, o que almejo para minha vida.

Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo Clínico (PUCRS). Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]

Mestres do falso saber ululam por todas as partes. Eles dizem saber coisas, porque sempre há outros a dizerem não as conhecer. Não há problema em haver professores e alunos, o problema é haver uma relação ruim entre aprender e ensinar, posições falsas. Eu tomarei um discurso, o qual escuto por demais em minha caminhada:

“Vou fingir que ensino enquanto você finge que aprende.”

Realmente me preocupa escutar isso em qualquer instituição que concorde com a falsidade nesse relacionamento. Eu me assusto mais com aqueles falsos professores que dizem a você ensinar algo muito profundo, mas que você não tenha capacidade de aprender por não ser um dos “escolhidos” por Deus para um aprendizado sagrado. Isso leva a uma desqualificação profunda da pessoa com relação a algo que ela busca ter uma afinidade.

Eu notei que os escolhidos eram sempre pessoas que tinham algo para dar a seus mestres: pessoas da mídia, pessoas com poder financeiro, pessoas com influências em grupos específicos… até para trazerem mais pessoas para o agrupamento. E como as coisas discutidas eram muito pessoais, muitas pessoas mentiam sobre seus “recebimentos”, mentiam para serem aceitas no grupo. Outras vezes as pessoas de fato não entendiam nada e aí recebiam a pecha de serem “incapazes de receber”.

Eu quero me deter sobre esse problema muito mais concreto do que as metafísicas orientais davam conta. O problema de uma “pilantragem” e com a ambição de as pessoas com sua ingenuidade não familiarizada possam dar conta de entender. A mesma pilantragem das seitas hoje em grande proliferação no mundo, as quais tentam descaracterizar o caráter lento e gradual do conhecimento com ideias espiritualistas muito incoerentes com o próprio credo do espiritismo. Pessoas como João de Deus tomadas em seus lugares preferenciais, como tendo falado diretamente com Deus e, assim, com um conhecimento diferencial, cujos outros devem acreditar sem pensar. Aliás, pensar é algo absolutamente problemático para essas seitas, tão daninho é para eles a ponto de dizerem que quem “racionaliza” está doente. Ora, todo o excesso de racionalidade leva a pessoa a adquiri hábitos obsessivos, cujo problema reside em descaracterizar aquilo que se pretende conhecer. O opróbrio disso reside naquele tipo de questionamento visto como “inadequado”, pois questiona como o mestre trata seus discípulos, principalmente quando os discípulos questionam algo que o mestre não deseja a seus alunos investigarem. Isso sim é problemático, pois é um tipo de pensamento seletivo, só seleciona aquilo que serve, não podendo ser pensado aquilo que foge ao plano de dominação do mestre sobre o agrupamento.

Também é deveras importante observar outro exemplo do falso processo de aprendizagem. Todo aquele que acredita que o estudo prescinde de pessoas também recai em erro. Ele deriva a resposta apenas e tão somente daquilo que ele estudou. Portanto, o sujeito pode decorar um livro e acreditar que conhece como “realmente é” algum assunto por ler um ou muitos livros. Essa pessoa torna-se néscia de uma maneira diferente ao membro de uma seita, pois ele “acredita” que conhece “teoricamente”, não sabe se, na prática, as coisas “se comportam” daquela forma. A falta de experimentação, portanto, de tomar contato com a realidade e sua forma por vezes incoerente, do ponto de vista de quem está distante, cria grandes obstáculos para quem deseja se aproximar da realidade. Esse fato gera uma paralaxe: mudança aparente na posição de um objeto quando a sua posição é observada por um observador em movimento em outra dimensão de observação. Esse grau é assustadoramente terrível quando nos voltamos para as ciências humanas e vemos o quanto há um desprezo hoje em dia pela sabedoria e pela experiência dos pensadores antigos, os quais experimentaram muito o conhecimento ao utilizarem-se de suas vivências. Caso ele não o faça dessa maneira, tornar-se-á um hipócrita, pois, seu discurso, por mais refinado, terá sempre o problema de sua real atitude com o objeto o qual ele se dedica.

ίστωρ πολλών ό οντως φιλόσοφος

(narradores de muitas temas são em essência filósofos)

Porfírio (FAYE, 1999, p. 39)

Excelente afirmativa de Porfírio em seu texto De Absentia. Tanto para o membro da seita quando para o aspirante a pensador, em sua vertiginosa paralaxe, devem ambos fazer um caminho para dentro de si mesmos, buscar a força que interrompe o medo, buscar a verdade em si mesmos para alcançarem a integridade com a realidade. A realidade é sim um problema de suma importância para todo aquele dedicado ao estudo. O estudo não é salvação, nem grupos que concordem com “tapinhas nas costas” e “sorrisos em dia festa”. O caminho é sempre tortuoso e muitas vezes é melhor andar sozinho, isolado da ignorância e seus vícios, a ter de se contentar com a miséria de outros pessoas doentes mentalmente. Esse aspecto é por demais importante e tenho de abordá-lo com cuidado, pois não intento aqui formalizar acusações, mas sim apontar o óbvio: todo aquele que empreende algo que só ele é capaz de perceber porque sua experiência é tão específica de acordo às condições que foi submetido pode ter a vista que essa medida está acima das possibilidades dos outros de entenderem. Isso leva a uma condição de arrogância e aí um dos grandes problemas que nossa consciência tem de se debater.

O rebe Shneuer Zalman de Liadi (2013), o alter rede da dinastia chabad, desenvolveu uma metodologia muito refinada sobre esse problema em seu livro Tanya. Ele entendia que do ponto de vista da pessoa humana em sua tentativa de aspirar a busca pela santidade, ou seja, um aperfeiçoamento que o impeça de pecar. Por essa razão, a pessoa acaba olhando o outro como alguém realmente especial um santo (tsadik), em detrimento a sua própria atitude, a qual ele vê como má (rashá) diante ao desejo de cometer um ato que traiu a sua própria essência. Obedecer a sua própria essência passa por obedecer ao Criador e seus desígnios, pois através desse caminho de sabedoria o homem deve pensar sobre si. Surge a pergunta “onde eu estou?”. Pergunta de grande importância, pois ao perguntar isso eu irei refletir sobre quem eu realmente sou, com quem ando, quais são minhas influências, o que almejo para minha vida. Esse profundo questionamento gera uma consciência importante: apesar das dificuldades que tenho em ser santo, pois não possuo ainda as condições adequadas, eu ainda assim buscarei o aprimoramento tal como um santo. Essa consciência é vista como um estágio intermediário (beinoni), um entendimento mais elevado do que o pecador que o faz sem saber, porém, ainda não nas condições de um santo, capaz de não pecar.

Eu trago essa breve citação do alter rebe porque ela está particularmente arraigada em cada um de nós como a busca de um lugar. “Onde você está?” é justamente feita na forma de pergunta. A pergunta é parte imprescindível da resposta. Só há resposta porque há vontade em perguntar, vontade de realização da humanidade em um estado de desenvolvimento contínuo (birurim). Uma pessoa com essa vontade pode encontrar seu lugar, saber sobre si e sobre seu lugar no mundo das ideias, entre os povos, entre o que mesmo lhe disseram que ela é. Esse questionamento exige então um bom professor, uma pessoa que passou por esse questionamento, mas não o temeu, portanto, não o obliterou de sua vida. Esse elemento por si só já é repleto de espiritualidade, pois ele exige um ato de coragem e ousadia em uma pergunta simples, porém, exigente quanto ao seu tempo de resolução. Não se responde sobre “onde você está?” sem entender o passado, o futuro e as condições presentes. A investigação leva a um traço de cumplicidade. O compromisso por si só leva a uma condição cada vez maior com a realidade e isso exige de nós o caráter e seu vigor. Deve haver um amadurecimento para olhar as feridas, sem cair à sedição do passado, sem repetir os mesmos erros que destruíram os sonhos importantes para se ser o que se é com dignidade. Esse estado é também um alerta sobre as exigências conosco, exigências cada vez maiores, sem direito a descanso até serem atingidas conquistas de vida.

Referências:

FAYE, Jean-Pierre. O que é a Filosofia? Tradução de Maria Ludovina Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

LIADI, Rabi Shneor Zalman de. Likutei Amarim Tanya. Tradução de Eliahu Wasserman. Rio de Janeiro: Editora Beit Lubavitch, 2013, Vol. 2.

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Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).

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