
Segunda parte da série de ensaios sobre a Ordem Espontânea do filósofo político Norman Barry, publicado em 1982 pelo Literature of Liberty. Traduzido e adaptado do artigo The Tradition of Spontaneous Order. Texto original disponível no Library of Economics and Liberty.
Original:Norman Barry; Tradução: Tiago Barreira
A Escolástica e o Mercado como Ordem Espontânea
Hayek sempre defendeu que a sua explicação de um sistema social mais ou menos autorregulador fazia parte, na verdade, de uma longa tradição. Enquanto reconhecia que é até um absurdo especular sobre o começo de uma tradição, Hayek muitas vezes mencionava pensadores espanhóis como os fundadores da teoria da ordem espontânea.
A ‘Escola de Salamanca’: Pensamento Econômico Escolástico e o Mercado
Há algum tempo, Escolástica tendia a ser vista como muito próxima de um tipo de filosofia moral racionalista. Ao dar ênfase à virtude e condenar a usura, por exemplo, ela era incapaz de ser concebida como uma teoria que traçava sistematicamente as regularidades sociais que emergiam da busca de interesse próprio. Mas nos últimos 30 anos, a história tem sido reescrita, de modo que uma interpretação mais apurada da doutrina escolástica geral passaria a vê-la como antecipadora de teorias individualistas posteriores. Isso se aplica à teoria econômica, e ao analisarmos mais de perto descobrimos muitas afinidades, como noções claras de competição econômica, teoria do valor subjetivo e a teoria quantitativa da moeda, entre outras coisas. A filosofia econômica escolástica atingiu o seu apogeu no século XVI na Espanha, onde os economistas teólogos da ‘Escola de Salamanca’ desenvolveu a primeira teoria geral do valor, envolvendo bens e moeda, e acomodando os tradicionais ensinamentos da Lei Natural católica em uma doutrina econômica mais apropriada para as necessidades do desenvolvimento de uma sociedade comercial.
Essa é a semelhança do pensamento escolástico com a teoria econômica do final do século XIX, de modo que não seria impreciso afirmar que há uma linhagem contínua da economia subjetivista que vem do século XIII até Carl Menger e a Escola Austríaca de economia, e que a obsessão da economia ‘clássica’ com a teoria objetiva dos custos de trabalho foi uma especulação bastante desnecessária e desperdiçadora de tempo. Em sua História da Análise Econômica, Joseph Schumpeter, que foi um dos primeiros escritores a recuperar a economia escolástica no mundo moderno, escreveu que o aspecto mais importante perdido da doutrina escolástica foi o conceito de margem [7]. Foi Schumpeter quem também viu que a filosofia da Lei Natural católica era basicamente utilitarista e preocupada em justificar instituições humanas, tais como a propriedade, em termos de interesse público, e que o conceito de ‘razão’ para os acadêmicos tardios era mais ‘sociológico’ do que abstrato. O objetivo da razão era encontrar regularidades que eram descobertas quando os homens eram deixados às suas inclinações naturais.
“A filosofia econômica escolástica atingiu o seu apogeu no século XVI na Espanha, onde os economistas teólogos da ‘Escola de Salamanca’ desenvolveu a primeira teoria geral do valor, envolvendo bens e moeda, e acomodando os tradicionais ensinamentos da Lei Natural católica em uma doutrina econômica mais apropriada para as necessidades do desenvolvimento de uma sociedade comercial.”
Além de Schumpeter, o trabalho de Raymond de Roover e Marjorie Grice-Hutchinson abriu novos caminhos ao reabilitar a economia escolástica.[8] No trabalho deles é mostrado que, embora haja elementos da teoria de custos de produção na economia escolástica, a visão dominante (que pode ser delimitada indo de Aristóteles e Santo Agostinho até Santo Tomás de Aquino) interpretava o valor de um bem não como algo inerente à coisa em si, mas como um produto de ‘apreciação comum’ e de opinião subjetiva, e de perceptível escassez. Assim, o preço ‘justo’ era o preço competitivo que surgia da interação de ofertas e demandas subjetivas. Como Diego de Covarrabias (1512-1572) declarava: “O valor de um artigo não depende de sua natureza em essência, mas da apreciação dos homens, mesmo que seja uma apreciação tola. Assim nas Índias, o trigo é mais caro que na Espanha, porque os homens o apreciam mais, mesmo que a natureza do trigo seja a mesma em ambos os lugares.”[9] O elemento ‘ético’ na teoria se relacionava não com uma ideia moralista de que o preço deva ser igual ao custo de trabalho, mas ao argumento de que o preço ‘justo’ poderia aparecer somente sob condições de competição mais ou menos perfeita (é fato que os acadêmicos eram críticos estridentes do monopólio) e onde não houver logro, fraude ou uso da força. Um motivo de por que os acadêmicos eram relutantes em aceitar uma teoria dos custos de produção no lugar de uma teoria subjetivista era que ela poderia dar um pretexto para os comerciantes aumentarem seus preços acima do preço de equilíbrio, explorando assim os consumidores.
“Como Diego de Covarrabias (1512-1572) declarava: ‘O valor de um artigo não depende de sua natureza em essência, mas da apreciação dos homens, mesmo que seja uma apreciação tola. Assim nas Índias, o trigo é mais caro que na Espanha, porque os homens o apreciam mais, mesmo que a natureza do trigo seja a mesma em ambos os lugares.'”
Molina: O Mercado & Ética da Lei Natural
Os expoentes mais antigos do subjetivismo foram Buridan (1300-1358), Saravia de la Calle (c. 1540) e Domingo de Soto (1495-1560); mas o expositor mais explícito da visão competitiva foi o jesuíta português Luís de Molina (1535-1600). Molina, da Escola de Salamanca, também mostrava um entendimento analítico claro de competição.[10] A grande realização desses escritores foi mitigar o elemento moralizante na ciência social católica e mostrar que as práticas costumeiras do comércio não eram contrárias à ‘natureza’.
A Escola de Salamanca também fora bem sucedida em separar teologia moral da teoria da moeda. Enquanto a Jean Bodin (1530-1596), o teórico político francês, é normalmente atribuído como o primeiro formulador da teoria quantitativa, é hoje evidente de que foi originada de acadêmicos espanhóis. Influenciada pela ascensão do nível de preços na Espanha trazidos pelo influxo de ouro e prata do Novo Mundo, o Dominicano Martín de Azpilicueta (1493-1587), escreveu em 1556 que o “ dinheiro é mais valioso quando e onde houver escassez do que quando e onde houver abundância”[11]. Mais uma vez, porém, foi Molina quem estabeleceu sistematicamente a explicação do valor da moeda dentro da teoria geral do valor e desenvolveu a teoria das trocas externas que antecipariam a doutrina da paridade do poder de compra. Uma consequência importante disto era que os lucros dos acordos de transações entre moedas estrangeiras eram julgados como não-usurários e assim não contrários à lei natural. Molina também mostrava que o valor do dinheiro era necessariamente inconstante e que “controlá-lo poderia provocar grandes danos à república”;[12] assim seu valor deve ser permitido variar livremente.
Evidentemente, dizer que elementos importantes da teoria do valor moderno estavam contidos na teoria escolástica não significa tornar esses economistas liberais clássicos. Apesar do preço justo ser o preço de mercado, existe uma ampla justificativa na lei natural para a suspensão do mercado e para a regulação pública de preços, especialmente em períodos de fome e emergências. De Roover reconhece que, dado que a doutrina escolástica autoriza interferência com o mercado para proteger compradores e vendedores, poderia ser dado aval a uma suspensão integral do sistema competitivo [13]. Certamente, a teoria econômica escolástica estava demais ligada à ética e lei natural para produzir uma teoria sistemática da ordem de mercado autorreguladora. Em seu trabalho posterior, Marjoirie Grice-Hutchinson menciona que uma teoria da harmonia geral da ordem de mercado estava ausente nos escolásticos espanhóis do século XVI, e não aparecia até 1665, com a obra de Francisco Centani.[14]
“Enquanto a Jean Bodin (1530-1596), o teórico político francês, é normalmente atribuído como o primeiro formulador da teoria quantitativa, é hoje evidente de que foi originada de acadêmicos espanhóis. Influenciada pela ascensão do nível de preços na Espanha trazidos pelo influxo de ouro e prata do Novo Mundo, o Dominicano Martín de Azpilicueta (1493-1587), escreveu em 1556 que o ‘dinheiro é mais valioso quando e onde houver escassez do que quando e onde houver abundância'”
É importante notar, todavia, que dois pensadores eminentes, Schumpeter e Hayek, consideravam a teoria social de Molina como uma doutrina da lei natural que estava voltada não para o racionalismo do século XVII, mas à teoria da ordem espontânea. A economia de Molina é uma investigação da natureza, no sentido de haver sequências de eventos que poderiam ocorrer “se forem permitidas operar por si próprias sem perturbações futuras”.[15] Aqui a máxima da lei natural parece ser menos os ditames de uma razão pura do que as implicações não-intencionais da natureza.
Norman Patrick Barry (1944 – 2008) foi um filósofo político inglês melhor conhecido como um expoente do pensamento liberal clássico. Atuou durante a maior parte de sua carreira como professor de teoria política e social na Univerrsidade de Buckingham.
- Joseph Schumpeter, A History of Economic Analysis, p. 98.
- Ver especialmente Marjorie Grice-Hutchinson, The School of Salamanca; Raymond de Roover, “Scholastic Economics,” em Quarterly Journal of Economics 69 (1955): 162-190; e “Joseph Schumpeter and Classical Economics,” em Kyklos 10 (1957): 115-146. Ver também Murray N. Rothbard, “New Light on the Prehistory of the Austrian School,” em E. Dolan (ed.) The Foundations of Modern Austrian Economics, pp. 52-74.
- Citado em Grice-Hutchinson, The School of Salamanca, p. 48.
- Ver apêndice VII em Grice-Hutchinson, The School of Salamanca, pp. 112-115.
- Citado em Grice-Hutchinson, The School of Salamanca, p. 94.
- Grice-Hutchinson, The School of Salamanca, p. 115. [N.B.: ” ao qual quando e onde é abundante” deve ser sinônimo de “do que quando e onde é abundante”. A cópia da Literature of Liberty aparece como “ao qual”.—Econlib Ed.]
- De Roover, “Scholastic Economics,” p. 185.
- Grice-Hutchinson Early Economic Thought in Spain, pp. 147-148.
- Schumpeter, A History of Economic Analysis, p. 112.
Um comentário em “A Tradição da Ordem Espontânea – Parte II”