Hegemonia e Profetas de Cátedra – Tiago Barreira

Tiago Barreira

Existe um ponto no pensamento de Gramsci que muito vem ganhando à tona nos últimos tempos. É o conceito de hegemonia, ou seja, a aliança de classes sociais de origens e valores distintos ao redor de uma unidade autoconsciente de valores, crenças e ideais, e agente de transformação social na história, o “bloco histórico”.

Gramsci pregava, para a derrubada do regime de Mussolini em voga na Itália dos anos 30, a formação de uma aliança hegemônica entre as classes intelectuais e as classes populares e proletárias, através de uma longa marcha pelas instituições culturais, sociais e políticas. Caberia aos intelectuais, ainda que de origens não-proletárias, darem voz orgânica aos interesses da maioria popular, constituindo o principal representante de sua vontade coletiva. A noção de formação de bloco histórico hegemônico permearia todo o discurso da esquerda pelas décadas posteriores.

Como é possível haver aliança entre dois mundos tão diversos, que é o mundo da elite intelectual, e a do povo? Gramsci não só acha ser possível essa aproximação, como também vê o intelectual como o “intérprete” do povo, dos seus anseios e valores.

A esquerda gramsciana nunca parou para pensar nesse gap imenso que distancia o mundo dos intelectuais e o mundo do povo. Porque a condição de ser intelectual é o de não-pertencimento ao mundo da massa. O mundo da classe intelectual é o de distanciamento crítico em face às massas, enquanto espectadores imparciais desta em uma torre de marfim ascética, prontos para interpretarem à distância os rumos desta mesma massa à luz da marcha do mítico Devir histórico (seja ele encarnado na versão de luta do capital versus trabalho,  patriarcado versus matriarcado, heteronormatividade versus homonormatividade, etc). Já a condição de ser massa é, por definição, o de sujeitos amorfos e destituídos de uma “consciência histórica”, ao qual cabem os intelectuais orgânicos o esforço de inculcar e emancipar (por conhecerem melhor que estes o bem da maioria à luz do devir histórico).

Existe uma pretensão de conhecimento neste caso. Se o intelectual é ao mesmo tempo proveniente de um universo diferente do povo, ao mesmo tempo em que é intérprete dos anseios do que o povo precisa, este se torna automaticamente não um representante orgânico do povo, mas um representante de seu próprio mundo estreito, que interpreta o povo segundo sua ótica distorcida. O intelectual orgânico gramsciano só poderia terminar por ser uma contradição e inviável conceitualmente.

Portanto, o intelectual do povo é apenas um verniz retórico que camufla a mais violenta imposição totalitária de um grupo sobre o outro. Da classe dos intelectuais sobre a classe das massas. O que para Gramsci é uma união mística entre povo e intelectuais em um “bloco histórico”, em uma longa marcha para as instituições, nada mais é do que a subjugação de uma classe ascética sobre a não-ascética, em uma longa marcha para o controle tirânico da sociedade, via concentração de poder no estado.

A entrevista do cientista político de Harvard, Marcus Ianoni, publicada pelo Jornal GGN [1], logo após as eleições de 2018, ilustra de maneira emblemática esta mentalidade pretensiosa de conhecimento. Vejamos o que diz este cientista político. Este mesmo cientista político, em meio ao cenário eleitoral de 2018, de derrota do grupo político outrora hegemônico no país, assume que “Várias vozes da direita, em diversos tons e conteúdos, atribuem à esquerda um marxismo cultural ou uma revolução gramsciana, termos concebidos por esses críticos como práticas que propiciam conspirações surdas.”

Ianoni busca explicitar o conceito de hegemonia cultural gramsciana:

“Na elaboração teórica de Gramsci, destaca-se a reflexão sobre a questão da hegemonia, que diz respeito aos aspectos culturais e ideológicos do exercício da liderança política. Hegemonia diz respeito à dimensão não coercitiva da dominação, quando esta se sustenta em uma direção política de natureza moral, intelectual e ideológica, ficando a força como retaguarda e salvaguarda indispensável, mas não como vanguarda. Hegemonia e legitimidade são conceitos muito próximos.”

A hegemonia consiste em uma forma de dominação da classe hegemônica sobre as demais, sustentada em uma direção política de natureza “moral, intelectual e ideológica”. Entretanto,  para se ter hegemonia, é preciso “legitimidade não-coercitiva”. Do ponto de vista retórico apenas, pois continua sendo uma forma de dominação e imposição de interesses da classe hegemônica sobre as demais. O que faz uma hegemonia ser não-coercitiva é o de dominar sem trazer a aparência de que domina.

É exatamente este tipo de dominação não-coercitiva que a classe universitária e acadêmica da USP, bem como setores da Igreja Católica, imbuída das categorias do pensamento gramsciano, visou implementar no Brasil, ao aproximar-se com a classe sindical dos metalúrgicos do ABC paulista, forjando a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980. Como veremos posteriormente, o cientista político ignora este dado como uma conspiração surda de “vozes da direita”.

Abaixo, ele explicita o ideário político ao qual a esquerda visa legitimidade hegemônica para implementar:

“Penso que o mais viável é um programa alternativo ao neoliberalismo, um programa social-desenvolvimentista, cujas diretrizes principais precisam estar claras para o conjunto dos atores, da liderança aos apoiadores: um modelo econômico centrado na produção e no emprego, na geração de renda para o capital produtivo, para o trabalho assalariado e para os cofres públicos; o combate às desigualdades (social, racial, de gênero e regional) associado à inclusão da cidadania nos sistemas econômico e político; o aumento da arrecadação tributária através do crescimento do produto; a reforma tributária progressiva; a reforma política para fortalecer os partidos (e reduzir a fragmentação partidária), a representação, a participação e o controle democrático do Estado; a regulação contra a concentração da propriedade da mídia (conforme determina o Art. 220 da Constituição Federal); o fortalecimento do Estado republicano, para garantir os direitos civis, políticos e sociais e minimizar a captura do poder público pelas oligarquias, como tem sido a maioria dos representantes políticos e a burocracia togada. Outros pontos-chave podem compor esse programa.”

Através dos artifícios retóricos e da linguagem dos direitos e cidadania, Ianoni camufla uma terrível realidade sobre a natureza dos direitos sociais e a sua inviabilidade de ser implementada por um estado crescentemente deficitário. O mesmo estado deficitário imbuído por uma série de direitos sociais consagrados pela constituição de 1988, esta um produto da mentalidade hegemônica socialista do Brasil da Nova República.

Mesmo em meio à atual situação de crise econômica, política e social do país, legado por esta mesma atmosfera de valores de direitos sociais que influenciou a constituição de 88, Ianoni assume que não houve hegemonia cultural o suficiente para implementar mais dessas políticas, como visto abaixo:

“Imagino que, se efetivamente o processo de transformação democrática do capitalismo e no capitalismo tentado nos governos Lula e Dilma tivesse sido apoiado não somente nas decisões de políticas públicas, mas também em uma estratégia clara e explícita de publicização política do programa transformador, poderia ter havido mais êxito na construção de uma base de apoio consciente das características da mudança em curso.”

“Em todo o caso, faltou politizar, no sentido de unificar ação e pensamento, prática e teoria. Faltou a politização enquanto processo de explicitação do projeto e de esclarecimento contínuo – para o governo, para o PT, para a base aliada, para o eleitorado em geral, para os trabalhadores, para as frações de classe da burguesia –  do que era o social-desenvolvimentismo (rótulo que, avalio, melhor expressa o que se tentou fazer de Lula ao fim do primeiro mandato de Dilma) e do que é o neoliberalismo.”.

Publicizar programas transformadores para construir “base de apoio” nada mais é do que um nome mais elegante para a imposição de uma dominação hegemônica, que ele insiste em atribuir como inexistente e uma invencionice dos conservadores. Afinal, “poderia ter havido mais êxito na construção de uma base de apoio consciente das características da mudança em curso”. Assumindo a postura de jesuíta frustrado diante de parcos resultados de catequização dos índios bravios, Ianoni assume que faltou politizar e explicitar mais, e impor o ideário social-desenvolvimentista da classe intelectual esquerdista como verdadeiro ao restante da sociedade.

Além disso, Ianoni parte para o negacionismo histórico. Quando a esquerda é bem sucedida politicamente, assumem, a posteriori, a existência histórica de uma dominação hegemônica da esquerda sobre a sociedade (como a marcha pela “redemocratização” e as Diretas Já). Quando fracassam, como vem ocorrendo desde 2016, assumem que nunca dominaram de verdade os valores de uma sociedade historicamente, e que faltou dominar mais.

Por fim, Ianoni acusa os críticos liberais conservadores da mentalidade hegemônica esquerdista de eles próprios implementarem uma hegemonia cultural:

“No momento, que talvez não dure muito, quem efetivamente está implementando bem a tal metodologia da hegemonia cultural é a extrema-direita, com sua indústria de fake news, com seu exército neopentecostal, com seu discurso fácil e maniqueísta contra a corrupção, com sua aliança com a burocracia togada de Moro & cia. e demais elites do aparato repressivo, mas também com a indústria da mídia e, sobretudo, com o mercado e com seus acenos a Washington.”

“Mas a hegemonia e a legitimidade dependem, por um lado, de valores, de aspectos simbólicos, e, por outro lado, de pressupostos materiais mínimos, de resultados, de desempenho. Que resultados se pode esperar de um ultraliberalismo de extrema-direita? E o que o “partido da esquerda” democrática e eleitoralmente competitiva tem a oferecer como projeto de vontade coletiva transformadora nessa nova quadra histórica nacional?”

Resta saber deste cientista político formado em Harvard, um brilhante intérprete hermenêutico dessa mística vontade coletiva transformadora, qual seria esse critério objetivo de “resultados e desempenho” que faz um projeto de poder ser legítimo ou não. O que faz com que um mesmo projeto hegemônico de poder, que ele tanto elogia como produto de um consenso democrático, quando liderado por um grupo (em especial o dele), seja denunciado como repressão e manipulação autoritária por outro? Ou será que não poderemos assumir por um breve momento que hoje a vontade coletiva mudou, e para o lado oposto àquele que a classe ascética dos profetas de cátedra há décadas esperavam?

 

[1] https://jornalggn.com.br/noticia/direita-esquerda-e-gramsci-na-cena-historica-por-marcus-ianoni?fbclid=IwAR1k1Geb8eUaWUgvr2p-e9i_btA0ngoTl0c8a9GHXlx2O6iwGLD3-79E3Us

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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