Cenas de um Casamento e o Niilismo Ocidental – Tiago Barreira

Cenas de um Casamento. Foto: Bright Wall/Dark Room

O filme Cenas de um Casamento (1973), do diretor sueco Ingmar Bergman, é uma obra essencial para se compreender os tempos modernos. O filme tem como tema o amor conjugal, adultério, divórcio, instituição familiar, feminismo e relações de gênero. O filme retrata a transição dos costumes de uma sociedade moralizada e familio-cêntrica rumo à moderna Suécia dos dias atuais, marcada pelo individualismo, emancipação de papeis de gênero e liberdade sexual. Um documento histórico do triunfo do niilismo dos costumes da atualidade.

A velocidade de mudanças comportamentais que o Ocidente experimentou no curto período de 1960-1970 impressiona. Vivemos hoje um eterno 1968, ainda presos à agenda política ditada pelos estudantes incendiadores da Sorbonne que sonhavam em “um outro mundo possível”. Ironicamente, os grupos sociais que hoje controlam o establishment político, midiático e acadêmico dos países ocidentais pertencem àquela mesma geração revolucionária e rebelde que contestava este mesmo establishment sob os slogans “Seja um marginal, seja um herói” e “É proibido proibir”.

O niilismo comportamental e o escárnio dos valores burgueses tradicionais se tornou regra mainstream.  E em nenhum país este niilismo deixou marcas tão profundas quanto na atual Suécia progressista, desumanizada por um estado igualitarista e politicamente correto. De uma sociedade atomizada dos homens-massa, esvaziada das raízes espirituais cristãs protestantes que a levantaram como uma das nações mais desenvolvidas do mundo na economia, educação e pesquisa científica.

Retomemos ao filme.  Cenas de um Casamento narra, de maneira dramática, a vida de um casal de classe média na Suécia dos anos 70. Ambos são admirados como um modelo de casamento bem sucedido e feliz, sendo alvo de diversas entrevistas de TV e manchetes de jornais. Orgulhosos de si e de suas vidas estáveis “ridiculamente burguesas”, a vida do casal é bruscamente posta abaixo, quando o marido Johan, em sua meia-idade dos 45 anos, decide romper francamente com a esposa Marianne (estrelada pela atriz Liv Ullmann), vender seus bens e abandonar a casa e filhos por uma jovem amante de 23 anos.

O tema do adultério, um tema por si corriqueiro e banal, mas não menos universal, ganha profundidade em sua riqueza dos diálogos pela maestria do cinema existencialista de Bergman, diretor de filmes como o Sétimo Selo e Morangos Silvestres.  A esposa Marianne é a personagem-chave do filme. De uma tímida e dedicada esposa, que cumpre papeis tradicionais domésticos na casa (embora seja uma advogada bem sucedida) e exerce uma vida inteiramente voltada em sacrifício do marido, Marianne sofre inicialmente com a separação e o fracasso do casamento. Contudo, gradualmente passa a superar os velhos tabus e preconceitos sexuais e sociais de gênero que lhe foram incutidos pela família (via terapias de psicanálise), até transformar-se na mulher sueca independente dos dias atuais, altamente individualizada, e empoderada sexualmente, avessa e cínica a relacionamentos monogâmicos estáveis. A trama reflete a mudança de padrões e valores vigentes na cultura ocidental do período, no esteio da revolução sexual dos anos 60 e 70 e do fortalecimento de bandeiras feministas.

O filme teria ocasionado uma onda de divórcios na Suécia assim que foi lançado, em 1973, o que na época ainda era uma novidade. De lá para cá esta flexibilização dos costumes só aumentaria. Não podemos deixar de notar reflexos desta cultura anti-família que se apoderou na Europa ocidental, que alcança o seu cume com o declínio vegetativo da população, e à necessidade de importação em massa de imigrantes .

O sueco do século XX e XXI vive sob angústia e esvaziado de sentido e significados. E o tema da angústia e do vazio niilista existencial, um tema kierkgaardiano recorrente em todo o cinema de Bergman, pontua os diálogos do casal.  Uma das cenas emblemáticas é o marido, ao confessar sobre suas reais motivações sobre o divórcio, responde sinceramente que não sabe. Por ainda não saber quem é. Trata-se aqui de um niilista, em plena crise de meia-idade, que perdeu qualquer sentido sobre o que significa as responsabilidades de uma vida adulta, destruído financeiramente e manipulado emocionalmente pela amante. O marido, entregue às vicissitudes de seus impulsos e desejos físicos, culpa a esposa pelo casamento fracassado por não lhe satisfazer sexualmente como devia. E ainda, a conclusão final: “Somos analfabetos emocionais. Aprendemos Anatomia, métodos de cultivo na África, sabemos fórmulas matemáticas de cor e salteado, mas nunca nos ensinaram nada sobre nossas almas. Somos extremamente ignorantes sobre o que move as pessoas”. Brilhante descrição do estado de vazio e desespero espiritual no país de Greta Thunberg.

Tiago Barreira

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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