A Experiência Transformadora da Leitura – Eliseu Cidade

por Eliseu Cidade

Reading woman on a settee, de William Worcester Churchill (1858-1926)

O ato de ler faz parte do cotidiano da vida da maioria dos homens, desde o surgimento da escrita, há cerca de 4 mil anos, e depois seu acesso foi formidavelmente ampliado após o surgimento da imprensa. Mas o que significa realmente ler? Muitos já devem ter ouvido as seguintes expressões em quaisquer conversas: “Eu consigo ler pessoas”, “Eu sei ler sentimentos, gestos faciais, etc”. Não é incomum nos depararmos com esse tipo de comentário aqui e acolá.

Mas deves estar se perguntando: O que isso tem a ver com a leitura? Eu digo: tudo. Leitura não se trata apenas de ler e significar palavras previamente sabidas; ou, adequá-las ao seu significado concreto, isto é, por meio do dicionário. O ato de ler envolve a interpretação de realidades e, além disso, o de interpretar intenções, muitas vezes, emaranhadas como enigmas em um texto; mas, propositalmente colocadas ali por um escritor.

A leitura não se trata de um registro fechado, concluído, e encerrado em si mesmo. Mesmo quando lemos em voz alta, temos a vaga impressão de estarmos falando sozinhos ou, apenas, lendo para estimular a memória auditiva e guardar de forma mais eficiente aquelas informações as quais nos deparamos naquele momento. Mas, diferente do que a maioria possa conjeturar, a atividade da leitura, longe de ser um monólogo, é um eterno diálogo. Esse diálogo se estabelece entre escritor e leitor à medida que se adentra em uma leitura. E sim, você pode interagir, adicionar observações, objetar e concordar com o escritor. Pode parecer coisa de louco, porém é a mais pura verdade.

Fato é que alguns escritores, por matéria de estilo, como Machado de Assis, estabelecem nitidamente o diálogo com o leitor; seja por meio das desinências verbais em segunda pessoa ou atribuindo pronomes como “você”, “tu”, ou, seu conhecido cumprimento saudoso: “Caro, leitor”. Contudo, independente de questões estilísticas, esse diálogo acontece; e é preciso tirar o máximo de experiência desses momentos, pois a verdadeira leitura não é estática, ela é puro movimento, não no só no sentido físico de deslocar seus olhos sobre a tela de um computador ou a página de um livro, mas no sentido interior, de alma.

Mas, diferente do que a maioria possa conjeturar, a atividade da leitura, longe de ser um monólogo, é um eterno diálogo. Esse diálogo se estabelece entre escritor e leitor à medida que se adentra em uma leitura. E sim, você pode interagir, adicionar observações, objetar e concordar com o escritor. Pode parecer coisa de louco, porém é a mais pura verdade.

Alguns escritores, por matéria de estilo, como Machado de Assis, estabelecem nitidamente o diálogo com o leitor.

A leitura é uma atividade desbravadora que requer confiança e coragem por parte do leitor, pois aquele que lê simplesmente não sabe onde exatamente a leitura irá conduzir. Existem uma infinidade de caminhos os quais uma boa leitura pode guiar um leitor voraz e ávido por conhecimento. Ela atua não só no alargamento do horizonte de consciência, mas traz em si mesma a transformação de ideias, preconceitos, julgamentos e pensamentos. Por isso, é importante atentar para o trabalho, muitas vezes árduo, de não criticar ou refutar quaisquer conceitos e palavras de determinado autor, salvo após a leitura e profunda reflexão do conteúdo assimilado. Assim, ao se deparar com os dramas existentes na sequência factual ou argumentativa, devemos vivenciar as mesmas situações para tirar nossas conclusões de forma sincera, séria e compromissada com a unidade fidedigna do objeto de estudo.

A leitura é distinta de atividades que fazemos estritamente em nosso presente, pois quando feita de maneira adequada, ela é capaz de nos conduzir ao passado, presente e futuro; não como algo desconectado e aleatório, mas com unidade temporal de reconhecer semelhanças mesmo em tempos distintos, sejam nos hábitos, costumes, pessoas, comportamentos, ideias, modelos sociais, ou o que quer que seja. Esse elo que permite vivenciar, a nível imaginativo, o tempo histórico em que nosso eu está fisicamente distante, mas mentalmente presente, permite um repertório de experiências muito acima do que qualquer indivíduo no presente possa vivenciar.

Esse deslocamento temporal que a leitura poética, literária, filosófica e histórica fornecem são capazes de traçar o panorama de experiências não só com fatos históricos e eventos passados dos quais só temos contato por meio dos escritos, mas também permite ter contato com as grandes inteligências, os grandes formadores da civilização, isto é, aqueles que contribuíram com o progresso da cultura humana de forma geral. Nesse sentido, a leitura tem dimensão formativa e contemplativa simultâneas, já que ela permite o acesso a dimensões limitadas espacial e temporalmente, mas que através dessa ruptura de limites, por meio da atividade atenta do leitor, é capaz de conduzi-lo a adquirir mais conteúdo e aprendizado que podem ser extraídos apenas de análises filológicas e acadêmicas de livros e escritos.

Outra característica interessante da leitura é que ela é uma atividade social. Ao analisar a história cultural, percebemos que na Europa moderna haviam os salões de leitura, bem conhecidos como cafés, existentes especialmente na França, como espaços para compartilhar as experiências literárias individuais através de conversas e intercâmbio de ideias.

A simples investigação da biografia de figuras influentes na formação dos Estados Unidos como Abraham Lincoln e Benjamin Franklin permite atestar a importância da leitura como fonte não só de saber, mas de formação pessoal que está para muito além da profissional. Atualmente, é fato que o hábito da leitura comunitária tenha se perdido de forma geral, sobretudo no Brasil, o que justifica a decadência do aprendizado mútuo, cada vez mais ligado à atividade burocrática da educação estatal, que, ainda que feita da melhor maneira, não deixa de ser limitada em seus empreendimentos.

A leitura comunitária, ou seja, aquela exercida com familiares, amigos e conhecidos, proporciona além da sensação de aprendizado e estreitamento de laços coletivos entre os indivíduos, um verdadeiro entretenimento intelectual. Esse tipo de leitura por mais que tenha objetivos e parâmetros a serem seguidos por grupos de estudiosos, não deixa de ser uma atividade de cunho recreativo, por assim dizer, proporcionando o bem estar da interação social pari passu ao aprimoramento intelectual e cognitivo.

Atualmente, é fato que o hábito da leitura comunitária tenha se perdido de forma geral, sobretudo no Brasil, o que justifica a decadência do aprendizado mútuo, cada vez mais ligado à atividade burocrática da educação estatal. Na imagem, o quadro A Leitura de Molière, de Jean François de Troy. Fonte: Meister Druck

Nesse sentido, a leitura não se resume a eventos isolados restritos apenas às pessoas com o dom de serem antissociais ao cultivarem a vida intelectual de modo recluso. A leitura é muito mais recompensadora quando perpassa as barreiras individuais, no sentido de enriquecer múltiplas análises e favorecer os processos mnemônicos, pois é muito mais simples relembrar conteúdos daquelas leituras que fizeram parte de uma conversa. Seguindo essa visão amplificada, a leitura deixa de ser meramente um ato isolado feito nas horas vagas para se tornar realmente experiências individuais que já não podem ser esquecidas. A leitura é a viagem que entrelaça o passado, o presente e o futuro, além de promover no leitor contato direto com suas tensões internas e existenciais ao longo de seu diálogo com o escritor, que, muitas vezes, pode jamais ser o mesmo após determinada leitura.

Por isso, a leitura quando realmente bem feita é agente de transformação do ser, pois só podemos ser a partir daquilo que conhecemos.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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