A Quarta Teoria Política de Alexandr Dugin e o Conflito Rússia-Ocidente – Eliseu Cidade

Reprodução: Wikimedia

A Quarta Teoria Política de Alexandr Dugin — cuja influência se faz perceptível na cosmovisão de Vladimir Putin — prega o retorno da Rússia às suas raízes ontológicas e espirituais, eternizadas no espaço e no tempo através de um passado mítico de coesão nacional. Um retorno capaz de emergir como um projeto de Estado-nação que possa preservar sua soberania e desafiar a ordem unipolar pós-liberal.

Por Eliseu Cidade

Segundo o filósofo e cientista político Alexandr Dugin — cuja influência se faz perceptível na cosmovisão de Vladimir Putin — a ordem pós-liberal é caracterizada pelas leis econômicas dos mercados globais e os direitos humanos como parte da moralidade universal. A ordem pós-liberal culminará, segundo as palavras do autor, com a abolição completa da política, tendo em vista o avanço do caráter tecnocrático das decisões políticas guiadas por uma lógica de gerenciamento.

Dugin argumenta que o liberalismo retira a ênfase do sujeito e se concentra no objeto — e, por isso, a quarta teoria política, segundo ele, serve como um contraponto, uma espécie de possibilidade de contradição à realidade. A Quarta Teoria Política, que é uma teoria ontológica cujo âmago é a consciência verdadeira do ser, objetiva a rejeição da própria essência da modernidade como fator principal e cuja atenção está em amalgamar tudo aquilo que fora descartado e derrubado ao longo do processo histórico —ideologias como fascismo, comunismo, liberalismo, etc. — e assim, estabelecer uma nova identidade baseada no fortalecimento de um passado mítico e na restauração da metafísica.

Dugin parte da ideia de Heidegger do puro Ser e sua expressão na existência como possibilidade, o Dasein (alemão: Ser-aí). Segundo essa interpretação, o homem teria deixado esse puro Ser ao assumir a postura niilista ocidental advinda de Nietzsche, isto é, o Nada — o oposto do puro Ser. Ao recorrer à terminologia Ereignis (evento) cunhada por Heidegger, Dugin afirma ser este o estado do retorno autêntico do Ser, em outras palavras, o retorno ao verdadeiro Ser, ao interligar tudo ao seu redor; e assim, renovar teorias políticas de outrora à luz da teologia e mitologia, uma vez que retomando os elementos metafísicos que se enfraqueceram no Ocidente pela influência do progresso positivista, e que morosamente foram substituídos pela ciência como uma forma de superação gradual da religião, haveria esse retorno de estágio originário do Ser (DUGIN, 2012, p.42).

Assim, no coração da Quarta Teoria Política, em seu centro magnético, está a trajetória da Ereignis (o “Evento”) iminente, que incorporará o retorno triunfante do Ser no exato momento em que a humanidade o esquece de uma vez por todas, ao ponto de que seus últimos traços desaparecem (DUGIN, 2009, p.42).

Essa busca pelo Ser nada mais é do que um retorno da Rússia às suas raízes ontológicas e espirituais, eternizadas no espaço e no tempo através de um passado mítico de coesão nacional. Um retorno capaz de emergir como um projeto de Estado-nação que possa preservar sua soberania e, pari passu, desafiar a ordem unipolar pós-liberal, bem como as crises econômicas globais. Dugin apresenta ainda algumas similaridades de pensamento com o filósofo francês Alain de Benoist, fundador do movimento ultraconservador da Nova Direita nos anos 1960 no que tange à crítica liberal ocidental, como observado no excerto a seguir:

A globalização, a crise econômica e social, o processo de integração europeia, as novas tendências políticas e sociais, o relacionamento entre Europa e Rússia, o humanismo, etc. Todos esses problemas são abordados do ponto de partida da crítica à ideologia liberal que domina o mundo (a primeira e mais estável teoria política).”

Tendo permanecido sem competição após o colapso do comunismo, ela se tornou o alvo prioritário de críticas por aqueles que estão agudamente conscientes dos aspectos negativos do status quo – na política, na esfera social, na economia, na cultura, na ideologia, etc. – e por aqueles que estão buscando uma alternativa. As velhas alternativas ao liberalismo – comunismo e fascismo – foram historicamente superadas e descartadas: cada uma à sua própria maneira, porém, elas demonstraram sua ineficácia e incompetência. (DUGIN, 2012, p.49).

De acordo com Dugin, na ideologia liberal, o sujeito histórico é o próprio indivíduo que se vale da vontade e da moralidade — sendo este o próprio enfoque do liberalismo. No comunismo, o sujeito histórico torna-se a classe, uma vez que o centro de debate é justamente a estrutura das classes sociais e suas contradições a partir da dicotomia entre classe exploradora e classe explorada. O processo histórico é o desenrolar da luta de classes. Mutatis mutandis, o proletário se libertaria da dominação da classe burguesa e, a partir daí, haveria a criação de uma nova sociedade. Percebe-se que o indivíduo aqui é visto como parte de algo maior, isto é, da totalidade de classe, e sua existência social está condicionada à aquisição da consciência de classe.

Por fim, o sujeito histórico da terceira teoria política é o Estado (fascismo italiano) ou a raça (nazismo), partindo do ideal de Hegel do Estado como o cume do desenvolvimento histórico ou na questão da raça pura, a raça ariana, em que haveria o conflito entre raças consideradas sub-humanas.

Já na Quarta Teoria Política não haveria a construção de sujeitos históricos, nem indivíduo, nem classe, nem Estado e nem raça. Ao contrário, Dugin propõe não um sujeito puro, mas sim uma amálgama desses sujeitos através de uma combinação entre eles, como o autor descreve um “sujeito composto”.

Segundo Alain de Benoist, a acumulação capitalista e o desenvolvimento dos mercados é o ápice do espírito burguês que com o poder do capital, paulatinamente, rompe com tradições e valores, superando laços comunitários, fazendo prosperar assim o interesse individual.

A expansão dos valores individualistas, racionais e cosmopolitas relacionados à burguesia desde o Iluminismo conduziria ao triunfo de um mundo mercantilizado, e o Estado liberal, com sua democracia representativa, seria um mecanismo da própria dominação burguesa. O comunismo, o socialismo ou o fascismo, entretanto, não seriam soluções: seriam sistemas de dominação burocráticos que seguem a mesma lógica de homogeneização social, em nome de uma classe ou da pátria; no caso do fascismo, de um ideal nacionalista burguês.

Nesse sentido, o Eurasianismo afirma o fenômeno da cultura ocidental como local e temporário, e assim, ele surge como uma resposta à busca pela universalidade por parte da civilização ocidental. Segundo o Eurasianismo, a Modernidade — tal qual conhecemos — só existe no Ocidente e, ao mesmo tempo, reivindica-se a universalização desses valores ocidentais sob a égide do progresso. Em contrapartida, o Eurasianismo é considerado um pluralismo gnosiológico, contendo uma pluralidade de epistemes, tendo em vista que cada povo possui sua própria cultura e conjunto de valores alicerçados em cada civilização existente. “Os eurasianistas parcialmente se aproximam dos tradicionalistas de Guénon que também consideraram que a “modernidade” é um conceito “ocidental”, quando ainda há formas de sociedade tradicional no Oriente” (DUGIN, 2012, p.253).

Em relação à dimensão geopolítica, Dugin afirma ser a unipolaridade uma ameaça. Partindo do princípio de que um único poder é capaz de definir quem está certo, errado ou quem deve ser punido — tem-se uma ditadura global. Assim, ele afirma que a Rússia deve reagir contra a privação de liberdade advinda do ocidente e que o Império Americano deve ser destruído.

Ainda a respeito da identidade russa, é inegável que haja a influência da dimensão espiritual como fator integrante da cosmovisão russa que implica também na formulação da sua política externa, estratégia e postura nas disputas geopolíticas. Nesse sentido, Estado e Igreja agem não como entidades distintas, mas como uma perfeita simbiose cujos objetivos nacionalistas são buscados em comum harmonia. A articulação da política com a igreja ortodoxa advém do pan-eslavismo — movimento nacionalista russo que se utiliza da religião como instrumento geopolítico nas nações regionais, em destaque para os Bálcãs, noção propagada da ideia da Rússia ser a Terceira Roma que existe desde a queda do Império Bizantino. O cristianismo ortodoxo seria o elemento principal de consolidação da identidade eslava, e historicamente, o primeiro Estado de povos eslavos durante o século IX teve como sua capital Kiev, atualmente capital da Ucrânia, e que à época oficializou o cristianismo ortodoxo como religião oficial juntamente com o alfabeto cirílico.

A questão da modernidade ocidental e da emancipação do homem europeu através da razão, valores esses cultivados após o surgimento do iluminismo francês, é inclusive objeto de análise por escritores russos, como Dostoievski, fazendo-se presente na literatura. Suas obras estão imbuídas de temas e simbolismos políticos, ressaltando uma espécie de messianismo civilizacional e busca pela manutenção e sobrevivência da identidade russa contra o domínio da sociedade burguesa europeia e do rompimento com as tradições através correntes filosóficas nascentes como positivismo e niilismo.

Em sua obra O homem do subsolo, Dostoievski reflete sobre a liberdade humana em xeque graças às verdades matematizadas — reduzindo o homem à razão e à matéria, ignorando assim outras dimensões humanas como a da vontade e do desejo. Para o autor, o comportamento humano padronizado e cético conduziria o homem à ausência de liberdade e, em última instância, a loucura e falta de sentido.

Diante dessa análise, esse é o cenário que a Rússia de Putin está enfrentando: uma mistura de choque de ideologias, cosmovisões, interesses geopolíticos, estratégicos e controles sobre determinados territórios em busca de algo maior, ou seja, salvar a mãe Rússia da influência política e cultural ocidental e levar adiante seus valores identitários tradicionais tanto culturais quanto espirituais.

Referências

DUGIN, Alexandr. A quarta teoria política. Porto Alegre: Editora Austral, 2012.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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