
A economia enquanto ciência vivenciada na prática ainda se encontra muito distante de universalizar-se como uma ciência do ser humano, com elevada propensão à captura por grupos políticos de pressão interessados em fins de curto prazo, em detrimento de metas de bem-estar geral e de longo prazo. Isso se deve não tanto pela sua imprecisão ou falta de rigor com o método de investigação de dados, como os positivistas buscam levantar. Mas sobretudo pela falta de habilidade do investigador econômico atual em interpretar os dados de forma clara, razoável e consistente com o todo da realidade.
Tiago Barreira
Não posso deixar de ressaltar o mea culpa pela minha formação e profissão de cientista econômico. Se existe algo que a economia mainstream se mostrou incapaz de alcançar enquanto ciência, ao longo dos últimos 150 anos em que se consolidou como uma disciplina acadêmica especializada, é a finalidade última de toda ciência, que é a de produzir um discurso científico homogêneo e consistente perante a sociedade.
Como diria a expressão, um economista, muitas cabeças. Essa multiplicidade de opiniões e de teses destoa fortemente daquilo que se poderia esperar em outras ciências, como a física, medicina e biologia. É o mesmo que pensar em uma física que tenha duas leis da gravidade concorrentes. Uma supondo a aceleração da velocidade de queda de um objeto quando lançado ao ar, outra supondo o oposto, a sua desaceleração quando jogado ao ar, até permanecer em repouso flutuando no ar.
Nada mais ridículo do que imaginar uma ciência que faz multiplicar argumentos e teorias contraditórias, quando a finalidade maior de toda ciência é sempre não a de dividir, mas justamente a de homogeneizar e reduzir toda a multiplicidade de opiniões e argumentos Doxa em um acordo comum, em uma unidade do conhecimento, para assim alcançar o seu fim último, a visão integral e plena do Logos verdadeiro.
Ludwig von Mises mencionaria que a economia enquanto ciência possui a tendência natural de entrar em conflito com o seu lado corporativista de profissão e a vender-se para a defesa de grupos políticos de pressão interessados em fins de curto prazo, em detrimento de metas de bem-estar geral e no longo prazo. Por ser uma ciência muito ligada com o dinheiro, a propensão à corrupção intelectual é grande nesse sentido.
Aumento na taxa de juros combate a inflação? Os setores de atividade e entidades de classe penalizadas por juros altos já têm os seus economistas para dizer que isso é ineficaz e que juros devem ser mantidos baixos mesmo em períodos de aceleração inflacionária. Esse é o argumento da teoria monetária moderna (MMT).
Poupança alta produz crescimento e investimento? Há quem diga o contrário e que se deve poupar menos e consumir mais, e que é isso que faz girar a “roda da economia”. O setor do varejo é o que mais tende a aplaudir essa lógica do consumo como motor do crescimento.
Liberar o comércio enquanto política pública gera crescimento e bem-estar? Os setores menos competitivos já têm o seu discurso econômico pronto para comprovar que ainda não se pode fazê-la, pois sua indústria é uma criança que necessita de subsídios estatais e proteção tarifária para crescer. Tudo isso legitimado por argumentos da ciência econômica, e recheado por estudos e estatísticas sofisticadas de economistas.
A grande frustração pessoal minha com a economia como ciência vivenciada na prática está justamente nessa sua incapacidade de se universalizar como uma ciência do ser humano, tendo o seu linguajar e jargão científico sido frequentemente apropriado e utilizado de forma promíscua por grupos de pressão, que nada querem além da melhoria e o bem-estar imediato do seu grupo, às custas do demais.
Ciência Econômica e Hermenêutica
Assim, portanto, a verdade é que a argumentação econômica, com toda a sua parafernália de rigor tecnicista e hiperespecialismo de modelagem abstrata de equações, gráficos, mostrou-se incapaz de alcançar uma teoria coesa e unificada da realidade, estando dispersa e fragmentada em diversas escolas de pensamento.
Nesse sentido, a fragmentação da economia enquanto ciência não se deve tanto pela sua imprecisão ou falta de rigor com o método de investigação de dados, como os positivistas buscam levantar. Mas sobretudo pela falta de habilidade do investigador econômico atual em interpretar os dados de forma clara, razoável e consistente com o todo da realidade.
Deve-se notar que a ciência econômica apresenta uma dupla natureza. De um lado possui uma fundamentação teórica semelhante às ciências exatas como a física, e com pretensões à exatidão matemática. Por outro, é uma ciência social, que lida com um objeto de estudo altamente impreciso em termos de métrica e abrindo assim amplo espaço para a interpretação subjetiva do investigador.
Trata-se de uma ciência que, portanto, se situa entre a cruz e a espada, misturando ao mesmo tempo elementos da hermenêutica interpretativa da ciência histórica e sociológica e elementos de explicação e predição quantitativa das ciências da natureza. Se o rigor metodológico da ciência econômica em muito progrediu nas últimas décadas, oferecendo aos alunos dos atuais programas acadêmicos o acesso ao mais sofisticado ferramental técnico para predição e análise, a economia por outro lado muito pouco progrediu na dimensão hermenêutica e interpretativa do seu lado de ciência social.
O rigor metodológico, embora tenha o seu devido valor para a validação lógica-analítica e confirmação empírica de raciocínios econômicos, em nada contribui para o avanço da interpretação hermenêutica. A interpretação exige, ao contrário, uma certa atitude imaginativa de intuição do investigador. Exige uma certa visão do todo integrado da realidade.
Podemos pensar a importância dessa visão do todo da seguinte forma. Imaginemos um problema de quebra-cabeça, como a imagem de uma paisagem no campo tendo várias de suas peças fragmentadas. Cada uma das suas peças sendo irreconhecíveis individualmente. O investigador tem diante de si peças de várias cores e de vários formatos. Ele precisa identificar quais delas são encaixáveis segundo o formato. Supondo que ele nunca tenha visto a imagem final montada, é possível que ele precise encaixar as peças testando uma a uma, por tentativa e erro.
Supondo um quebra-cabeça de 1000 peças, existe para cada peça uma única combinação possível com uma das demais 999 peças. Assim, o encaixe da primeira peça com a segunda peça exige testar 999 peças em 1, das quais apenas uma combinação é a correta. Temos assim 1/999 de probabilidade de acerto para a primeira tentativa de encaixe. Em seguida, para a segunda peça, o encaixe com terceira exige testar as 998 restantes, com 1/998 probabilidade de acerto. A terceira com a quarta com 1/997 probabilidade de acerto, e assim por diante. Podemos formular o problema no seguinte gráfico:
Como se pode notar no gráfico acima, até a 980ª peça encaixada, a probabilidade de encaixe não supera os 5%, vindo a crescer a partir daí exponencialmente para a probabilidade de 10% de encaixe na 990ª peça e 25% de encaixe na 996ª peça. Somente na penúltima peça (998ª), finalmente o montador conseguiria alcançar uma probabilidade de mais de 50% de acerto.
Agora vamos supor um outro cenário. O montador possui alguma ideia da imagem montada. Ele sabe de antemão que é uma paisagem de campo, tal como os quadros de Van Gogh. A metade superior do quadro ele saberia ser um céu, e por isso ele adivinharia ser de cor azul. A metade inferior corresponderia a um campo de trigo, e por isso ele suporia ser de cor amarela. Com isso, ele separaria as 1000 peças em 500 cada uma. Um grupo de cores azuis e outro de amarelas. Assim, ele testaria a primeira peça de cada grupo via tentativa e erro, do mesmo modo como faria no caso anterior, mas não entre as 999 peças, mas entre as 499 peças que ele sabe ser da mesma cor que a da primeira peça de cada grupo. Com a segunda peça de cada grupo, ele faria o mesmo com as 498 restantes, e por aí vai. Temos então:
Como se pode notar, o processo de montagem das peças deixou de ser aleatório e as peças passaram a ser organizadas segundo 2 grupos de cores pré-selecionadas. Denominamos este segundo cenário de parâmetro k=2 cores. Enquanto no cenário k=1 (aleatório), ele precisaria chegar na 998ª peça para acertar o encaixe com mais de 50% de probabilidade, no cenário k=2, ele já conseguiria acerto de 50% na 994ª peça.
A melhoria de aprendizado à primeira vista parece ser mínima de 1 para 2 cores. Mas vamos supor agora um terceiro cenário. O montador possui uma imagem mental mais nítida do campo de Van Gogh. Agora ele consegue identificar não somente as cores do céu e do campo, mas as tonalidades dos detalhes. Ele consegue identificar tonalidades mais escuras em certos pontos do céu, constituindo os corvos, outras mais claras, constituindo as nuvens. Ele consegue identificar outras tonalidades mais esverdeadas dos campos. Ao todo, ele consegue pré-ordenar as peças do quebra-cabeça em 10 grupos de cores distintos. Vejamos agora como ficaria o gráfico de probabilidade.
A probabilidade de acerto para k=10 cores, como se pode notar, representou uma melhora ainda mais significativa, passando para a 970ª peça a probabilidade de encaixe a 50%. Agora vamos imaginar cenários ainda mais complexos, em que o montador consiga identificar e pré-ordenar peças em um maior número agrupamentos de cores distintas. Para k=100 cores, ele alcançaria probabilidade de encaixe de 50% na 700ª peça, e para k=500 cores, ele já conseguiria 50% de encaixe na 400ª peça. Assim ficaria o gráfico final:
Esse exercício mental busca ilustrar o seguinte ponto. O montador do quebra-cabeça, supondo não possuir nenhuma ideia mental da paisagem do quebra-cabeça pronto, precisará testar de forma aleatória cada peça por tentativa e erro uma a uma, de modo que somente consiga aprender a acertar a montagem com elevada probabilidade de encaixe nas 2 últimas peças. É exatamente dessa forma que funcionaria a mente de um programa simples de aprendizado em máquina, operacionalizado na ausência de qualquer imagem prévia. Por outro lado, caso o montador tenha alguma imagem mental prévia, o custo de aprendizado e probabilidade de erro diminui. Quanto melhor a capacidade de supor e imaginar o conjunto final em sua riqueza e complexidade de detalhes, cores e qualidades, mais fácil o processo de montagem e descoberta dos encaixes.
É nesse sentido que entra o papel da interpretação hermenêutica no raciocínio humano. A interpretação possui um papel primordial em pré-ordenar seletivamente fragmentos dispersos, facilitando o processo de identificação de padrões e regularidade, e potencializando ainda mais o processo de raciocínio e descoberta. Sem a capacidade de adivinhar padrões, e portanto sem a capacidade de associar imagens e ideias mentais conhecidas com outras desconhecidas, a possibilidade de inferência, descoberta e raciocínio fica totalmente comprometida. Esta pode ser ainda possível, através da tentativa e erro. Mas seria um processo muito longo e demorado.
O aprendizado empírico aleatório por tentativa e erro, tão exaltado pela ciência positivista como o único método verdadeiramente científico, nada mais seria do que o aprendizado dos animais, de cães, cavalos e animais amestrados, e por isso eles não conseguem agregar conhecimento. O ser humano consegue imaginar, intuir, supor e cogitar. A imaginação possui nesse sentido o seu papel complementar ao rigor analítico e metodológico, não podendo jamais ser desprezado.
Daí vem a importância de que todo investigador econômico, assim como para os cientistas de outras áreas, tenham uma excelente formação humanística, filosófica e literária. Somente a partir desta formação é possível que se consiga o verdadeiro senso de medida da natureza humana, não em seu sentido meramente quantitativo, mas também em seu aspecto qualitativo, com toda a sua riqueza e complexidade de cores, nuances e distinções antropológicas, culturais e morais. Um senso de medida qualitativo do humano que seja capaz de guiar e iluminar a linha de pesquisa do cientista, tal como a imagem da pintura para as peças do quebra-cabeça, permitindo assim melhor mapear, orientar, categorizar e organizar o processo de investigação.
Referências
MISES, Ludwig von. O estudo da economia, os economistas, as previsões econômicas e o cidadão comum. Disponível em https://mises.org.br/article/1677/o-estudo-da-economia-os-economistas-as-previsoes-economicas-e-o-cidadao-comum. Acesso em 22 de Março de 2023
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.