
Santiago de Compostela, a cidade-santuário galega, é o berço da espiritualidade e da cultura ibérica cristã. Ponto de interseção de peregrinos de diversas culturas e países, é um símbolo da diversidade cultural na unidade na Igreja de Cristo. É também um símbolo do ideal aglutinador cultural da Hispanidade, que possui a figura do Santiago conquistador como o seu maior norte, vindo a preparar o projeto ideológico espanhol de Império cristão na América.
Tiago Barreira
Santiago de Compostela, a capital da região autônoma da Galicia, e situada no noroeste da Espanha, é o local de um grande centro tradicional de peregrinação, e um dos mais importantes da Europa. O nome da cidade provém do apóstolo missionário cristão São Tiago, uma vez que seria este o local onde seu corpo teria sido sepultado. Segundo relatam tradições cristãs primitivas, Tiago teria evangelizado esta região da Espanha no século I. Ao longo dos séculos posteriores, diversos milagres atribuídos ao santo apóstolo foram testemunhados na região, contribuindo profundamente para a formação da nacionalidade hispânica. Atualmente, o apóstolo é considerado o padroeiro nacional da Espanha.
Tiago Apóstolo, ou Tiago Maior filho de Zebedeu, foi, segundo fontes do Novo Testamento, um dos discípulos mais destacados de Jesus de Nazaré, tendo recebido do mestre o nome de Boanerges, ou “filho do trovão”, em função do caráter impetuoso. Tiago, juntamente com Pedro e João, compôs o grupo dos três únicos apóstolos a testemunharem o mistério da Transfiguração de Cristo, além de também ser um dos primeiros missionários cristãos martirizados, tendo sido decapitado por Herodes Agripa I em Jerusalém no ano 44. Posteriormente à sua morte, segundo relata tradições cristãs primitivas, seus restos teriam sido transladados para a Espanha, na atual região da Galícia. Em função das perseguições romanas aos cristãos na província de Hispânia, seu túmulo foi abandonado no século III.
A peregrinação a Santiago remonta os séculos IX e X, quando foi redescoberto o local de enterramento do apóstolo no ano 814. A notícia de redescoberta repercutiu em toda a Europa medieval, levando à construção de uma igreja em 899. No ano de 997, esta igreja foi incendiada e reduzida a cinzas pelo califado de Córdoba. A atual catedral foi levantada em seu lugar, com construção iniciada em 1075 e com várias etapas sucessivas de construção que perduraram dois séculos, sendo finalizada somente em 1211.
Portanto, a redescoberta do túmulo de Tiago apóstolo não somente levou à fundação e desenvolvimento de uma cidade que se tornaria um santuário de peregrinação durante os séculos correspondentes à Idade Média, como também trouxe consequências importantíssimas para a história da civilização europeia. Neste período, entre os séculos X e XIII, a maior parte da Península Ibérica vivia sob domínio muçulmano. Inúmeras ordens religiosas e de cavalaria, provenientes de nobrezas locais de diversas partes da Europa, partiam em direção à Galícia e ali se instalavam visando garantir a segurança das rotas de peregrinação. E posteriormente, a crescente presença destas ordens tornaria a região um núcleo militarizado de resistência à ocupação muçulmana, vindo a contribuir para o avanço territorial cristão na Península Ibérica e a reconquista dos territórios do Al-Andaluz, a Reconquista Ibérica. O domínio muçulmano da Espanha teria fim definitivo com a tomada de Granada em 1492.
Como exemplo, entre as principais ordens de cavalaria atuantes na proteção dos peregrinos se encontrava a Ordem de Santiago, fundada em 1164. Os cavaleiros santiaguistas estiveram presentes em inúmeras as campanhas militares da Reconquista, e vindo a controlar territórios conquistados que se estendiam por importantes regiões da Espanha. Paralelamente, surgia também durante esse período o costume entre os exércitos espanhóis de invocar o nome de Santiago antes de entrar em batalha.
Santiago, o conquistador
Podemos considerar que o culto a Santiago tornou a região da Galicia, situada no noroeste da Península Ibérica, o principal núcleo de resistência espiritual cristã contra forças muçulmanas do sul Ibérico, núcleo do qual partiria diversas campanhas militares ao sul, e vindo assim a consolidar a formação de reinos cristãos espanhóis ao longo do processo de reconquista da península Ibérica.
Durante esse período, o santo apóstolo foi representado sob diversas formas iconográficas. Dentre estas, não há nenhuma outra representação que melhor simbolize todo o processo de reconquista e a própria identidade nacional espanhola que a figura de Santiago Matamoros.

Santiago Matamoros é o nome dado popularmente à representação do apóstolo Santiago como um cavaleiro em combate. Segundo relatam crônicas medievais, este teria intervido milagrosamente em nome dos cristãos contra os muçulmanos durante a batalha de Clavijo, supostamente em 23 de maio de 844.
A tradição espanhola de Matamoros supostamente remonta ao reinado de Ramiro I de Astúrias. No início de seu reinado, os muçulmanos andaluzes do Emirado de Córdoba exigiram o tributo das cem donzelas aos reinos cristãos do norte. Ramiro I não quis dar-lhes as cem donzelas, e na noite anterior à Batalha de Clavijo, segundo a tradição, teria lhe aparecido em sonho o apóstolo Santiago, que lhe informou que foi designado por Deus como Padroeiro da Espanha. Santiago incentiva Ramiro a lutar e pede que ele o convoque. Os espanhóis lutam gritando “Deus ajude Santiago!”, e os mouros são derrotados, matando mais de cinco mil mouros naquele dia.
Foi através da figura arquetípica de Santiago Matamoros que o ideal simbólico da conquista se entranharia definitivamente na cultura espanhola, marcando para sempre o país como um povo de conquistadores. O escritor Cervantes registrou, no seu Don Quixote de la Mancha, que “Santiago Mata-Mouros é um dos mais valorosos santos e cavaleiros que o Mundo alguma vez teve; foi dado a Espanha por Deus, como seu padroeiro e para sua protecção”.
O simbolismo de Matamoros se manifestaria sob diversas formas ao longo da história cultural espanhola, servindo de inspiração para diversos eventos históricos posteriores, como a conquista espanhola da América, sintetizando também o ideal cultural de Hispanidade. Os povos indígenas pagãos tomaram o lugar dos mouros muçulmanos como os povos a serem cristianizados pelos conquistadores espanhóis da América. Inúmeros milagres em batalhas travadas contra indígenas seriam novamente relatados e atribuídos a Santiago, tornando o santo patrono fundador de diversas cidades do México e América Central.
Na Espanha contemporânea, a exibição pública de imagens de Santiago Matamoros se tornou politicamente incorreta e vem sendo alvo de cancelamentos nos últimos anos em Galícia, sendo questionado pela esquerda espanhola. Segundo esta, a figura de Matamoros se vê associada à legitimação do processo de colonização europeu na América, entendido como de natureza genocida.
Contudo, ao contrário do que a interpretação esquerdista tende a afirmar, o ideal de conquista espanhola da América não foi de nenhuma forma norteado por um ideal racial supremacista sobre os indígenas, tal como feito pela colonização inglesa. O ideal cultural de Hispanidade apresentaria desde o início um caráter integrador e aglutinador de raças e origens ao redor da unidade da fé católica. A maior evidência disso está nos países hispânicos terem como grande atributo característico a forte presença de mestiçagem na sua população.
Santiago, o peregrino
Uma segunda representação iconográfica de Santiago muito presente no imaginário cultural espanhol, é a figura do Santiago Peregrino. Nesta, o apóstolo apresenta um aspecto muito menos combativo do que a figura de Matamoros, e ao invés de estar representado como cavaleiro militar, se encontra como um monge eremita. Inúmeras esculturas, pinturas e vitrais referentes a esta imagem podem ser encontradas na Catedral de Santiago.


Esta outra face mais espiritual de Santiago identifica a figura do apóstolo com os devotos que chegam ao seu santuário, dedicados à experiência ascética da peregrinatio. Pois Santiago também foi um peregrino em sua vida, tendo conhecido toda a região da Hispânia do século I a pé em suas caminhadas evangelizadoras. E posteriormente, na Idade Média o imaginário religioso e cultural vigente não hesitou em representá-lo como um caminhante devoto que usa um cajado, coberto com um chapéu e um grande manto e carrega uma sacola no ombro adornada por uma concha de vieira, a concha de Santiago.
Os atributos que caracterizam o devoto dedicado à peregrinatio – especialmente o cajado e a concha de vieira – continham um significado simbólico. O cajado sobre o qual o peregrino repousa como se fosse um terceiro pé, simboliza a Trindade. A concha de Santiago simboliza as boas obras nas quais cada peregrino deve perseverar depois de ter concluído sua viagem expiatória ao santuário jacobino.

O simbolismo da concha
Não podemos deixar de lembrar também um significado mais profundo por trás do simbolismo da concha de Santiago. A concha representa o próprio mapa de trajetos de peregrinação a Santiago, ao qual analogamente ao desenho de uma concha, partem-se múltiplas linhas convergindo em direção ao destino final, tal como podemos notar abaixo.

Todos os caminhos, portanto, levam a Santiago. A extremidade da concha, enquanto ponto de intersecção de múltiplos caminhos, pode ser entendida como uma analogia ao próprio elemento da unidade e diversidade da religião cristã, em sua unidade doutrinária na diversidade cultural de identidades étnicas, linguísticas e nacionais.
Pois de um lado a Igreja de Cristo é católica, universal, dotada de uma unidade doutrinária e de uma missão evangelizadora que possui como meta final a conversão total do mundo à Igreja, esta mesma busca de universalidade também implica paradoxalmente um distanciamento dos interesses terrenos de uma entidade política étnica nacional ou local.
Logo, não podemos falar de uma Igreja enquanto projeto de império terreno concorrente com outros impérios. A mesma Igreja que propõe o reinado de Cristo sobre o mundo, é também a que conclama membros a cumprirem seus devidos deveres sociais com as autoridades temporais, pagando a César o seu quinhão de imposto devido.
Por fim, os múltiplos caminhos em direção a verdade, nesse sentido, podem também ser entendidos como a noção cristã de liberdade, um dos maiores legados que o cristianismo exerceu sobre a formação da cultura ocidental, em seus ideais de dignidade universal humana pautada na liberdade de consciência.
A liberdade moral de consciência humana seleciona os caminhos a serem percorridos. Mas por outro lado, ao contrário do que afirma a pós-modernidade, essa liberdade moral de consciência possui um sentido e uma direção, uma bússola e norte. Esse norte é a verdade, o destino final para onde aponta os caminhos. Assim como a concha, esses caminhos então convergem a um fim, a realização plena do ser humano e sua felicidade orientada segundo a verdade do Logos.
Referências
Las Apariciones de Santiago Combatiente durante la conquista de America, un debate historiografico. https://apami.home.blog/2021/07/28/las-apariciones-de-santiago-combatiente-durante-la-conquista-de-america-un-debate-historiografico/ <Acesso em 19 de Setembro de 2023>
Santiago de Compostela, https://es.wikipedia.org/wiki/Santiago_de_Compostela <Acesso em 19 de Setembro de 2023>
Santiago Matamoros, https://es.wikipedia.org/wiki/Santiago_Matamoros <Acesso em 19 de Setembro de 2023>
Santiago Peregrino, https://xacopedia.com/Santiago_peregrino <Acesso em 19 de Setembro de 2023>
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