
A obra Fleurs du Mal (1857) de Charles Baudelaire (1821-1867) expõe um dos mistérios mais paradoxais da vida humana: o fascínio pelo Mal como fonte da atração pelo Belo. É no Mal destrutivo, perigoso e mortal que se encontra a fonte de toda voluptuosidade do Belo, ardorosamente desejada e buscada pelo ser humano. Porém, se o mundo é esse caldo indistinguível de Belo e Mal, é possível existir o Bem? Contrariamente às conclusões céticas do poeta sobre a moral, o presente ensaio propõe a sensibilidade do Bem como nascido precisamente dessa tensão dialética entre a consciência do mal e a sensibilidade da beleza.
Tiago Barreira
O contato com o Belo é o primeiro contato da vida do homem com o transcendente. Pois é o mais imediatamente próximo ao sensível e material. Uma criança e um bebê descobrem o mundo experimentando o Belo. Belas paisagens, belos brinquedos, um belo sorriso. A fase infantil acaba justamente quando se descobre que essa experiência do Belo nem sempre é prazerosa, descobrindo por trás de sua substância uma outra dimensão metafísica oculta: o Mal.
A rejeição amorosa de um jovem, o abandono por aquilo que se é amado, a consciência de efemeridade do Belo devido à corrupção da matéria. O prazer advindo do amor à beleza carrega intrinsecamente germes de dor e sofrimento. Tal como a rosa que carrega espinhos, o aproximar ao Belo craveja marcas e chagas ao corpo sofrido do amante. As flores do Belo carregam o mal em sua essência.
Daí que advém o título da grande obra do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), Fleurs du Mal (1857). A poesia simbolista inaugurada por Baudelaire consiste justamente em destacar este mal-estar com o sensível, ilusório e ingênuo, da vida humana. Do mal-estar com o mundo, a inadaptação do sujeito a um mundo de objetos que o nega e contradiz existencialmente. Importantes temas foram tratados na obra de Baudelaire: o amor, o avanço inexorável do tempo, a relação do poeta com as mulheres, a brevidade da existência, o tédio, a morte e o papel do artista na sociedade.
A obra expõe um dos mistérios mais paradoxais da vida humana: a de que o Belo do mundo, por mais maléfico e corrupto que seja, é ardorosamente desejado e buscado pelo sujeito, ao qual fatalisticamente se encontra ligado e não pode escapar. O peso da queda humana consiste nesta consciência desconcertante do real enquanto dualidade entre Belo e Mal. Segundo Baudelaire: “O que é a criação? Se é a unidade que se converte em dualidade, é Deus quem cai. Em outros termos, não é a criação a queda de Deus?”.
Um poema que expõe nitidamente essa dualidade é Hino à Beleza, de Fleurs du Mal .
Vens do fundo do céu ou do abismo, ó sublime
Beleza? Teu olhar, que é divino e infernal,
Verte confusamente o benefício e o crime,
E por isso se diz que do vinho és rival.
O mistério da atração pelo Belo é revelado aqui como um fascínio pelo Mal, e tido como um dos principais traços da natureza caída do homem. E ainda:
Em teus olhos reténs uma aurora e um ocaso;
Tens mais perfumes que uma noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca um vaso
Que tornam fraco o herói e a criança corajosa.
Portanto, no Mal se encontra toda a voluptuosidade do Belo. Para Baudelaire, Deus e Satanás são pólos complementares e inextinguíveis, que despertam sentimentos contraditórios na alma humana de temor e veneração. Em verdade, para Baudelaire, Bem e Mal nada significam intrinsecamente e somente têm o seu valor na sua relação com o Belo. Como muito bem expressado nos versos abaixo:
De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Se és capaz de tornar, – fada aos olhos leves,
Ritmo, perfume, luz! – a vida menos feia,
Menos triste o universo e os instantes mais breves?
Fleurs du Mal de Baudelaire, de fins claramente escandalizadores, foi muito mal interpretado como uma apologia satânica ao Mal, ao revelar a natureza da beleza em seu aspecto estruturalmente diabólico, que em si é fascinante e ao mesmo tempo autodestrutivo. Baudelaire, no entanto, foi uma figura espiritualista, profundamente aristocrática, anti-igualitária e admiradora de De Maistre. Podemos colocá-lo como um profeta da decadência de seu tempo, um crítico violento de ideologias e falsas idolatrias, como o culto ao progresso e a industrialização. O hino à Beleza, como exemplo, mais do que uma mera apologia ao Mal, pode ser entendido como uma condenação irônica da natureza do Mal, que em seu tempo assentava raízes justamente nos apologistas utópicos do Belo que dizem ser isentos de Mal.
Era crítico, portanto, de um mundo que idealizava um Belo brilhante, uma esperança promissora de libertação da humanidade, mas que em nome deste terminava por degradar o ser humano, reduzindo a dimensão transcendental tão somente a uma fruição utilitária das coisas. A poesia de Baudelaire, nesse sentido, pode ser entendida como uma advertência pessimista para os males do falso brilho da beleza, das falsas ilusões utópicas que alienam a vida humana, sempre intoxicantes e escravizantes.
O mistério da beleza, enquanto brilho ilusório e fonte de fascinação pelo Mal, não foi uma originalidade da Europa novecentista de Baudelaire. Encontramos nela referência a um importante arquétipo universal humano: o símbolo da Femme fatale. O mistério da beleza devoradora, este mistério que sempre atraiu a humanidade, pode ser representado pelo símbolo do mistério do feminino, definido agora em sua perfeição simultaneamente fascinante e perigosa, criadora e destruidora, uma verdadeira fábrica de ilusões utópicas.

O simbolismo da Femme Fatale encontra ecos e referências em culturas e civilizações humanas, seja em sua dimensão positiva ou negativa. Em sua dimensão positiva, na religião hindu, encontramos referências à Mohini, uma das manifestações (avatares) do deus Vishnu. O nome Mohini vem da radical sânscrito moha, que significa “iludir, encantar, confundir ou ilusão”, e significa literalmente “ilusão personificada”
Mohini é retratada como uma femme fatale, uma feiticeira, que enlouquece amantes, às vezes levando-os à perdição. Mohini, exerce um importante papel na destruição de demônios em narrativas hindus. Esta surge como uma forma de ludibriar demônios, tendo retirado destes o acesso ao elixir da imortalidade pertencente aos deuses, enfraquecendo-os e culminando na derrocada final destes.

Em sua dimensão negativa, no Antigo Testamento hebraico, temos a referência à rainha Jezabel. Casada com o rei Acabe do Israel (Israel: o do Sul era Judá), afastou o os hebreus dos ritos e costumes da lei mosaica e persuadiu o marido a permitir o culto a Baal, levando assim os hebreus à idolatria pagã de povos vizinhos, marcada pela prática de infanticídio. Jezabel foi distintamente marcada por sua crueldade, comandando assassinatos e execuções contra sacerdotes.
Na modernidade, o cinema é repleto de referências à Femme fatale, sendo o grande tema do gênero de crime dramático da década de 40, o cinema noir. Os enredos geralmente se concentravam em um personagem principal, normalmente masculino, que, influenciado por circunstâncias, tinham desfechos geralmente desfavoráveis. O feitiço ilusório da femme fatale contribuía para a queda em desgraça desses anti-heróis, mergulhando-os em uma espiral de crime e infortúnio.
Deve-se ressaltar, curiosamente, que na estética do cinema noir encontramos os típicos elementos de dualidade da beleza como perigo e prazer tratados na poesia de Baudelaire, através dos contrastes marcantes de claro e escuro na fotografia, aumentando a tensão e o suspense do próprio filme.

A Síntese entre Belo e Mal
Chegamos então a um dos grandes questionamentos filosóficos humanos. Se o mundo é esse caldo indistinguível de Belo e Mal, é possível existir o Bem? O que é o Bem, no final das contas? Em resposta a Baudelaire, que corretamente evidenciou claramente a consciência do Mal e a ilusão do Belo, não fiquemos, contudo, presos ao seu ceticismo moral. A sensibilidade do Bem existe e nasce precisamente como produto dessa tensão dialética entre a consciência do mal e a sensibilidade da beleza.
Proponho aqui precisamente que é no choque e colisão entre o Mal e o Belo que vemos nascer a moralidade e a cultura humana. O refreamento do mal começa a partir do momento em que o Belo, inicialmente idealizado de forma ingênua, é desencantado, limitado e controlado. A escravidão do vício, a cobiça, o adultério, inveja, lascívia e violência são consequências de uma sociedade que não sabe colocar o desejo ao Belo dentro dos seus limites racionais e civilizatórios. Para que os desejos destrutivos da humanidade sejam contidos, é preciso negar o Belo sensível que nos apresenta imediatamente, aparentemente. É preciso saber dizer não ao Belo.
Portanto, é preciso que o Belo tal como nos apresenta aos olhos seja desencantado, esvaziado e superado. Dizer não ao Belo consiste em colocá-lo dentro dos seus limites e ordem. Isso não implica de nenhuma forma reprimi-lo ou persegui-lo puritanicamente. Pois o puritanismo moral é uma reação idealizada extremada à beleza mundana. Mas de sublimá-lo, canalizá-lo esteticamente e artisticamente, limitando-o e desencantando-o em sua energia bruta dentro das formas da arte.
É neste sentido que pode ser entendido o homem enquanto um co-criador da natureza, homo faber. É essencial à vida do homem completar artisticamente a beleza deste mundo natural caído através da fabricação de bens artificiais (de artífice), tornando-o melhor e bom. De transformar terras barrentas em peças de cerâmica. De pântanos selvagens em jardins. De pedras em catedrais. A criação humana artificial, definida não somente pela criação de pinturas, música e poesia, como também através do trabalho da agricultura, domesticação de animais, construção de vilas e cidades, produção econômica, artesanal, industrial e trabalho. Tudo isso tem o seu valor artístico, e, portanto, cumpre um papel importantíssimo na superação da dualidade entre Belo e Mal presente no mundo.
Portanto, a vida técnica econômica faz parte também da vida artística humana. Técnica vem do grego techné, dado Aristóteles, identicamente empregado às belas artes (poesia, teatro e música). Em tempos utilitários atuais da modernidade, é difícil compreender a relação entre produção econômica, arte e beleza. Contudo, é preciso que a ciência econômica se abra para o eixo de valor da Beleza, sem ao qual a compreensão da vida das sociedades pré-modernas fica totalmente comprometida. Essa relação existia e estava intrinsecamente ligada no período pré-industrial, quando não havia separação entre utilidade e beleza, e o belo era uma das finalidades do trabalho artesanal, um período em que arte e indústria ainda não se antagonizavam. A construção civil medieval, comandada por corporações de ofício e dotadas de segredos simbólicos de belas artes, era uma prova desta ligação entre indústria e beleza.
O que é então essa síntese entre o mal e a beleza? Podemos formular a seguinte máxima: trata-se de evitar o mal, sem deixar de buscar o belo. Retire e esvazie tudo que há de mal do Belo. O que sobra? A sensibilidade do Bem. Do Bem podendo ser entendido tanto no seu sentido de valor ético, através da realização de ações belas esvaziadas de qualquer tipo de mal, como no Bem em seu sentido técnico e econômico, definido como a produção de obras artificiais belas que diminuem o sofrimento e o mal do mundo. Seja em sua dimensão ética ou técnico-econômica, o Bem pode ser entendido como essa síntese final, do Belo esvaziado de Mal.
Concluindo, desvela-se, em um primeiro momento ao homem, abaixo do substrato misterioso da Beleza, a Perversidade, manifestando-se a consciência do Mal do mundo e a ilusão do Belo, tal como descrita por Baudelaire. Essa consciência do mal somente pode ser superada uma vez reconhecida que, abaixo do confronto paradoxal entre o falso brilho da Beleza e as trevas do Mal, reside um terceiro substrato ainda mais essencial e oculto, que pressupõe simultaneamente as duas, mas agora com um novo significado: a luz verdadeira do Bem, enquanto o Belo sem Mal. Trata-se portanto do Belo que diz não ao Mal, esvaziado de qualquer conteúdo de destruição, puramente criação e fonte de expansão vital humana. Somente assim permite-se a instauração da paz em uma sociedade e o seu desenvolvimento moral, social e espiritual.
Referências
Charles Baudelaire: el encuentro con el mal. Athene Blog https://redfilosofia.es/atheneblog/2015/04/09/charles-baudelaire-el-encuentro-con-el-mal/ <Acesso em 7 de Janeiro de 2024>
Cherchez la femme fatale: film noir fashion of the 1940’s. Hemline Quarterly. https://hemlinequarterly.wordpress.com/2012/07/18/cherchez-la-femme-fatale-film-noir-fashion-of-the-1940s/ <Acesso em 7 de Janeiro de 2024>
Hino à Beleza. Wikisource https://pt.wikisource.org/wiki/Flores_do_Mal/Hino_%C3%A0_Beleza <Acesso em 7 de Janeiro de 2024>
Mohini, Wikipedia. https://en.wikipedia.org/wiki/Mohini <Acesso em 7 de Janeiro de 2024>
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