
Werner Jaeger, em “A Paideia: a formação do homem grego”, destaca a singularidade da cultura grega em relação às demais de seu tempo, em função da sua educação pedagógica. Essa pedagogia enfatiza a autossuperação humana e valores éticos universais, nunca sendo um conjunto rígido de tradições e ritos, mas adaptável às mudanças sociais e ressignificando-se ao longo do tempo. Este modelo pedagógico transcendeu a antiga polis grega, influenciando os dias atuais. A Paideia persiste como uma fonte cultural revitalizadora, transmitindo ideais éticos, estéticos e políticos centrados na ideia de alma humana infinita, moldando e enriquecendo culturas ao longo da história.
Tiago Barreira
A educação é o veículo fundamental pelo qual uma comunidade humana transmite seus valores e traços culturais, morais e espirituais. Nas palavras de Werner Jaeger, em sua clássica obra Paideia, a formação do homem grego, toda educação define e molda a vida, o destino exterior e a estruturação interna de uma sociedade, conferindo a esta continuidade no tempo. A impossibilidade de uma ação educativa implica na dissolução e decadência interna desta.
Se por um lado, a ausência de educação implica na desestabilização e dissolução de uma cultura, uma educação excessivamente centrada na estabilidade, marcada por uma transmissão rígida e mecânica de regras e normas, também não garante a continuidade de uma cultura saudável. É o caso do ensino controlado pelos mandarins da China Imperial, que concedia um espaço muito limitado para valores inovadores.
Uma cultura encerrada tão somente na sua autorreprodução rígida de tradições passadas é também uma civilização em crise, desconectada daquilo que é a sua finalidade central, que é a expansão vital, moral e intelectual do ser humano. A uma cultura encontrada em tal estado de senil rigidez não está reservada outra coisa em seu futuro senão o de ser uma peça antropológica de museu. Peças fossilizadas que, muito embora interessantes historicamente e de valor artístico, nada mais fazem hoje do que saciar sentimentos românticos e a curiosidade momentânea de turistas incautos.
Existem, portanto, culturas estáticas que se tornam datadas e obsoletas, por não conseguirem dar conta de anseios espirituais humanos, e outras que avançam, superam os desafios de suas próprias limitações e se enriquecem no tempo, ao se abrirem a estes anseios. Em outras palavras, são culturas dinâmicas com uma educação voltada à satisfação daquilo que há de mais plenamente humano, em sua universalidade. Ou seja, são culturas pautadas por uma educação que não olha para trás, mas para cima. Esta diferenciação qualitativa de tipos culturais-pedagógicos é uma importante distinção a ser feita à tese do relativismo cultural da antropologia.
Neste tipo de educação orientada segundo o universal, o acima e o transcendente, se encontra a educação grega antiga, a Paideia. A educação grega, ao invés de ser uma fórmula fixa de doutrinária de regras e letras mortas, foi justamente esta fonte de onde brotou o todo o impulso criador da cultura grega, repercutindo na modernidade até os dias atuais. A cultura grega antiga de 2500 anos, mais do que uma peça de museu interessante, continua a atrair o mundo moderno enquanto fonte de revitalização cultural, em seus ideais políticos, filosóficos e estéticos. De modo surpreendente, continua a ser uma cultura viva, ao qual o homem contemporâneo se volta recorrentemente em busca de respostas a perguntas e desafios de sua época.
Segundo Jaeger, o projeto pedagógico grego da Paideia constituiu o principal contribuidor para a formação da cultura grega, lançando as bases seminais da cultura ocidental. Neste sentido, a Grécia Antiga representou, em relação a povos vizinhos do Oriente, um “progresso” em tudo que se refere à vida social e comunitária humana. Para Jaeger, por mais elevadas que tenham sido as realizações artísticas, religiosas e políticas dos povos anteriores, mesmo considerando os avanços sem precedentes dos estudos etnográficos antropológicos desde o século XIX, a cultura alcançada em sua plena consciência somente começa com os gregos. (Jaeger, 2001)
Esta peculiaridade helênica em relação a povos vizinhos é denominada pela literatura acadêmica de “milagre grego”. Segundo Jaeger, enquanto as culturas de civilizações orientais antigas eram caracterizadas por um imaginário mitológico marcado por divindades incognoscíveis e acima de toda medida natural, os gregos antropomorfizaram e naturalizaram a esfera mística e divina, tornando este mundo misterioso e oculto dos deuses acessível e apreensível ao intelecto humano.
Como consequência, pela primeira vez na história humana, seria concedido um maior espaço para a autonomia moral e espiritual humana. Castigos divinos seriam não mais explicados como atos cósmicos irracionais e arbitrários, a serem aplacadas pela submissão ritualística a uma casta sacerdotal e de soberanos divinos, mas como consequências de violações morais a princípios racionais e objetivos de uma Justiça divina universal (a diké). Este grau maior de segurança e previsibilidade cósmica abriria espaço para uma maior confiança do homem em seu destino, lugar no universo e capacidades, permitindo o desenvolvimento das ações humanas em diversos campos da cultura.
A importância dos gregos deriva, portanto, desta nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade (Jaeger, 2001). Esta naturalização do mundo cósmico abriu caminho para o desenvolvimento da noção de Ordem (o Logos) como um discurso divino apreensível ao intelecto humano (o nous). Estariam assim lançadas as bases das concepções filosóficas de Beleza, Justiça, Bem e Verdade, e o desenvolvimento das ciências ocidentais.
Não somente a filosofia e a ciência grega, como também a poesia e artes gregas (arquitetura, música, teatro, escultura) são marcadas precisamente por este ideal de ordenação racional da realidade natural e humana. É a arquitetura geométrica grega com seus padrões de colunas em linhas retas remetendo a proporções áureas matemáticas. O ideal de perfeição divina se estende além do campo estético e artístico, abrangendo o campo moral, através do culto à beleza do corpo e a busca de excelência e força das capacidades físicas e intelectuais humanas. Os gregos se notabilizaram na valorização do mérito em competições esportivas.
A busca de excelência moral e estética nas artes e na vida, o reconhecimento e dignificação social das capacidades e competências humanas, a constante busca de autossuperação humana rumo a um ideal de perfeição divina, são desdobramentos de uma cultura em sua raiz simultaneamente idealista e antropocêntrica, orientada segundo o projeto educacional da Paideia. Uma noção que abriria caminho para a recepção posterior do cristianismo e o seu ideal de infinitude da alma humana, através do Homem-Deus.
A formação histórica da Paideia
Segundo Jaeger, a Paideia, enquanto projeto de formação moral pedagógica, surgiria a partir de um lento processo de maturação histórica da sociedade grega, de uma sociedade primitiva valorizadora das virtudes éticas ligadas à figura do guerreiro aristocrata (marciais) e do camponês (mecânicas) a uma sociedade urbana comercial centrada no cidadão da polis.
Os primeiros esboços da educação pedagógica se encontrariam fundadas na poesia homérica, durante o período heroico grego. Esta oferecia através dos versos modelos ideais éticos de imitação e conduta à vida social, replicada e retransmitida entre gerações através da tradição oral, e posteriormente escrita. A Ilíada e Odisseia ofereciam modelos exemplares de conduta humana denominados de areté (virtude). Deve-se ressaltar que a areté neste período de Grécia pré-clássica, centrada no cultivo do corpo e da força guerreira, era muito diferente da noção de virtude desenvolvida posteriormente pela filosofia socrática, de busca de autoconhecimento do espírito.
Na areté se encontravam ideais de nobreza associados à virilidade. Significa uma potência, uma energia e uma vontade de poder, ou a “Moral dos Senhores” tal como descrita por Nietzsche. Os personagens da Ilíada não estavam preocupados com questões de justiça moral ou política, ou com reflexões éticas, como a busca da felicidade. A virtude idealizada na época homérica, dos heróis de Aquiles, Agamennon, e principalmente em Ilíada, eram principalmente virtudes guerreiras, de guerra, fonte de glória e fama. Pessoas com grande êxito e habilidades de luta eram as mais admiradas e respeitadas dentro dessa sociedade homérica guerreira.
O ideal pedagógico de areté gradualmente foi se refinando mais, no desenrolar da história grega. Se antes a areté incorporava somente a virtude de coragem, novas preocupações apareciam à medida em que surgiam as cidades-estados gregas da polis. Para o novo contexto social urbano, não bastaria ser somente um guerreiro corajoso, devendo-se formar cidadãos obedientes à lei e baseados na virtude de temperança e autocontrole. Este novo cidadão, educado e obediente à lei, seria posto em igualdade perante uma régua comum de direitos, obrigações e deveres comunitários junto aos demais cidadãos.
É precisamente a partir desta época de formação das cidades-estados que começará a surgir os primeiros ideais de isonomia, de igualdade entre homens perante a lei. Pouco importaria se alguém fosse camponês ou aristocrata, pois distinções de dignidade e reconhecimento de potências marciais nada valeriam segundo a lei da polis, fonte única e suprema de força e coerção social. Foi somente nesse contexto que a temperança, autocontrole e respeito aos direitos do outro poderiam começar a ser apreciadas e valorizadas pedagogicamente como ideal social de dignidade.
Paralelamente ao avanço da temperança como fonte de dignidade social, com o fortalecimento do estado grego, surgiria também a valorização pedagógica de mais duas virtudes: a prudência e justiça. Estas virtudes seriam as mais adequadas para se alcançar uma felicidade comum entre os cidadãos. Para se ter uma pólis perfeita e justa, é preciso que haja o discernimento prudente de legisladores sábios, e a capacidade de que juízes retribuam justamente a cada um o que é devido.
Os valores guerreiros da areté também seriam readaptados aos novos tempos da polis. Estes valores, originalmente aristocráticos individualistas, foram sendo incorporados e homogeneizados às demais classes sociais com o desenvolvimento dos ideais de isonomia, tornando-se um ideal cívico de coragem cidadã patriótica. Este é o caso do ideal pedagógico de cidadania guerreira da sociedade espartana. De uma sociedade igualitária de cidadãos submetidos ao dever de se sacrificar por sua pátria como o mais elevado ideal de realização pessoal. Um ideal de formação cívica recorrentemente louvado por poetas e filósofos, como Platão.
A filosofia grega compilaria posteriormente estes 4 modelos exemplares de conduta presentes na formação pedagógica grega da polis. O projeto educacional da República de Platão veria uma pólis bem organizada como governada por homens virtuosos formados segundo 3 virtudes cardeais: a coragem cívica, a sabedoria, a temperança. Virtudes estas que seriam coroadas por uma quarta: a justiça, que nada mais seria do que a ordenação harmônica das três potências da alma humanas associadas às três virtudes cardeais: o desejo (temperança), vontade (coragem) e intelecto (prudência).
Nota-se daí como dado importante que, na República de Platão, justiça na polis e justiça no indivíduo são termos intercambiáveis. Um indivíduo somente pode ser plenamente justo e virtuoso dentro de uma pólis justa e virtuosa. Para os gregos antigos não existia separação entre virtudes comunitárias e individuais.
Jaeger reforçaria esta ideia da sociedade e cultura grega como de natureza intrinsecamente comunitária, à qual as noções de virtude eram avaliadas em termos de deveres comunitários. Neste sentido, as virtudes ensinadas pela Paideia grega não poderiam se dissociar do contexto do ensino da polis, que é o contexto de cidadania. O objetivo da formação grega da Paideia, segundo Jaeger, nunca foi precisamente o de alcançar fins pessoais, mas de formar cidadãos sábios úteis à comunidade. E a felicidade desse cidadão estava intimamente atrelada à felicidade da polis como um todo.
O objetivo da Paideia era o exercício da cidadania grega e garantir a felicidade comum a todos. Só muito posteriormente, com a crise da democracia grega, o colapso das cidades-estados e o advento do período helenístico, que o ideal pedagógico da Paideia foi novamente ressignificado, tornando-se mais individualista e voltado para a felicidade do indivíduo.
Em resumo, o argumento central de Werner Jaeger consiste na ideia de que a cultura grega foi marcada por sua singularidade em relação às demais, em função da natureza de sua educação pedagógica. Uma pedagogia centrada na autossuperação das potências humanas e na disseminação de valores éticos e modelos universais de conduta humana exemplares, nunca sendo um conjunto estático, fixo e rígido de tradições e ritos como nas demais culturas. Valores e modelos de virtude estes que tampouco se mantiveram estáticos no tempo, mas dotados de impressionante flexibilidade dinâmica, adaptando-se e ressignificando-se no decorrer das transformações da sociedade grega. De uma educação aristocrática heroica pautada na glória e fama, se tornaria uma educação cívica de cidadãos pautada na aquisição de sabedoria e justiça individual e comunitária. Este modelo pedagógico extrapolaria o mundo antigo da pólis grega, atravessando até os dias atuais. Sempre mantendo-se uma cultura viva que atravessa gerações, e fonte de revitalização de culturas através de seus ideais éticos, estéticos e políticos centrados na infinitude da alma humana.
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Referências
Jaeger, W. (2001). A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes.