
O artigo explora a noção de “epoché” (suspensão do juízo) em Sexto Empírico, um dos principais filósofos céticos. A “epoché” é a prática de suspender o julgamento sobre qualquer afirmação, buscando a ataraxia, ou tranquilidade mental. Sexto Empírico desenvolveu dez tropos, ou lugares argumentativos, para ilustrar a aplicação da “epoché”. Esses tropos exploram as diferenças entre animais, humanos, sentidos, circunstâncias, posições, combinações, quantidades, relatividade, frequência e costumes. Ao mostrar como diferentes perspectivas e experiências levam a juízos contraditórios sobre um mesmo objeto, o cético conclui que não é possível afirmar com certeza a natureza de qualquer coisa. A “epoché” cética difere da suspensão do juízo fenomenológica, embora ambas busquem suspender o julgamento. Para Sexto Empírico, a suspensão é um meio para alcançar a tranquilidade, enquanto para a fenomenologia é um passo inicial para a descrição da essência das coisas.
Pedro Araújo
A noção de “epoché” surge com Sexto Empírico (c. 160 d. C. – c. 210 d. C.) para que se alcançasse a ἀταραξία, certo estado de tranquilidade do ânimo.1 Deste modo resume o filósofo cético (Pyr. Hyp., p. 12; 2000, p. 6) o fundamento de seu projeto especulativo de matiz frisadamente moral: “O princípio constitutivo sine qua non do ceticismo consiste em opor a toda proposição dada uma outra que se lhe opõe, de modo que, como consequência, acreditamos pôr termo a uma qualquer crença.” Pois bem, é justamente essa ausência de crenças que se deve alcançar com as proposições contraditórias postas uma ao lado da outra que distingue o ceticismo antigo como técnica filosófica. Não se trata, obviamente, de um mero significado proposicional, a que não se conjunge o seu respectivo ato de assentimento. Ao contrário, parte-se antes das crenças comuns dos homens, às quais, na sua forma proposicional, devem antepor-se as proposições respectivas contraditórias. 2 Numa expressão de certa forma vulgar, a todo “sim”, isto é, a uma proposição afirmada, deve caber-lhe um “não”, e nesta ação de pensamento baseia-se a consequente tranquilidade de ânimo. Pense-se, por exemplo, a este título, contemporaneamente, na asserção: “a luz é partícula”.
Neste sentido, Sexto Empírico elabora os Dez Tropos, que são certas estruturas argumentativas pelas quais o seu princípio cético pode ilustrar-se. Tendo em vista a utilidade da exposição de tais lugares (τόποι) argumentativos para uma primeira aproximação à noção de suspensão de juízo fenomenológica, cumpre estudá-los um a um, ainda que tão somente em geral. Tomar-se-á o esquema formal desenvolvido por Annas & Barnes (1985, p. 25) a fins de simplicidade do tratamento do ponto referido. De acordo com ambos os autores, a notação dos argumentos recebe
a forma seguinte:
(1) x aparece como F em S;
(2) x aparece como F* em S; (3) não podemos preferir S a S, ou vice-versa (equipolência);
(4) não podemos afirmar ou negar que x seja realmente F ou F*
(suspensão do juízo).
Pois bem, os lugares argumentativos que se encaixarão nessa notação, nominalmente, são estes: (1) Diferenças entre os animais; (2) diferenças entre os seres humanos; (3) diferentes constituições dos órgãos dos sentidos; (4) circunstâncias que afetam o sujeito; (5) posições, intervalos e lugares (6)combinações; (7) quantidades; (8) relatividade; (9) frequência; e, por fim, (10) costumes e persuasões.
Em relação ao primeiro tópos, o ponto de partida é a pressuposição de que a espécies diversas de animais uma única e mesma coisa parece ser diferente do que é, de modo que se x parece ser F à espécie animal M, esse mesmíssimo x parecerá ser F* à espécie animal N. Desta feita, há certa equipolência no estado de coisas objetivo, implicando, portanto, a suspensão do juízo. Isto significa dizer que não é lícita a crença objetiva a respeito das propriedades F e F, dado que ambas reciprocamente se negam. Ilustrativamente, sejam dadas uma salamandra, o animal mitológico que se gera e vive no fogo, e uma mosca. Ao ente ficcional, o fogo é razão de vida, ao passo que para certa mosca é razão de morte. Porém, que uma qualquer coisa seja, a um só tempo, razão de vida e razão de morte, torna a realização do juízo indecidível, por onde se alcança a ataraxia cética. Que isso tem que ver com a suspensão do juízo fenomenológica? Pelo exemplo utilizado, que o fogo seja ou razão de vida ou razão de morte é precisamente deixado em suspenso, a fim de que possa mostrar-se a coisa em si mesma e desde si mesma. Contudo, frise-se certo fator fundamental de distinção entre ambas as suspensões: para Sexto Empírico, a não elicitação do juízo é certo meio para a posse da alma do estado de ausência de paixões; ao passo que, para a fenomenologia, a suspensão do juízo é apenas o passo inicial de arrancada para as descrições de essência a serem realizadas.
Em relação ao segundo lugar argumentativo, que parte da diferença entre os homens que confere a razão cética para que a uma qualquer afirmação seja oposta a ela outra em sentido contrário, tenha-se como exemplo que certa torre (x) é percebida por um homem (H), mais próximo a ela, apresentando uma portinhola de madeira (F), conquanto essa mesmíssima torre é percebida por outro homem (H), distante em relação ao primeiro de x por algumas centenas de metros, indistintamente no que se refere a ter ou não ter portas diminutas (F). Deste modo, constitui-se a equipolência em H e H, de onde o juízo em suspensão a respeito de F e F*.
Em relação ao tópos da diferença da constituição dos órgãos dos sentidos, a sua exposição por Sexto Empírico (Pyr. Hyp., p. 91 e segs., p. 25 e segs.) parte das qualidades sensíveis constatáveis numa maçã: “a maçã, por exemplo, parece lisa, odorosa, doce e amarela.” Ora, o filósofo cético faz notar que não é, de per se, evidente, se essas qualidades são todas as que realmente pertencem à maçã, ou se não são redutíveis a uma única qualidade, a qual, de seu turno, em razão dos característicos constitutivos dos órgãos sensíveis do homem, não é percebida em unidade, mas se multiplica e se diversiva em várias, ou ainda se na maçã mesma não existem qualidades ocultas outras que não se podem perceber. Contudo, o ponto principal de sua argumentação consiste em sublinhar que os sentidos acerca de seus sensíveis próprios apresentam certa repugnância recíproca, assim o perfume é, a um só tempo, agradável ao olfato e desagradável ao palato. Desta feita, forma-se a notação seguinte:
(1) x parece ser F ao sentido S;
(2) x parece ser F* ao sentido S*;
(3) não se pode preferir S a S, ou vice-versa;
(4) deve-se suspender o juízo a respeito de se x é F ou F. 3
Observe-se que a intenção de Sexto Empírico é criar um regime de argumentos no qual a uma crença dada expressa numa proposição, deve-se opor a ela outra proposição qualquer, segundo a qual, a validez da primeira se desfaz, mostrando-se tão somente como certa asserção infundamentável, de acordo com a técnica cética. À crença de senso comum “o perfume é agradável ao olfato” é posposta outra equivalente “o perfume é desagradável ao palato”, de modo que o juízo se torne indecidível.
Em relação ao quarto lugar argumentativo, nominalmente acerca das circunstâncias que afetam o sujeito, a sua estrutura pende das diferenças de caracteres que condicionam a elicitação do julgamento, tal qual, por exemplo, Aristóteles (Rhet., 1388b33 e segs., II, p. 2213 e segs.) tinha descrito, em sua Retórica, o fulcro distinto da personalidade dos indivíduos a quem o discurso oral cabia dirigir-se. De certo modo, a totalidade das circunstâncias em que certo indivíduo vive concretamente, segundo este locus em comento, condiciona a objetividade de seu juízo a respeito de um qualquer fato, de forma a constituir-se este padrão formal:
(1) x parece ser F a y, estando y em situação S;
(2) x parece ser F* a y, estando y em situação S;
(3) equipolência entre S e S;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*. 4
Enfim, em razão da disparidade constatável na situação S e S, sejam uma cultura filosófica menor e uma maior, respectivamente, certa obra (x) parece ser inteligível em F, de onde a ininteligibilidade (F) e a inteligibilidade (F*) se equivalham acerca da mesma obra.
Em relação ao quinto tópos argumentativo, referente às posições, lugares e intervalos (do objeto), a sua apresentação realiza-se, por Sexto Empírico (Pyr. Hyp., p. 118 e segs., p. 31 e segs.), mediante exemplos simples tais quais a diferença de tamanho dos objetos vistos a olho nu sobre um promontório se comparados a quando vistos a poucos metros de distância, de onde a proposição inicial “a vila é pequena” colide objetivamente com o significado da proposição seguinte “a vila é grande”, de modo que há de realizar-se uma epoché em relação às noções de “pequeno” e “grande” atribuíveis à coisa mesma.
Em relação ao sexto lugar argumentativo, que se refere à temática das combinações, segundo a qual nenhum objeto causa qualquer impressão sobre nós de modo independente, porque conjungido com outros, Sexto Empírico (Pyr. Hyp., p. 124 e segs., p. 32 e segs.) a fim de exemplificar este tópos constata que o corpo de um indivíduo imerso na água se percebe como leve, ao que passo que, no ar atmosférico, se sente como pesado, perfazendo-se esta notação formal:
(1) A combinação M = x + y + z + … parece ser F;
(2) A combinação M = x + y + z + … parece ser F1;
………………………………………
(3) A combinação M = x + y + z + … parece ser Fn. 5
Onde F, F1 … Fn está para o complexo perceptivo acerca do qual se deve suspender o juízo.
Em relação ao sétimo tópos argumentativo, o da quantidade, o filósofo cético (Pyr. Hyp., p.120 e segs., p. 34 e segs.) considera que, exemplificando-o, em razão de que consumir uma grande quantidade de vinho ou comida produz efeitos antagônicos à saúde, o que não ocorre com a possibilidade contrária, ao contrário, uma vez que os víveres são necessários à vida e o vinho “nos fortifica” (Pyr. Hyp., p. 131, ibid.), deve-se suspender o juízo acerca dos fatos que admitem variação de sua realidade em função de certa alteração, em termos de graus, na quantidade.
Em relação ao oitavo lugar argumentativo, já presente de há muito na tradição filosófica, vale dizer, o da relatividade, a sua fundamentação parte da consideração segundo a qual tudo é relativo, seja no que se refere ao lado subjetivo – o que anteriormente se viu no primeiro tópos acerca das diferenças entres os animais –, seja no que tange ao aspecto objetivo, por exemplo, quando duas coisas são, de per se, relativas, tais quais o lado esquerdo e o lado direito, o alto e o baixo, o dentro e o fora, e assim por diante. O filósofo cético (Pyr. Hyp., p. 135 e segs., p. 35 e segs.) apresenta o argumento seguinte: os correlativos diferem ou não das coisas em razão de qualquer diferença? Se não diferem, as coisas mesmas serão correlativas. Se diferem, sejam dadas uma coluna direta e uma esquerda que diferem em razão de qualquer realidade. Porém, uma vez que toda diferença é diferença de algo, e, portanto, também uma relação, apresentar-se-á a mesma realidade da qual se partiu, isto é, certa relação. De modo que se possibilite a construção do esquema formal a seguir:
(1) x aparece como F no contexto relacional R;
(2) x aparece como F* no contexto relacional R;
(3) equipolência entre R e R;
(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*. 6
Em que x estaria para uma única e mesma coluna em relação a uma segunda, cujo contexto relacional para com a primeira se diversificaria de acordo com as noções de “esquerda” e “direita”, uma vez que, o que fosse, inicialmente, considerado como coluna esquerda, a seguir, justo por ser tratar de realidades correlativas, passaria a considerar-se como coluna direita, a fim de que se encontrasse a equipolência cética.
Em relação ao nono lugar argumentativo referente à frequência, Sexto Empírico (Pyr. Hyp.,p. 141 e segs., p. 36 e segs.) parte da constatação segundo a qual, ao prazer sentido num primeiro contato com um objeto prazeroso, segue-lhe o enfado, de modo que, ao fim e ao cabo, a certa proposição deste feitio “o spaghetti é maravilhoso”, segue-lhe a contraditória “o spaghetti não é maravilhoso”, alcançando-se assim a tranquilidade de ânimo, caso a aplicação da técnica cética se universalize a todos os eventos semelhantes.
E, por fim, em relação ao décimo lugar argumentativo, que se extrai dos costumes e persuasões, o filósofo cético (Pyr. Hyp., p. 145 e segs., p. 37 e segs.) dá a definição das noções de “persuasão”, “leis”, “usos e costumes”, “crença em mitos” e “suposição dogmática”, que são as seguintes, respectivamente: a) a persuasão é certa escolhe de vida ou modo de agir seguido por um única pessoa ou muitas; b) as leis são o contrato escrito entre os cidadãos, as quais, se transgredidas, punem o infrator; c) os usos e os costumes são certa crença comum a que os cidadãos assentem, entretanto, pela sua transgressão, não há qualquer punição necessária; d) as crenças em mitos são o assentimento a entes ficcionais que não existem; e, finalmente, e) a suposição dogmática é o assentimento a entes cuja realidade apenas se atinge por indução ou provas.
Pois bem, Sexto Empírico (Pyr. Hyp., p. 152, p. 38) pontua que a epoché cética deve fundamentar-se na mútua oposição que cada um dos itens distinguidos no parágrafo anterior mantém entre si. Assim, por exemplo, facilmente se verificam leis de conteúdo contrário em países diversos. Nada obstante, o filósofo acrescenta a ponderação de acordo com a qual esses mesmos itens recém-referidos podem opor-se não apenas entre si, isto é, lei a lei, conquanto também a partir de uma diversidade específica, vale dizer, uma suposição dogmática a uma persuasão. Neste sentido, Sexto Empírico (Pyr. Hyp., p. 158, pp. 39-40) torna este tópos inteligível com o evento da persuasão que leva muitos atletas a almejarem a glória, ao passo que os chamados filósofos dogmáticos a desprezam por princípio.
Nesse sentido, a toda e qualquer proposição em que se significa um determinado estado de coisas objetivo a respeito de certa persuasão, de certas leis, de certos usos e costumes, de certa crença em mitos ou de certa suposição dogmática deve-se opor-lhe uma qualquer proposição contrária pela qual se alcança a suspensão do juízo, e nisto consiste a noção de “epoché” cética tal como desenvolvida por Sexto Empírico.
1 A propósito, ao modo de certa observação, de passagem, tal estado búdico a que almejava o ceticismo antigo é de todo diverso do imenso vigor que demonstrou ter Husserl ao longo de sua vida, o que se pode constatar já nos mais de cem volumes de suas obras completas, ainda não coligidas totalmente, já em diversas passagens dessas obras, como, em particular, na introdução composta às Investigações Lógicas, na qual o autor (HUA XIX/I, p.17, grifos nossos) se refere a uma “magna tarefa a realizar-se por toda uma geração de pesquisadores”.
2 A dialética transcendental kantiana (KrV, A321 e segs./B 378 e segs.) tem um esquema argumentativo
semelhante acerca das ideias de Deus, da alma e do mundo.
3 Cf. (ANNAS; BARNES, 1985, p. 68). Note-se, aliás, que esse terceiro lugar argumentativo elaborado por Sexto Empírico é bem símile ao paradoxo medieval do Asno de Buridan, segundo o qual findaria por morrer de fome certo asno ao qual fossem oferecidos, a igual distância, um fardo de palha e um recipiente de água, pois ambos são igualmente desejáveis, conquanto para o filósofo cético a ausência de razão para a escolha, no caso em questão, do perfume enquanto agradável ou enquanto desagradável, é a própria ataraxia que se segue à suspensão do juízo.4 Cf. (ANNAS; BARNES, 1985, p. 83).
5 Cf. (ANNAS; BARNES, 1985, p. 114-115).
6 Cf. (ANNAS; BARNES, 1985, p. 140).
REFERÊNCIAS
ANNAS, Julia; BARNES, Jonathan. The Modes of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
EMPIRICUS, Sextus. Outlines of Scepticism. Trad. e ed. de Julia Annas e Jonathan Barnes. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2000. (Cita-se como Pyr. Hyp.).
HUSSERL, Edmund. Logische Untersuchungen. Zweiter Band. Erster Teil: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis. In: Husserliana XIX/1. Dordrecht: Kluwer, 1984.
KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Ed. Wilhelm Weischedel. In: Werke. Band 2. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft Darmstadt, 1966. (Cita-se como: KrV, segundo a paginação da primeira edição (A) e da segunda
edição (B) originais).