
A verdadeira humanidade do homem e sua doçura viril entram no mundo com as palavras severas de um Deus exigente; o espiritual não surge como substância sensível, mas sim através da ausência; Deus é concreto não pela encarnação, mas pela Lei; e Sua grandeza não é o sopro de Seu sagrado mistério.
Emmanuel Levinas[i]
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer[ii]
Entre as publicações recentes dedicadas ao judaísmo no Ocidente, há muitos textos bonitos. Nós temos facilmente encontrado na Europa o talento para isso. Textos verdadeiros são escassos. O fato de os estudos hebraicos terem sido silenciados há um século nos distanciou das fontes. O conhecimento que ainda é produzido não se baseia em uma tradição intelectual. Ele habita autodidata, mesmo quando não é improvisado. E ser lido somente por aqueles que não têm o seu próprio nível de conhecimento corrompe um escritor! Sem censores ou censuras, os autores confundem essa ausência de oposição com liberdade e essa liberdade com a característica de um gênio. Não é de se admirar então que haja leitores sem crenças e veem no judaísmo, ao qual alguns milhões de pessoas impenitentes no mundo ainda permanecem apegadas, um amontoado de queixas mundanas sem interesse ou importância?
Acabamos de ler um texto lindo e verdadeiro, verdadeiro como só a ficção pode ser. Publicado em um jornal israelense por um autor anônimo, traduzido pelo Sr. Arnold Mandel, sob o título “Yossel, filho de Dovid Rakover de Tarnopol, fala com Deus” para o La Terre retrouvé[iii] – um jornal sionista de Paris -, parece ter sido lido com emoção, mas merece algo mais. Ele reflete uma dignidade intelectual, refletindo-a mais fielmente do que algumas leituras de intelectuais, como os conceitos tirados de Simone Weil, tão em voga em Paris no momento, como se sabe. Este texto, ao contrário, oferece uma ciência judaica, modestamente escondida, mas confiável, e traduz uma experiência profunda e autêntica da vida espiritual.
O texto é considerado um documento escrito durante as últimas horas da Resistência do Gueto de Varsóvia. O narrador teria testemunhado todos os horrores; ele teria perdido seus filhos pequenos em condições atrozes. Último sobrevivente de sua família por alguns momentos, ele nos deixa seus últimos pensamentos. Ficção literária, na certa; mas uma ficção onde cada uma de nossas vidas como sobreviventes é reconhecida com vertigem.
Nós não vamos contar tudo isso, mesmo que o mundo não tenha aprendido nada e esquecido tudo. Recusamo-nos a oferecer a Paixão das Paixões como espetáculo e a afastar desses crimes desumanos qualquer forma de vanglória como escritores ou cenógrafos. Eles ressoam e reverberam, inextinguíveis, por todo o tempo eterno. Escutamos somente o pensamento que se articula neles.
O que significa esse sofrimento dos inocentes? Não é testemunho de um mundo sem Deus, uma terra onde somente o homem mede o Bem e o Mal? A reação mais simples e mais comum seria concluir-se no ateísmo. Uma reação que é a mais saudável para todos aqueles a quem até então um Deus, um tanto primevo, distribuía prêmios, infligia sanções ou perdoava faltas e, em sua bondade, tratava os homens como filhos eternos. Mas de qual demônio obtuso, de qual mágico estranho povoaste seu céu, vocês que, hoje, o declaram deserto? E por que, sob um céu vazio, vocês ainda buscam um mundo sensato e bom?
A certeza de Deus, Yossel filho de Yossel o experimenta com nova força, sob um céu vazio. Porque se ele existe sozinho, é para sentir sobre seus ombros todas as responsabilidades de Deus. Há um estágio sem Deus no caminho que leva ao Deus único. O verdadeiro monoteísmo deve responder às exigências legítimas do ateísmo. Um Deus adulto se manifesta
justamente por causa do vazio do céu infantil. É o momento em que Deus se retira do mundo e esconde seu rosto (de acordo com Yossel ben Yossel). “Ele sacrificou homens aos seus instintos ferozes”, diz o texto com o qual estamos lidando. “[…] E como são esses instintos que dominam o mundo, é natural que aqueles que preservam o divino e o puro se tornem as primeiras vítimas dessa dominação”.
Deus que vela o seu rosto não é, nós assim pensamos, uma abstração teológica ou uma imagem de um poeta. Esta é a hora cujo indivíduo justo não encontra recursos externos, o momento em que nenhuma instituição o protege, quando o consolo da presença divina no sentimento religioso infantil também lhe é negado, quando o indivíduo só pode triunfar em sua consciência, isto é, necessariamente, no sofrimento. O sentido especificamente judaico de sofrimento, que não assume em nenhuma circunstância o valor de uma expiação mística pelos pecados do mundo. A posição das vítimas num mundo em desordem, ou seja, num mundo onde o bem não triunfa, é de sofrimento. Ela revela um Deus que, renunciando a todas as manifestações compassivas, apela à plena maturidade do homem, que é integralmente responsável.
Mas assim que esse Deus vela a sua face e abandona o justo à sua justiça sem triunfo — esse Deus distante — chega de dentro. Uma intimidade que coincide, para a consciência, com o orgulho de ser judeu, de pertencer concretamente, historicamente, muito simplesmente, ao povo judeu. “Ser judeu é algo que significa […] nadar eternamente contra a miserável e criminosa corrente humana […] Faz-me feliz pertencer ao povo mais infeliz entre todos os povos da terra, para o povo para quem a Torá representa o que há de mais elevado e mais belo nas leis e estamentos morais”. A intimidade do Deus viril é alcançada no contexto de extremo infortúnio. Dado que pertenço ao povo judeu sofredor, o Deus distante se torna meu Deus. “Agora sei que és verdadeiramente meu Deus, pois não saberias ser o Deus daqueles cujas ações representam a expressão mais horrível de uma ausência militante de Deus”. O sofrimento dos justos que obedecem a uma justiça sem triunfo é vivenciado concretamente como judaísmo. Israel – histórico e carnal – se torna novamente uma categoria religiosa.
É possível que Deus ao esconder o rosto seja reconhecido como presente e íntimo? Trata-se de uma construção metafísica, de um salto mortal paradoxal, no estilo de Kierkegaard? Nós pensamos que ali se manifesta, ao contrário, a fisionomia particular do judaísmo: a relação entre Deus e o homem não é uma comunhão sentimental no amor de um Deus encarnado, mas uma relação entre espíritos, através de um ensinamento, pela Torá. É precisamente uma palavra, não encarnada de Deus, que assegura um Deus vivo entre nós. A confiança em um Deus que não se manifesta por meio de nenhuma autoridade terrena só pode se basear na evidência interna e no valor de um ensinamento. Em homenagem ao judaísmo, isso não é nada cego. Daí derivamos esta frase de Yossel ben Yossel – o ápice de todo o monólogo e que ecoa todo o Talmud: “Eu O amo, mas amo Sua Torá ainda mais […] E mesmo que eu estivesse decepcionado e desiludido com Ele, não deixaria de observar os preceitos da Torá”. Blasfêmia? No mínimo, proteção contra a loucura do contato direto com o Sagrado, sem a mediação da razão. Mas, acima de tudo, uma confiança que não se apoia no triunfo de nenhuma instituição, evidência interna da moral contida na Torá. Caminho difícil, tanto em espírito como em verdade, e que não tem mais nada a prefigurar. Simone Weil, você nunca entendeu nada sobre a Torá! “Nosso Deus é o Deus da vingança”, diz Yossel ben Yossel, “e nossa Torá está cheia de ameaças de sentenças de morte para pequenas ofensas. E, no entanto, bastou que o Sinédrio, a corte suprema do nosso povo, pronunciasse um veredito capital apenas uma vez em 70 anos para que os juízes fossem considerados assassinos. Entretanto, o Deus das pessoas ordena amar toda criatura feita à sua semelhança e é em seu nome que nosso sangue é derramado por quase dois mil anos”.
A verdadeira humanidade do homem e sua doçura viril entram no mundo com as palavras severas de um Deus exigente; o espiritual não surge como substância sensível, mas sim através da ausência; Deus é concreto não pela encarnação, mas pela Lei; e Sua grandeza não é o sopro de Seu sagrado mistério. Sua grandeza não provoca medo nem tremor, mas nos enche dos pensamentos mais elevados. Se velar a face para exigir do homem –sobre humanamente – tudo, ter criado um homem capaz de responder, de encarar seu Deus como credor e nem sempre como devedor, que grandeza verdadeiramente divina! O credor, afinal, tem a fé por excelência, mas é também aquele que não se resigna às desculpas do devedor. Nosso monólogo começa e termina com essa rejeição da resignação. Capaz de confiar num Deus ausente, o homem é também o adulto que mede a sua própria fraqueza: a situação heroica em que se encontra confere valor ao mundo, ao mesmo tempo que o põe em perigo. Amadurecido por uma fé nascida da Torá, o homem censura a Deus por sua excessiva grandeza e suas excessivas exigências. Ele o amará apesar de Deus ter tentado desencorajar esse amor. Mas, exclama Yossel ben Yossel, “não force demais o arco”. A vida religiosa não pode culminar nessa situação heroica. É necessário que Deus deve revelar sua face, a justiça e o poder devem ser reunidos; instituições justas são necessárias neste mundo. Mas somente o homem que reconheceu o Deus oculto pode exigir essa revelação. Tal é a dialética vigorosa estabelece a igualdade entre Deus e o homem no seio mesmo de sua desproporção.
Nós, eis então, também tão distantes da comunhão calorosa e quase sensível com o Divino do orgulho desespera o homem ateu. Humanismo integral e austero, ligado a uma difícil adoração! E inversamente, a adoração coincidindo com a exaltação do homem! Um Deus pessoal, um Deus único, o qual não se revela como uma imagem em uma câmara escura! O texto que acabamos de comentar mostra como a ética e a ordem dos princípios estabelecem uma relação pessoal digna desse nome. Amar a Torá ainda mais do que a Deus é precisamente acessar um Deus pessoal contra o qual se pode rebelar, isto é, por quem se pode morrer.
Tradução do original em francês “Aimer la Thora Plus que Dieu” retirado do livro Difficile Liberté: essais sur le judaïsme. Paris: Albin Michel, 1976, p. 218-223.
[i] Filósofo francês de origem lituana. Professor da Sorbonne.
[ii] Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected].
[iii] A terra encontrada (N. do T.).
[i] Discurso preferido na emissão Écoute Israël, em 29 de abril de 1955.