Um espelho de dois vetores

Ela me escuta atentamente. Sabe que o campo é a algo tão importante para a segurança, porém, percebe que muita coisa não teremos tempo de compensar. Eis que um pássaro passa por nós dois. Eu aponto, mas ela não enxerga. “Viu, ele passou, mas a não apreensão dele pelos sentidos pode parecer uma ação isolada no mundo… a ponto de nossa mente pensar que aquele evento ou criatura possa não ser de verdade.”

Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico. Doutor em letras. Email: [email protected]

A manhã fria de outono trouxe um clarão amarelo mais vivo para um domingo suave com meus filhos e amigos. O almoço estava perto, naquele lugar que há dez anos não íamos mais… Desde que nossas famílias se separaram. Como não lembrar das crianças ali a correrem? Então, uma amiga minha de muitos anos veio a perguntar sobre o que está acontecendo com o mundo nesse momento. A pergunta era simples e por isso mesmo imprescindível, cujo motor deveria passar por uma conversa. A conversa é justamente o problema maior de toda a forma de expressão.

A comunicação humana é algo que cada vez eu mesmo me admiro. Acho que mesmo eu que trabalho com isso me admiro em como consigo me comunicar e o quanto isso é um gosto para mim. Minha interlocutora sentia um enorme prazer em escutar algo que eu tinha a dizer sobre o nosso mundo. Acho que por eu mesmo ser capaz de escutar também a minha voz e gostar do som dela. Isso era uma conquista… Mas a pergunta dela conversava de modo imprescindível com isso na minha vida.

“Eu observo o mundo, as conversas das pessoas. O mundo como nós conhecemos terminou. Não há mais o que fazer.”

“Mas e a violência? Como lidar com pessoas que não refletem adequadamente o que olham… ou escutam.”

E o que me trouxe a isso aqui? Esquecemos que sempre houve quem tentasse não se restringir a coisas exteriores a minha ideia sobre as coisas. Isso é uma reação muito primitiva… Talvez devido ao medo. As perseguições do passado e as violências se coadunam para andarem atreladas em um casamento satânico. A luz que advém não pode ser tão pura que não veja o que há de remanescente na maldade. Contudo, a maldade vista por dentro não pode reinar soberana. Deve haver um elemento de humildade capaz de transformar a maldade, conduzir a mesma energia para um ponto absolutamente contrário ao mal. O monstro pode servir ao bem, como o Golem de Praga se torna a esperança maior de toda a fé judaica. A capacidade do barro formar um homúnculo, cujo especismo é dar forma a energia para um propósito.

O que as pessoas esquecem por questões de má formação é o papel da educação em suas vidas para moldar o propósito do barro. Em um trabalho da escola com meu filho os pais só cumprem o papel de se repetirem a atitude de que a educação seja uma coisa… Uma coisa que cada ano que passa perdem mais leitores, base da educação humana. Sete milhões em quatro anos… E o fim da sociedade civil em frente a tela de um celular.

Lembro muito bem que Roma caiu pela corrupção de todos os cidadãos com sua sociedade. E quando Odoacro prendeu Rômulo Augusto em 476 d.C. a Igreja Católica já estava pronta para indicar os novos rumos da incipiente Idade Média. E se não fossem o estudo desses missionários e sua propagação da fé não haveria mais acúmulo de conhecimento de forma organizada. E como a Europa perdeu todos os padrões nos últimos anos temos agora a sensação de que o retrocesso é inegável e que os povos do leste chegaram ao ápice da próxima forma de educação civilizatória. O leste sopra desde muito antes da Europa estar organizada. A culpa do agente exterior é uma forma de proteger a fragilidade da consciência diante a um imbróglio de insatisfações e atrapalhações. Corruptores de mentes se encontram a políticos de discursos hipócritas… Tão elevados níveis de vida em suas sociedades, entendimento amplo e superior gosto estético, seriam capazes de superar o trabalho de milhares e milhares de anos de um conjunto de civilizações que privilegiaram o especismo ao invés do entretenimento?

“Roma caiu, mas já havia lastro civilizatório para dar continuidade aqueles conhecimentos.”

Nossa caminhada no bosque das folhas de plátanos me permite enxergar que minha ilustre interlocutora anseia por uma palavra ainda não dita por mim.

“Olhai que esquecemos o quanto a vida é um espelho de dois vetores… O que eu vejo em você está em paralelo com o ser que você é independente do meu ver. As duas percepções existem ao mesmo tempo, e formam bases de um campo de indeterminação. A única forma para que esse campo se aproxime da realidade é levar em consideração a existência de elementos cada vez mais tensos… sobre o que eu e você devemos ser, apesar de todas as incongruências da existência… E particularmente em uma conversa simples como essa a consciência é ainda a melhor segurança para a dignidade do eu e do tu envolvidos.

Ela me escuta atentamente. Sabe que o campo é a algo tão importante para a segurança, porém, percebe que muita coisa não teremos tempo de compensar. Eis que um pássaro passa por nós dois. Eu aponto, mas ela não enxerga. “Viu, ele passou, mas a não apreensão dele pelos sentidos pode parecer uma ação isolada no mundo… a ponto de nossa mente pensar que aquele evento ou criatura possa não ser de verdade.”

O suspiro da manhã terminara ao som de nossos estômagos aquecidos ao aroma de comida vinda daquela casa idílica a nossa frente. As crianças corriam por todos os lados, os pássaros cantavam em rútilo encontro com a suavidade solar. Eis a tarde e a necessidade de cessar os assuntos do intelecto. Como sempre, as coisas devem ter seu próprio tempo para agirem congruentes a si mesmas. O tempo do encontro qual é mesmo? Eu estou lá a te esperar entrar na velha casa de muitos cômodos!

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