
Uma tentativa de descrever um evento divino como uma experiência transcendente ou psíquica não deve ser chamada de “mito”; uma declaração teológica, qualquer que seja sua simplicidade e grandeza evangélicas, ou um relato de visões extáticas, por mais profundamente comoventes que sejam, está fora do âmbito do propriamente mítico.
Martin Buber
Filósofo e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected].
I
Para esclarecer nossa própria compreensão do conceito de “mito”, não podemos fazer nada melhor do que começar com a interpretação de Platão deste termo: uma narrativa de algum evento divino descrito como realidade corpórea. Consequentemente, uma tentativa de descrever um evento divino como uma experiência transcendente ou psíquica não deve ser chamada de “mito”; uma declaração teológica, qualquer que seja sua simplicidade e grandeza evangélicas, ou um relato de visões extáticas, por mais profundamente comoventes que sejam, está fora do âmbito do propriamente mítico.
Este conteúdo original da tradição linguística é tão profunda e duradouramente justificado, sendo fácil ver porque a visão acerca da capacidade de criar mitos teve de evoluir, pois é um traço característico apenas daqueles povos que percebiam o Divino como uma substância corpórea e que, portanto, apreenderam as ações e paixões do Divino como correlações de eventos puramente físicos. Um foi ainda mais longe, justapondo povos politeístas como criadores de mitos e povos monoteístas como desprovidos de mitos. Os judeus eram contados entre estes últimos, o povo sem mito, e como tal eram glorificados ou desprezados. Eles eram glorificados quando aquele que proferiu o julgamento via o mito como um estágio inferior e preliminar da religião, e desprezados quando se via no mito o ápice da humanidade, que se elevava acima de toda religião como uma metafísica inerente e eterna da alma humana.
Tais tentativas — geralmente eficazes — de avaliar, em vez de compreender, o caráter dos povos, são sempre tolas e inúteis, especialmente quando se baseiam, como aqui, na ignorância ou distorção da realidade histórica. Verdadeiramente, ignorância e distorção são as principais bases do tratamento sociopsicológico moderno do judaísmo. Por exemplo: alguém detecta uma característica racionalista ou utilitária em certas declarações ou costumes do judaísmo oficial, ao que afirma ter provado o racionalismo ou o utilitarismo do judaísmo; ele não suspeita, nem deseja suspeitar, que estas sejam apenas pequenas, embora consequentes, falhas no grande, porém, humilde fluxo de ardente e dedicada religiosidade popular judaica, que transcende a mera conveniência. Por outro lado, os apologistas judeus — cujo zelo miserável se dedica a demonstrar que não há nada de especial no judaísmo, que é simplesmente puro humanismo — fazem o mesmo, à sua maneira, pois eles próprios são propensos à corrupção do racionalismo e do utilitarismo.
Consequentemente, e por muito tempo, ambos os lados negaram a existência do mito no judaísmo. Isso não foi nada difícil. A verdadeira natureza da literatura pós-bíblica permaneceu por muito tempo desconhecida: a Agadá era considerada um jogo de imaginação ou uma composição fictícia de parábolas superficiais, o Midrash como uma coleção de comentários minuciosos e pouco criativos, a Cabala como um jogo de números absurdos e grotescos; e o hassidismo era mal conhecido pelo nome, ou era desdenhosamente descartado como um devaneio.
Bem, pode muito bem ter parecido, mesmo para um estudioso genuíno, que o mito era estranho à Bíblia. Pois a Bíblia recebeu a forma em que chegou até nós por um grupo de homens os quais, imbuídos do espírito do sacerdócio oficial judaico tardio, consideravam o mito, a fonte nutridora de toda a religiosidade genuína, como o arqui-inimigo da religião como concebiam e queriam assim; portanto, excluíam da riqueza dos escritos transmitidos tudo o que, até onde sabiam, era mítico. Felizmente, seu conhecimento não era perfeito, e muito daquele caráter original com o qual não estavam mais familiarizados lhes escapou.
Assim, veios dispersos do precioso minério podem ser encontrados em todos os livros da Bíblia. Quando esses veios foram descobertos por novas pesquisas, a existência do mito judaico não pôde mais ser questionada; agora, porém, contestava-se sua originalidade. Sempre que um motivo mítico semelhante era encontrado na literatura de algum outro povo da Ásia Menor, esse motivo era designado como original e o motivo judaico era chamado de imitação pobre; e se nenhum fosse encontrado, presumia-se simplesmente que o original havia sido perdido. Não é necessário aprofundar esses detalhes aqui (que se originaram no desejo profundamente enraizado, porém, desesperado, do ocidental atual de desjudaizar seu cristianismo, ao qual ele não pode renunciar); muito mais importante do que refutá-los um por um é perceber que todo o conceito de história que os tornou possíveis em primeiro lugar é uma falácia monstruosa. Tentar julgar um patrimônio tão imenso como a herança de mitos de um povo a partir do ponto de vista lamentavelmente efêmero da “originalidade” é uma tarefa pervertida e presunçosa. Quando somos confrontados com o mundo da originalidade, não é a originalidade que importa, mas a realidade; e as criações da mente não devem ser dissecadas por nós a fim de analisarmos os resultados da nossa análise, isto é, se essas criações aparecem aqui pela primeira vez. Este “pela primeira vez” só pode ser a preocupação do intelecto atrofiado de uma toupeira, capaz de discernir a história sem fim da mente com suas criações eternamente novas esculpidas na mesma matéria eternamente. As criações da mente devem ser percebidas, experimentadas e reverenciadas como uma entidade moldada, uma estrutura coesa, uma realidade.
E qualquer mito judaico que consigamos reconstruir, apesar de todos os ataques judaicos e antijudaicos, é uma realidade. Ele pode ter todos os tipos de “motivos” em comum com os mitos de outros povos; e nunca será possível realmente determinar quais deles provêm da migração de um povo para outro — uma experiência que, com seu dar e receber, é, afinal, vivenciada por todos os povos, os chamados produtivos bem como os chamados receptivos — e quais provêm de características inatas compartilhadas, então como agora, pelos judeus e esses outros povos: formas comuns de experiência e de expressão dessa experiência; e, além disso, um solo e um destino comum, isto é, a substância desta experiência. Isso, eu afirmo, provavelmente nunca será totalmente apurado. Mas para nós, os descendentes desses judeus, isso não é essencial. O essencial é a pureza e a grandeza de uma humanidade criativa que lança todos esses fatores na fornalha de fundição — como Cellini[1] fez com seus utensílios domésticos — para criar a partir deles a forma imortal.
Simultaneamente com a Bíblia, embora não no mesmo grau, a literatura judaica tardia tornou-se objeto da nova pesquisa. E embora, como a Bíblia, essa literatura seja obviamente influenciada e impregnada em suas declarações por elementos hostis aos mitos, pelo rigorismo da lei e pela dialética rabínica, não se pode deixar de descobrir uma riqueza de material mítico. O que havia sido visto como um comentário arbitrário sobre passagens bíblicas provou ser uma modelagem e remodelação da mais antiga herança. O material lendário antigo que os compiladores do cânone tentaram suprimir floresceu em profusão. Assim como os racistas antijudaicos não conseguiam mais manter a ficção de que não havia mito judaico, depois que se tornou um fato bem conhecido que a Bíblia continha elementos míticos, então os apologetas judeus racionalistas não podiam mais sustentar a mesma ficção depois que se tornou um fato bem conhecido que a literatura pós-bíblica continha elementos míticos. Os apologetas, portanto, usaram uma nova abordagem: agora distinguiam entre um judaísmo mitológico negativo e um judaísmo monoteísta positivo; rejeitavam o primeiro como um elemento retardador e obscurecedor e glorificavam o último como a verdadeira doutrina. Eles sancionaram a luta do rabino contra o conceito de mito como uma purificação progressiva de um complexo ideológico significativo e, mais ou menos, se juntaram a essa luta.
Um renomado estudioso judeu, David Neumark[2], embora visando objetivos mais amplos do que a apologética, formulou esta visão na declaração: “A história do desenvolvimento da religião judaica é, na verdade, a história das batalhas de libertação travadas contra suas próprias mitologias e as antigas, contra uma mitologia consagrada pelo tempo, bem como uma recém constituída”. Esta declaração contém uma verdade, mas uma verdade ofuscada pela maneira partidária com que é expressa. Vamos esclarecê-la dando-lhe uma formulação mais justa: a história do desenvolvimento da religião judaica é, na verdade, a história das lutas entre a estrutura natural de uma religião popular mítico-monoteísta e a estrutura intelectual de uma religião rabínica racional-monoteísta. Eu disse: “uma religião popular mítico-monoteísta”; pois não é de todo verdade que monoteísmo e mito sejam mutuamente exclusivos e que um povo com inclinação monoteísta deva, portanto, ser desprovido de capacidade de fazer mitos. Ao contrário, todo monoteísmo vivo está preenchido com o elemento mítico e permanece vivo apenas enquanto estiver preenchido com ele. Certamente, o rabino, em seu zelo cego por construir uma cerca ao redor do judaísmo, esforçou-se para restaurar uma fé em Deus que fosse “purificada” do mito, mas o resultado desse esforço foi um homúnculo miserável. E esse homúnculo era o eterno exilarca: ele dominou as gerações da galut (exílio); sob sua tirania, a força viva da consciência divina judaica, o mito, teve que se trancar na torre da Cabala, ou se esconder atrás da roca feminina, ou fugir dos muros do gueto para o mundo. Foi tolerado como uma doutrina esotérica, ou desprezado como superstição, ou banido como heresia, até que o hassidismo o estabeleceu em um trono, um trono de curta duração, do qual foi empurrado para baixo para se esgueirar, como um mendigo, em nossos sonhos melancólicos.
No entanto, é para o mito de que o Judaísmo devia sua coesão íntima em tempos de perigo. Não Joseph Karo[3], mas Isaac Luria no século XVI, e não o Gaon de Vilna[4], mas o Baal Shem no século XVIII, verdadeiramente consolidaram e demarcaram o Judaísmo ao elevar uma religião popular a um poder em Israel e renovar a personalidade do povo a partir das raízes de seu mito. E se os judeus de nossa geração acham tão difícil fundir sua religiosidade humana e seu judaísmo em um só, é culpa do rabino, que emasculou o ideal judaico. Mas se, apesar disso, o caminho para a unidade ainda está aberto para nós; se, juntamente com o aperfeiçoamento de nossa humanidade, nos é concedido viver como povo, e se, adorando o Divino em conformidade com nossa sensibilidade, ouvimos as palavras do espírito judaico se agitarem acima de nossas cabeças — tudo isso foi provocado pelo poder exaltado do nosso mito.
II
Se quisermos compreender a natureza do mito judaico monoteísta e, ao mesmo tempo, aprender a compreender, em profundidade, a natureza do próprio mito, devemos estudar a origem do monoteísmo judaico como se manifesta na Bíblia. Descobriremos então três estratos claramente distinguíveis.
O primeiro desses três estratos religioso-históricos — que não devem ser confundidos com os estratos textual-históricos do cristianismo bíblico moderno — é caracterizado pelo uso do nome Elohim, o segundo pelo uso do nome YHVH e o terceiro pelo uso de ambos os nomes, para indicar uma divindade verdadeiramente sem nome. A dupla manifestação do inominável Ser divino como Deus universal e Deus nacional. Cada um desses estratos — dos quais o mito judaico evolui — tem sua mitologia específica.
O nome Elohim aparece geralmente como singular na Bíblia, mas originalmente era inconfundivelmente um plural, significando, aproximadamente, “os poderes”. Há vários traços dessa divindade plural, uma divindade não diferenciada em seres separados, existindo individualmente, cada um com sua própria natureza e vida, mas representando, por assim dizer, uma pluralidade de forças cósmicas, distintas em sua natureza, unidas em ação — um agregado de poderes criadores, sustentadores e destruidores, uma nuvem divina movendo-se sobre a Terra, deliberando consigo mesma e seguindo seu próprio conselho.
Pode-se mencionar fenômenos relacionados entre outros povos. Mas lá estão todas as divindades secundárias, divindades auxiliares; não há nada comparável ao monumental monopluralismo do Elohim mito. Seu desenvolvimento posterior também é único. Da pluralidade dos Elohim surge uma única força dominante, um único ser portador de nome, ser dominante que toma cada vez mais poder e finalmente se destaca como um soberano autônomo, adornado com a insígnia mítica de um antigo deus tribal YHVH. Embora ainda se cante: “Quem é como Tu entre os deuses?” (Êxodo 15.11), este ser logo carrega consigo os poderes que antes eram seus companheiros como hostes auxiliares com os quais também aumenta seu nome; YHVH das Hostes [Senhor dos exércitos] (YHVH Zebaot). Finalmente, os Elohim descem ao nível de um mero atributo: YHVH Elohim É chamado de Único; mas o antigo politemonismo ainda pode ecoar em seus outros nomes, como, por exemplo, Shaddai. E muito mais tarde ainda, quando já foi elevado ao reino incorpóreo, ele ocasionalmente fala como se ainda estivesse se dirigindo à divindade plural primordial.
YHVH é o herói divino de Seu povo, e os antigos hinos — que, como um eco de um período geológico anterior, foram preservados para nós, espalhados nos escritos proféticos, em Jó e nos salmos — louvam Seus feitos triunfantes, cada um dos quais é um verdadeiro mito: como Ele esmagou o monstro do Caos, e como, acompanhado pelo júbilo das estrelas da manhã. Ele afundou os pilares da terra no abismo[5].
E agora a característica predominante do Judaísmo, sua tendência a não se contentar com nenhuma unidade, mas a partir daí prosseguir para uma unidade superior e mais perfeita, começa a trabalhar, expandindo o YHVH da nação cósmica no Deus do universo, o Deus da humanidade, o Deus da alma. Mas o Deus do universo não pode mais andar de um lado para o outro, à noite, sob as árvores do Seu paraíso; nem o Deus da humanidade pode lutar com Jacó até o amanhecer; e o Deus da alma não pode mais arder na sarça inconsumida[6]. O YHVH dos Profetas não é mais uma realidade corpórea; e as antigas imagens míticas nas quais Ele é glorificado são agora apenas metáforas para a Sua inefabilidade. Assim, os racionalistas parecem estar justificados afinal, com o mito judaico aparentemente encerrado. Mas este não é o tempo, pois, mesmo milênios depois, as pessoas ainda não aceitaram verdadeiramente a ideia de um Deus incorpóreo. Acima de tudo, porém, isso é falso porque a definição racionalista do conceito de mito é muito restrita e muito mesquinha.
Nós começamos a definir mito como uma narrativa de um evento divino descrito como realidade corpórea. Mas nem Platão nem nosso próprio senso de linguagem entendem essa definição como significando o que os racionalistas dizem que significa: pois apenas uma história das ações e paixões de um deus é apresentado como uma substância física pode ser apropriadamente chamada de mito. Isso, antes, é o que a definição significa: devemos designar como mito toda história de um evento corpóreo real a ser percebido e apresentado como um evento divino, absoluto. Para uma compreensão plena e clara desse conceito, devemos reexaminar o problema geral e reinvestigar a origem do mito.
III
A compreensão do mundo pelo homem civilizado baseia-se em sua compreensão do funcionamento da causalidade, em sua percepção dos processos do universo em um contexto empírico de causa e efeito. Somente por meio da compreensão desse funcionamento o homem pode se orientar, encontrar seu caminho, na infinita multiplicidade de eventos; ao mesmo tempo, porém, o significado da experiência pessoal é diminuído, porque ela é apreendida apenas em sua relação com outras experiências, e não inteiramente de dentro de si mesma. A compreensão do homem primitivo sobre o funcionamento da causalidade ainda é bastante pouco desenvolvida. É praticamente inexistente em sua abordagem de fenômenos como sonhos ou morte, os quais para ele denotam um reino que ele é incapaz de penetrar por investigação, duplicação ou verificação. Também é inexistente em suas relações com homens como feiticeiros ou heróis, que intervêm em sua vida com um poder peremptório e demoníaco que ele é incapaz de interpretar por analogia com suas próprias faculdades. Ele não situa esses fenômenos em uma relação causal, como situa os pequenos incidentes de seu dia; não vincula as ações desses homens, como vincula suas próprias ações e as ações de homens que conhece, à cadeia de todos os acontecimentos; não os registra com a equanimidade da experiência, como registra o familiar e o compreensível. Em vez disso, desimpedido por um senso de operações causais, ele absorve, com toda a tensão e fervor de sua alma, esses eventos em sua singularidade, relacionando-os não a causas e efeitos, mas ao seu próprio conteúdo de significado, à sua significância como expressões do significado indizível e insondável do mundo que se manifesta apenas neles. Como resultado, o homem primitivo carece do empirismo e do senso de propósito necessários para lidar com tais experiências elementares; mas, ao mesmo tempo, possui uma consciência aprofundada do aspecto não racional da experiência singular, um aspecto que não pode ser apreendido dentro do contexto de outros eventos, mas que deve ser percebido dentro da própria experiência; do significado da experiência como um signo de uma conexão oculta, supra causal; da manifestação do absoluto. Ele atribui esses eventos ao mundo do absoluto, do Divino: ele os mitifica. Seu relato deles é um conto de um evento corporalmente real, concebido e representado como um evento divino, absoluto: um mito.
Essa faculdade de criar mitos é preservada no homem posterior, apesar de sua consciência mais plenamente desenvolvida do funcionamento causal. Em tempos de alta tensão e experiência intensa, os grilhões dessa consciência se soltam do homem: ele percebe os processos do mundo como sendo supra causalmente significativos, como a manifestação de uma intenção central, que não pode, no entanto, ser apreendida pela mente, mas apenas pelo poder desperto dos sentidos, as vibrações ardentes de todo o ser – como uma realidade palpável e multifacetada. E é mais ou menos assim que o homem verdadeiramente vivo, capaz de situá-lo na causalidade, o mitifica, porque a abordagem mítica lhe revela uma verdade mais profunda e plena do que a causal, e ao fazê-lo, lhe revela primeiro o próprio ser da figura amada e beatífica. O mito, portanto, é uma função eterna da alma. Ora, é estranho e significativo notar quão intimamente essa função se aproxima da visão fundamental da religiosidade judaica, ao mesmo tempo em que encontra nela um elemento basicamente diferente que a transforma.
É igualmente estranho e significativo que, embora por sua própria natureza o mito judaico represente, por assim dizer, uma continuidade histórica, ele seja ao mesmo tempo dotado de um caráter especial que é estranho a outros mitos, particularmente ao Ocidental. Isso é fundamental para a religiosidade judaica e central para o monoteísmo judaico — tão amplamente mal compreendido e tão cruelmente racionalizado — ver todas as coisas como declarações de Deus e todos os eventos como manifestações do absoluto. Enquanto para o outro grande monoteísta do Oriente, o sábio indiano como é representado nos Upanishads, a realidade corpórea é uma ilusão, da qual se deve abandonar se quisermos entrar no mundo da verdade, para o judeu a realidade corpórea é uma revelação do espírito e da vontade divinos. Consequentemente, todo mito é para o sábio indiano, como mais tarde para o platônico, uma metáfora, enquanto para o judeu é um relato verdadeiro da manifestação de Deus na Terra. O judeu da antiguidade não pode contar uma história de nenhuma outra maneira que não seja miticamente, pois para ele um evento só vale a pena ser contado quando é compreendido em seu significado divino. Todos os livros de histórias da Bíblia têm apenas um assunto: o relato dos encontros de YHVH com Seu povo. E ainda mais tarde, quando da visibilidade da coluna de fogo e da audibilidade do trovão sobre Sinai Ele passou para a escuridão e o silêncio do incorpóreo no reino, a continuidade da narrativa mítica não é quebrada, é verdade, o próprio YHVH não pode mais ser percebido, mas todas as Suas manifestações na natureza e na história podem ser percebidas. E é desses que o inesgotável tema do mito pós-bíblico é composto.
Pelo que eu disse, deve ficar claro o que é esse algo que chamei de caráter especial do mito judaico. O mito judaico não dispensa a causalidade; ele apenas substitui uma causalidade empírica por uma metafísica, com uma relação causal entre eventos vivenciados e o Ser divino. Isso não deve, no entanto, ser entendido como significando apenas que esses eventos foram forjados por Deus. Em vez disso, e cada vez mais fortemente, um conceito inverso mais profundo e criativo é desenvolvido: o conceito da influência que o homem e sua ação têm sobre o destino de Deus. Esta visão, que antes assumia uma forma ao mesmo tempo ingênua e mística, encontra sua expressão máxima no Hassidismo e ensina que o Divino está adormecido em todas as coisas e que só pode ser despertado por aquele que, em santificação, concebe essas coisas e se consagra por meio delas. A realidade corpórea é divina, mas deve ser realizada em sua divindade por aquele que verdadeiramente a vive. A shekhinah é banida para a ocultação, ela jaz, atada, no fundo de tudo, e é redimida em cada coisa pelo homem, que, por sua própria visão ou sua ação, expressa a alma da coisa. Assim, cada homem é chamado a determinar, por sua própria vida, o destino de Deus; e cada ser vivo está profundamente enraizado no mito vivo.
Há uma correspondência entre esses dois conceitos e as duas formas básicas que o mito judaico desenvolveu: o conto dos feitos de YHWH e a lenda de quem brota de seu próprio âmago, em perfeita realização. A primeira forma básica segue o curso da Bíblia, formando, por assim dizer, uma segunda Bíblia de lendas, espalhadas em inúmeros escritos, ao redor do núcleo das Escrituras. A forma clássica primeiro relata as histórias de certas personalidades bíblicas, especialmente as figuras misteriosas negligenciadas pelo texto canônico (como Enoque, que foi transformado da carne em fogo e de mortal em Metatron, “princípio da face divina”[7]); então relata, em proporções cósmicas, a vida dos homens santos que dominaram o mundo interior. A primeira forma representa, por assim dizer, a eterna continuidade, a segunda, a eterna renovação. A primeira nos ensina que somos seres condicionados; a segunda, que podemos nos tornar seres incondicionados. O primeiro é o mito da preservação do mundo; o segundo, o mito da redenção do mundo.
Traduzido do original em inglês em: BUBER, Martin. Mith and Judaism. In: On Judaism. Edited by Nahum N. Glatzer. New York: Schocken Books, 1973, pp. 95-107.
[1] Benvenuto Cellini (1500-1571), ourives e escultor italiano.
[2] David Neumark (1866-1924), autor de História da Filosofia Judaica (em hebraico) e de numerosos ensaios.
[3] Joseph Karo (1488-1575), autor de Shulchan Arukh, código autoritário da lei judaica.
[4] Elijah, o Gaon de Vilna (1720-1797), famoso talmudista; oponente do Hassidismo (fundado pelo Baal Shem).
[5] Isaías 27.1; Salmo 74:14; Jó 38:7 f.
[6] Gênesis 3:8, 32:25; Êxodo 3:2.
[7] Um conceito de “misticismo Merkabah”; ver Scholem, op. Cit (As Grandes correntes da Mística Judaica, edição inglesa revista, 1961), pp 67 ff.