A Crise do Nosso Tempo

Este é, de fato, o cerne da ciência moderna, da ciência social moderna como ela finalmente se desenvolveu nas últimas duas gerações: a distinção entre fatos e valores, com o entendimento de que nenhuma distinção entre valores bons ou ruins é racionalmente possível.

Leo Strauss

Filósofo alemão. Professor de Ciências Políticas na Universidade de Chicago.

Traduzido por Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]

Naturalmente, fiquei comovido com os as observações gentis feitas a meu respeito, mas gostaria apenas de fazer um breve comentário. Não sou tão gentil quanto meus amigos gostariam de me apresentar; certamente meus inimigos concordariam comigo nesse ponto. Para me aproximar do meu assunto, as duas palestras que devo proferir esta noite e amanhã são, na verdade, uma única palestra, cujo tema é a crise do nosso tempo e a crise da filosofia política[1]. Teria sido possível traçar a linha entre as duas palestras em pontos muito diferentes, e talvez eu não a tenha traçado da melhor maneira. Portanto, peço seu perdão se esta palestra for fragmentária; ela foi concebida para ser incompleta. O assunto é, mais precisamente, “a crise do nosso tempo como consequência da crise da filosofia política”.

A crise do nosso tempo, cujo ponto quero desenvolver, tem seu cerne na dúvida sobre o que podemos chamar de “Projeto Moderno”. Esse projeto moderno foi bem-sucedido em grande medida. Ele criou um novo tipo de sociedade, um tipo de sociedade que nunca existiu antes. Mas a inadequação do projeto moderno, o qual agora se tornou uma questão de conhecimento geral e de interesse geral, nos obriga a considerar esse novo tipo de sociedade, o nosso tipo de sociedade, deve ser animado por um espírito diferente daquele que o animou desde o início. Ora, esse projeto moderno foi originado pela filosofia política moderna, pelo tipo de filosofia política que emergiu nos séculos XVI e XVII. O resultado final da filosofia política moderna é a desintegração da própria ideia de filosofia política. Para a maioria dos cientistas políticos atuais, a filosofia política não é mais do que ideologia ou mito.

Temos de pensar na restauração da filosofia política. Temos de voltar ao ponto em que a destruição da filosofia política começou, aos primórdios da filosofia política moderna, quando a filosofia moderna ainda tinha de lutar contra o tipo mais antigo de filosofia política, a filosofia política clássica, a filosofia política originada por Sócrates e elaborada sobretudo por Aristóteles. Naquela época, ocorreu a querela entre os antigos e os modernos, a qual é geralmente conhecida apenas como uma querela puramente literária na França e na Inglaterra, sendo o documento mais famoso na Inglaterra a Batalha dos Livros de Swift. Na verdade, não foi meramente uma querela literária. Foi fundamentalmente uma querela entre a filosofia moderna, ou ciência, e a filosofia, ou ciência mais antiga. A querela foi completada apenas com o trabalho de Newton, cuja questão inteiramente pareceu resolver em favor dos modernos. Nossa tarefa é reacender essa querela, agora que a resposta moderna teve a oportunidade de revelar suas virtudes e de fazer o pior dentro das possibilidades à resposta antiga por mais de três séculos. Para obter convicção, devo permanecer o mais próximo possível do que é hoje geralmente aceito no Ocidente. Não posso partir de premissas que hoje são aceitas apenas por uma minoria relativamente pequena. Em outras palavras, preciso argumentar em considerável medida ad hominem[2]. Espero que isso não crie mal-entendidos.

Para evitar outro tipo de mal-entendido, farei primeiro um esboço da palestra desta noite. A crise do Ocidente tem sido chamada de declínio do Ocidente, no sentido do declínio final dos homens. Essa visão não é sustentável, mas não se pode negar um declínio, algum declínio, ocorrido no Ocidente. O Ocidente declinou em poder de forma mais óbvia; sua própria sobrevivência está agora ameaçada. Esse declínio, no entanto, não constitui a crise do Ocidente. A crise do Ocidente consiste no fato de que o Ocidente se tornou incerto quanto ao seu propósito. Esse propósito era a sociedade universal, uma sociedade composta por nações iguais, cada uma composta por homens e mulheres livres e iguais, com todas essas nações a serem plenamente desenvolvidas em relação ao seu poder de produção, graças à ciência. A ciência deve ser entendida como essencialmente à serviço do poder humano, para o alívio da propriedade do homem. A ciência traria riqueza universal. Um estado no qual ninguém mais teria qualquer motivo para invadir outros homens ou outras nações. A riqueza universal levaria à sociedade universal e perfeitamente justa, como uma sociedade perfeitamente feliz.

Muitos ocidentais duvidaram desse projeto pela autorrevelação do comunismo como imensamente poderoso e radicalmente antagonista à noção ocidental de como essa sociedade universal e justa deveria ser estabelecida e administrada. O antagonismo entre o Ocidente e o comunismo leva à consequência de que não existe possibilidade de uma sociedade universal em um futuro previsível. A sociedade política permanece, em um futuro previsível, o que sempre foi: uma sociedade particular, uma sociedade com fronteiras, uma sociedade fechada, preocupada com o autoaperfeiçoamento. Essa experiência tida por nós exige, no entanto, não apenas uma reorientação política, mas também uma reorientação de nossos pensamentos em relação aos princípios.

Menciono aqui três pontos. Primeiro, esse particularismo, ou, dito de outra forma, esse patriotismo, não é em si melhor do que o universalismo ou o globalismo? Segundo, é razoável esperar justiça e felicidade como consequência necessária da riqueza? A riqueza é mesmo uma condição necessária, embora não suficiente, para a virtude e a felicidade? Não há alguma verdade na noção de pobreza voluntária? Até mesmo a pobreza involuntária é um obstáculo intransponível à virtude e à felicidade? E terceiro, a crença de que a ciência está essencialmente a serviço do poder humano não é uma ilusão, e até mesmo uma ilusão degradante? Agora, deixe-me começar.

A afirmação de que estamos nas garras de uma crise dificilmente precisa de provas. Os jornais de todos os dias nos falam de outra crise, e todas essas pequenas crises diárias podem ser facilmente vistas como partes, ou ingredientes, de uma grande crise, a crise do nosso tempo. O cerne dessa crise, eu afirmo, consiste no fato de que o que era originalmente uma filosofia política se transformou em uma ideologia. Essa crise foi diagnosticada no final da Primeira Guerra Mundial por Spengler como um declínio do Ocidente. Spengler entendia o Ocidente como uma cultura entre um pequeno número de culturas elevadas. Mas o Ocidente era para ele mais do que uma cultura elevada entre várias. Era para ele a cultura abrangente, a única cultura que havia conquistado a Terra. Acima de tudo, era a única cultura aberta a todas as culturas, que não rejeitava as outras culturas como formas de barbárie, nem as tolerava condescendentemente como subdesenvolvidas. É a única cultura que adquiriu plena consciência da cultura como tal. Enquanto cultura originalmente significava a cultura da mente humana, a noção derivada e moderna de cultura implica necessariamente a existência de uma variedade de culturas igualmente elevadas. Mas, precisamente porque o Ocidente é a cultura na qual a cultura atinge a plena autoconsciência, é a cultura final; a coruja de Minerva inicia seu voo ao anoitecer. O declínio do Ocidente é idêntico ao esgotamento da própria possibilidade da alta cultura. As mais elevadas possibilidades do homem estão esgotadas. Mas as mais elevadas possibilidades do homem não podem ser esgotadas enquanto ainda houver elevadas tarefas humanas, enquanto os enigmas fundamentais que o homem enfrenta não tiverem sido resolvidos na medida em que podem ser resolvidos. Podemos, portanto, dizer — apelando à autoridade da ciência em nossa era — que a análise e a previsão de Spengler estão erradas. Nossa autoridade máxima, a ciência natural, considera-se suscetível de progresso infinito. E essa afirmação não faz sentido, ao que parece, se os enigmas fundamentais forem resolvidos. Se a ciência é suscetível de progresso infinito, não pode haver um fim ou conclusão significativa da história. Só pode haver uma interrupção brutal da marcha progressiva do homem por meio de forças naturais agindo por si mesmas ou dirigidas por cérebros e mãos humanas.

Seja como for, em certo sentido, Spengler provou estar certo. Algum declínio do Ocidente ocorreu diante de nossos olhos. Em 1913, o Ocidente — de fato, este país[3] juntamente com a Grã-Bretanha e a Alemanha — poderia ter imposto a lei para o resto da Terra sem disparar um tiro. Por pelo menos meio século, o Ocidente controlou o globo inteiro com facilidade. Hoje, longe de governar o globo, a própria sobrevivência do Ocidente está ameaçada pelo Oriente, como não esteve desde o início. Do Manifesto Comunista[4], pareceria que a vitória do comunismo seria a vitória completa do Ocidente, da síntese transcendente às fronteiras nacionais da indústria britânica, da Revolução Francesa e da filosofia alemã, ou com o Oriente. Vemos que a vitória do comunismo significaria, de fato, a vitória da ciência natural originalmente ocidental, mas, ao mesmo tempo, a vitória da forma mais extrema de despotismo oriental. Por mais que o poder do Ocidente tenha declinado, por maiores perigos ao Ocidente, esse declínio, esse perigo — ou melhor, a derrota e a destruição do Ocidente — não provaria necessariamente que o Ocidente está em crise. O Ocidente poderia cair com honra, certo de seu propósito.

A crise do Ocidente consiste em o Ocidente ter se tornado incerto de seu propósito. O Ocidente já teve certeza de seu propósito, de um propósito no qual todos os homens poderiam se unir. Portanto, tinha uma visão clara de seu futuro como o futuro da humanidade. Não temos mais essa certeza e essa clareza. Alguns de nós até desesperamos com o futuro. Esse desespero explica muitas formas de degradação ocidental contemporânea. Isso não significa que nenhuma sociedade possa ser saudável a menos que seja dedicada a um propósito universal, a um propósito no qual todos os homens possam se unir. Uma sociedade pode ser tribal e ainda assim saudável. Mas uma sociedade que estava acostumada a se entender em termos de um propósito universal não pode perder a fé nesse propósito sem ficar completamente desnorteada. Encontramos tal propósito universal expressamente declarado em nosso passado imediato; por exemplo, em famosas declarações oficiais feitas durante as duas guerras mundiais. Essas declarações apenas reafirmam o propósito declarado originalmente pela forma mais bem-sucedida de filosofia política moderna: um tipo de filosofia política que aspirava a construir sobre os fundamentos lançados pela filosofia política clássica, mas em oposição à estrutura erguida pela filosofia política clássica, uma sociedade superior em verdade e justiça à sociedade na qual os clássicos aspiravam.

De acordo com esse projeto moderno, a filosofia ou ciência não deveria mais ser entendida como essencialmente contemplativa, mas como ativa. Deveria estar a serviço do alívio do patrimônio do homem, para usar a bela frase de Bacon. Deveria ser cultivada em prol do poder humano. Deveria capacitar o homem a se tornar o senhor e dono da natureza por meio da conquista intelectual da natureza. A filosofia ou ciência, originalmente era a mesma coisa, deveria possibilitar o progresso em direção a uma prosperidade cada vez maior. Assim, todos compartilhariam todas as vantagens da sociedade ou da vida e, com isso, tornariam verdadeiro o pleno significado do direito natural de todos à autopreservação confortável (frase de Locke) e tudo o que esse direito acarreta, e o direito natural de todos de desenvolver plenamente todas as suas faculdades, em consonância com todos os outros fazendo o mesmo. O progresso em direção a uma prosperidade cada vez maior se tornaria, ou tornaria possível, o progresso em direção a uma liberdade e justiça cada vez maiores. Esse progresso seria necessariamente um progresso em direção a uma sociedade que abarcasse igualmente todos os seres humanos, uma liga universal de nações livres e iguais, cada nação composta por homens e mulheres livres e iguais. Pois passou-se a acreditar que uma sociedade próspera, livre e justa em um único país, ou em alguns países, não é possível a longo prazo. Para tornar o mundo seguro para as democracias ocidentais, é preciso tornar todo o globo democrático, cada país em si, bem como a sociedade das nações. A boa ordem em um país, pensava-se, pressupõe uma boa ordem em todos os países e entre todos os países. O movimento em direção à sociedade universal, ou ao estado universal, era considerado garantido não apenas pela racionalidade, pela validade universal do objetivo, mas também porque o movimento em direção a esse objetivo parecia ser o movimento da grande maioria dos homens, em nome da grande maioria dos homens. Somente aqueles pequenos grupos de homens, os quais cativam muitos milhões de seus semelhantes e defendem seus próprios interesses antiquados, resistem a esse movimento.

Essa visão da situação humana em geral, e da situação em nosso século em particular, manteve certa plausibilidade não apesar do fascismo, mas por causa dele, até que o comunismo se revelou até mesmo às capacidades mais mesquinhas do stalinismo e do pós-stalinismo; pois o trotskismo, sendo uma bandeira sem exército e até mesmo sem general, foi condenado ou refutado por seu próprio princípio. Por algum tempo, pareceu a muitos ocidentais ensináveis ​​— para não mencionar os não ensináveis ​​— que o comunismo era apenas um movimento paralelo ao movimento ocidental; por assim dizer, um gêmeo um tanto impaciente, selvagem e rebelde que estava fadado a se tornar maduro, paciente e gentil. Mas, exceto quando em perigo mortal, o comunismo respondia às saudações fraternais com desprezo ou, no máximo, com sinais manifestamente dissimulados de amizade, e quando em perigo mortal estava tão ansioso para receber ajuda ocidental quanto determinado a não retribuir com nenhuma palavra de agradecimento. Era impossível para o movimento ocidental entender o comunismo como meramente uma nova versão daquela reação externa contra a qual vinha lutando há séculos. Tinha de admitir o quanto o projeto ocidental, que à sua maneira havia previsto todas as formas anteriores do mal, não poderia se proteger contra a nova forma em discursos ou atos. Por algum tempo, pareceu suficiente dizer que, embora o movimento ocidental concorde com o comunismo quanto ao objetivo de uma sociedade universal próspera de homens e mulheres livres e iguais, discorde dele quanto aos meios. Para o comunismo, o fim, sendo o bem comum de toda a raça humana a coisa mais sagrada justifica quaisquer meios. Tudo o que contribui para a realização do fim mais sagrado participa de sua sacralidade e é, portanto, em si mesmo sagrado. Tudo o que impede a realização desse fim é diabólico. O assassinato de Lumumba[5] foi descrito por um comunista como um assassinato repreensível, com o que ele insinuou que pode haver assassinatos irrepreensíveis, suponho que como o assassinato de Nagy[6].

Percebeu-se, então, não haver apenas uma diferença de grau, mas de tipo, entre o movimento ocidental e o comunismo. E essa diferença foi vista como relacionada à moralidade, à escolha de meios. Em outras palavras, tornou-se mais claro do que havia sido por algum tempo que nenhuma mudança social, sangrenta ou incruenta, pode erradicar o mal no homem. Enquanto houver homens, haverá malícia, inveja e ódio; portanto, não pode haver uma sociedade que não precise empregar restrições coercitivas. Pela mesma razão, não se pode mais negar que o comunismo permanecerá enquanto durar de fato e não apenas nominalmente: o domínio férreo de um tirano, o qual é mitigado ou agravado por seu medo de revoluções palacianas. A única restrição cujo Ocidente pode depositar alguma confiança é o medo do tirano diante do imenso poder militar do Ocidente. A experiência do comunismo proporcionou ao movimento ocidental uma dupla lição: uma lição política, uma lição sobre o que esperar e o que fazer no futuro previsível, e uma lição sobre o princípio da política. No futuro previsível, não pode haver um Estado universal, unitário ou federativo. Além do fato de não existir atualmente uma federação universal de nações, mas apenas uma daquelas nações ditas amantes da paz, a federação que existe mascara a clivagem fundamental. Se essa federação for levada muito a sério, como um marco na marcha progressiva do homem em direção à sociedade perfeita e, portanto, universal, corre-se o risco de correr grandes riscos, apoiados apenas por uma esperança herdada e talvez antiquada, e, assim, pôr em risco o próprio progresso que se busca alcançar. É imaginável que, diante do perigo da destruição termonuclear, uma federação de nações, por mais incompleta que seja, proíba as guerras. Ou seja, as guerras de agressão. Mas isso significa que ele atua sob a premissa de que todas as fronteiras atuais são justas, de acordo com a autodeterminação das nações. Essa suposição é uma fraude piedosa, cuja fraude é mais evidente do que sua piedade. De fato, as únicas mudanças nas fronteiras atuais que estão previstas são aquelas que não são desagradáveis ​​aos comunistas. Também não se deve esquecer a gritante desproporção entre a igualdade jurídica e a desigualdade factual dos confederados. Essa desigualdade factual é reconhecida na expressão “nações subdesenvolvidas”, uma expressão, segundo me disseram, cunhada por Stalin. A expressão implica a determinação de desenvolvê-las plenamente. Ou seja, torná-las comunistas ou ocidentais. E isso apesar do fato de o Ocidente afirmar defender o pluralismo cultural. Mesmo que se pudesse ainda sustentar o quanto o propósito ocidental é tão universal quanto o comunista, deve-se contentar-se, no futuro previsível, com um particularismo prático. A situação assemelha-se à que, como já foi dito muitas vezes, existiu durante aqueles séculos em que tanto o cristianismo quanto o islamismo cada um levantou sua reivindicação, mas cada um teve que se contentar com a coexistência desconfortável com seu antagonista. Tudo isso equivale a dizer que, no futuro previsível, a sociedade política permanece aquilo de sempre: uma sociedade parcial ou particular cuja tarefa mais urgente e primária é sua autopreservação e cuja tarefa mais elevada é seu autoaperfeiçoamento. Quanto ao significado de autoaperfeiçoamento, podemos observar que a mesma experiência que tornou o Ocidente duvidoso da viabilidade de uma sociedade mundial tornou duvidosa a crença de que a riqueza é uma condição suficiente e até necessária para a felicidade e a justiça. A riqueza não cura os males mais profundos.

Devo dizer algumas palavras sobre outro ingrediente do projeto moderno, e isso precisa de uma discussão um pouco mais detalhada. Muito brevemente, podemos dizer que o projeto moderno se distinguia da visão anterior pelo fato de implicar que a melhoria da sociedade depende decisivamente de instituições, políticas ou econômicas, distintas da formação do caráter. Uma implicação dessa visão era a simples separação — como forma distinta de uma distinção — entre direito e moralidade. Além do direito positivo, existe uma esfera de esclarecimento de fato; isto é, de uma educação puramente teórica distinta da educação moral ou formação do caráter. Podemos ilustrar isso com o exemplo de um dos heróis desse projeto moderno, o exemplo de Hobbes. Hobbes, é claro, não era um simples absolutista encantado com Nero e pessoas assim. Hobbes queria ter soberanos absolutos, esclarecidos, “déspotas esclarecidos”, como passaram a ser chamados. Mas toda a sua construção era de tal natureza garantida por ele apenas na possibilidade e na necessidade do despotismo. O caráter esclarecido do déspota permanecia uma mera questão de esperança.

Agora, essa situação se repete de maneira diferente no desenvolvimento da democracia liberal moderna. A democracia liberal afirma ser um governo responsável, uma ordem política na qual o governo é responsável perante os governados. Os governados, é claro, também têm alguma responsabilidade perante o governo; os governados devem obedecer às leis. Mas o ponto-chave é este: para ser responsável, o governo não deve ter segredos aos seus governados. “Acordos abertos abertamente chegaram” — a famosa fórmula do Presidente Wilson expressa esse pensamento com a maior clareza. É claro que a democracia liberal também significa governo limitado, a distinção entre o público e o privado. Não apenas a esfera privada deve ser protegida pela lei, mas também deve ser entendida como impermeável à lei. As leis devem proteger a esfera na qual cada um pode agir e pensar como quiser, na qual pode ser tão arbitrário e preconceituoso quanto quiser. “Minha casa é meu castelo.” Mas isso não é simplesmente verdade. Minha casa não é simplesmente meu castelo; pode ser adentrado com um mandado de busca. O verdadeiro lugar do sigilo não é o lar, mas a cabine de votação. Podemos dizer que a cabine de votação é o lar dos lares, a sede da soberania, a sede do sigilo. O soberano consiste em indivíduos que não são de forma alguma responsáveis, que não podem de forma alguma ser responsabilizados: o indivíduo irresponsável. Esta não era simplesmente a noção original da democracia liberal. A noção original era que este indivíduo soberano era um indivíduo consciencioso, o indivíduo limitado e guiado por sua consciência.

É perfeitamente claro que o indivíduo consciencioso cria a mesma dificuldade que o déspota esclarecido de Hobbes. Não se pode dar uma definição legal do que constitui o indivíduo consciencioso. Não se pode limitar o direito de voto a pessoas conscienciosas, assim como se pode limitar o direito de voto por meio de qualificações de propriedade, testes de alfabetização e similares. A consciência só pode ser fomentada por meios não legais, pela educação moral. Para isso, não há provisão adequada, e a mudança a esse respeito é bem conhecida de todos vocês. Essa mudança que ocorreu e ainda está ocorrendo pode ser chamada de declínio da democracia liberal em direção ao igualitarismo permissivo. Enquanto o núcleo da democracia liberal é o indivíduo consciente, o núcleo do igualitarismo permissivo é o indivíduo com seus impulsos. Basta considerarmos o caso do objetor de consciência; não importa o que você pense sobre os objetores de consciência, não há dúvida de que são pessoas perfeitamente dispostas a dar suas vidas por algo que consideram correto. O homem que deseja satisfazer seus impulsos não tem a menor intenção de sacrificar sua vida, e, portanto, também seus impulsos, para a satisfação de seus impulsos. Este é o declínio moral que ocorreu.

Permitam-me ilustrar essa grande mudança com outro exemplo. Falei no início desta palestra sobre o conceito de cultura. Em seu significado original, significava a cultura da mente humana. Em virtude de uma mudança ocorrida no século XIX, tornou-se possível falar de cultura no plural (as culturas). O que foi feito em grande escala, especialmente por Spengler, foi repetido em um nível um pouco menor, mas com pelo menos o mesmo efeito, por antropólogos como Ruth Benedict[7]. O que, então, significa cultura hoje? Em antropologia e em certas partes da sociologia, a palavra “cultura” é, naturalmente, sempre usada no plural, e de tal forma que se tem uma cultura de subúrbio, uma cultura de gangues juvenis, não delinquentes e até mesmo delinquentes. E pode-se dizer, de acordo com essa noção recente de cultura, que não existe um único ser humano que não seja culto por pertencer a uma cultura. Ao mesmo tempo, felizmente, a noção mais antiga ainda é mantida; quando fiz essa observação, alguns de vocês riram, porque quando falamos de um ser humano culto, ainda implicamos que nem todos os seres humanos são cultos ou possuem cultura. Olhando para o fim da estrada, pode-se dizer que, de acordo com a visão prevalecida nas ciências sociais, todo ser humano que não seja interno de um hospício é um ser humano culto. Nas fronteiras da pesquisa, da qual tanto ouvimos falar hoje em dia, encontramos a interessante questão de saber se os internos de hospícios também não têm uma cultura própria.

Permitam-me agora retornar ao meu argumento. A dúvida em relação ao projeto moderno, hoje bastante difundida, não é apenas um sentimento forte, mas também vago. Adquiriu o status de exatidão científica. Pode-se perguntar se ainda existe um único cientista social que afirme que a sociedade universal e próspera constitui a solução racional para o problema humano. Pois a ciência social atual admite e até proclama sua incapacidade de validar quaisquer juízos de valor propriamente ditos. O ensinamento originado pela filosofia política moderna, aqueles heróis do século XVII, em favor da sociedade universal e próspera, tornou-se reconhecidamente uma ideologia. Ou seja, um ensinamento não superior em verdade e justiça a qualquer outro entre as inúmeras ideologias. A ciência social que estuda todas as ideologias está livre de todos os vieses ideológicos. Por meio dessa liberdade olímpica, ela supera a crise do nosso tempo. Essa crise pode destruir as condições da ciência social; ela não pode afetar a validade de suas descobertas. A ciência social nem sempre foi tão cética ou tão contida quanto se tornou nas últimas duas gerações. A mudança no caráter das ciências sociais não está alheia à mudança no status do projeto moderno. O projeto moderno foi originado por filósofos, e foi originado como algo exigido pela natureza, por direitos naturais. O projeto pretendia satisfazer, da maneira mais perfeita, as necessidades mais poderosas e naturais dos homens. A natureza deveria ser conquistada em prol do homem, que deveria possuir uma natureza, uma natureza imutável. Os idealizadores do projeto pressupunham que filosofia e ciência eram idênticas. Após algum tempo, tornou-se evidente que a conquista da natureza requeria a conquista da natureza humana também e, em primeiro lugar, o questionamento da imutabilidade da natureza humana. Afinal, uma natureza humana imutável poderia estabelecer limites absolutos ao progresso. Consequentemente, as necessidades naturais dos homens não poderiam mais direcionar a conquista da natureza. A direção tinha de vir da razão, distinta da natureza, do racional “Deveria”, distinto do neutro “É”. Assim, a filosofia, a lógica, a ética, a estética, como o estudo do “Deveria” ou das normas, separaram-se da ciência como o estudo do “É”. Enquanto o estudo do “É”, ou ciência, conseguia cada vez mais aumentar o poder do homem, o consequente descrédito da razão impedia a distinção entre o uso sábio, ou correto, e o tolo, ou incorreto, do poder. A ciência, separada da filosofia, não pode ensinar sabedoria. Ainda há algumas pessoas crentes do desaparecimento desse dilema assim que as ciências sociais e a psicologia alcançarem a física e a química. Essa crença é totalmente irracional. Pois as ciências sociais e a psicologia, por mais aperfeiçoadas que sejam, só podem trazer um aumento ainda maior do poder do homem. Elas permitirão ao homem manipular os homens ainda melhor do que nunca. Elas ensinarão tão pouco ao homem como usar seu poder sobre homens ou não-homens quanto a física e a química o fazem. As pessoas que alimentam essa esperança não compreenderam a importância da distinção entre fatos e valores, que pregam o tempo todo. Este é, de fato, o cerne da ciência moderna, da ciência social moderna como ela finalmente se desenvolveu nas últimas duas gerações: a distinção entre fatos e valores, com o entendimento de que nenhuma distinção entre valores bons ou ruins é racionalmente possível. Qualquer fim é tão defensável quanto qualquer outro. Do ponto de vista da razão, todos os valores são iguais. A tarefa com a qual os professores acadêmicos nas ciências sociais estão preocupados é principalmente enfrentar essa questão colocada pela distinção fato-valor. Acredito na demonstração que essa premissa fundamental das ciências sociais atuais é insustentável e irei demonstrá-la por diversos motivos.

Mas agora estou preocupado com uma questão um pouco mais ampla. Quando refletimos sobre a distinção fato-valor, vemos um elemento dela que é bastante impressionante. O cidadão não faz a distinção fato-valor. Ele tem tanta certeza de que pode distinguir razoavelmente entre o bem e o mal, o justo e o injusto, quanto pode distinguir entre o verdadeiro e o falso, ou como pode julgar as chamadas declarações factuais. A distinção entre fatos e valores é estranha à compreensão dos cidadãos das coisas políticas. A distinção entre fatos e valores torna-se necessária, ao que parece, apenas quando a compreensão do cidadão das coisas políticas é substituída pela compreensão especificamente científica. A compreensão científica implica, então, uma ruptura com a compreensão pré-científica. No entanto, ao mesmo tempo, permanece dependente da compreensão pré-científica. Posso ilustrar isso com um exemplo muito simples. Se alguém é enviado por um departamento de sociologia para entrevistar pessoas, ele aprende todo tipo de coisa; recebe instruções muito detalhadas. Mas uma coisa não lhe é dita: faça suas perguntas a pessoas, a seres humanos, e não a cães, árvores, gatos e assim por diante. Além disso, nem lhe é dito como diferenciar seres humanos de cães. Esse conhecimento é pressuposto. Ele nunca é alterado, nunca refinado, nunca afetado por nada que ele aprenda nas aulas de ciências sociais. Este é apenas o exemplo mais massivo de quanto o conhecimento científico supostamente autossuficiente pressupõe conhecimento “a priori”, de conhecimento pré-científico que não é questionado por um momento sequer em todo o processo da ciência. Agora, independentemente de a superioridade da compreensão científica em relação à compreensão pré-científica poder ser demonstrada ou não, a compreensão científica é certamente secundária ou derivada. Portanto, a ciência social não pode alcançar clareza sobre suas ações se não dispuser de uma compreensão coerente e abrangente do que se pode chamar de compreensão de senso comum das coisas políticas, a qual precede toda compreensão científica; em outras palavras, se não compreendermos primariamente as coisas políticas como elas são vivenciadas pelo cidadão ou estadista. Somente se dispuser de uma compreensão coerente e abrangente de sua base ou máximo, poderá demonstrar a legitimidade e tornar inteligível o caráter daquela modificação peculiar da compreensão primária das coisas políticas, que é a compreensão científica. Isso, acredito, é uma necessidade evidente para que a ciência social ou a ciência política seja ou se torne um empreendimento racional. Sendo uma modificação da compreensão primária das coisas políticas, deve ser entendida como tal modificação. Devemos compreender o pré-científico, a compreensão de senso comum, a compreensão do cidadão das coisas políticas, antes de podermos verdadeiramente compreender o que significa a modificação efetuada pela compreensão científica.

Mas como podemos obter essa compreensão? Como nossos pobres poderes podem ser suficientes para uma elaboração da compreensão primária pré-científica dos cidadãos sobre as coisas políticas? Felizmente para nós, esse fardo terrível, o trabalho mais básico que pode e deve ser feito para tornar a ciência política e, portanto, também as outras ciências sociais, verdadeiras ciências, empreendimentos racionais, já foi feito. Como, de certa forma, todos vocês sabem, isso foi feito por Aristóteles em sua Política. Esse trabalho nos fornece a clássica e inesquecível análise da compreensão primária dos fenômenos políticos.

Essa afirmação está exposta a uma grande variedade de objeções aparentemente devastadoras. Dedicarei a palestra política de amanhã a uma apresentação do que esse empreendimento, a ciência política aristotélica, significa. Gostaria de dedicar o restante desta palestra a uma argumentação ad hominem rigorosa, a fim de conduzir, por assim dizer, a parte agora preponderante na profissão, os chamados behavioristas, se estiverem dispostos a ouvir um argumento, a uma compreensão um pouco melhor do que fariam se fossem bem aconselhados. Quando você olha ao seu redor, não para a Universidade de Detroit, não para outras instituições católicas, mas para instituições não católicas, acho que pode dizer, com pouquíssimas exceções, sobre o desaparecimento da filosofia política. A filosofia política, a decadência da filosofia política em ideologia, revela-se hoje mais claramente no fato de que, tanto na pesquisa quanto no ensino, a filosofia política foi substituída pela história da filosofia política. Muitos de vocês leram ou usaram a famosa obra de Sabine, e basta ler o prefácio de Sabine para verem aquilo acerca do que direi como estando simplesmente correto. Agora, o que significa essa substituição da história da filosofia política pela filosofia política? É, a rigor, absurdo substituir a filosofia política pela história da filosofia política. Significa substituir uma doutrina que afirma ser verdadeira por uma análise de erros, e é exatamente isso que Sabine, por exemplo, faz. Portanto, a filosofia política não pode ser substituída pela história da filosofia política.

A disciplina que toma o lugar da filosofia política é aquela que mostra a impossibilidade da filosofia política, e essa disciplina é, claro, a lógica. O que, por enquanto, ainda é tolerado sob o nome de “história da filosofia política” encontrará seu lugar dentro de um esquema racional de pesquisa e ensino em notas de rodapé dos capítulos de livros didáticos de lógica que tratam da distinção entre juízos factuais e juízos de valor. Essas notas de rodapé fornecerão aos alunos lentos exemplos da transição falha pela qual a filosofia política se mantém ou cai, de juízos factuais para juízos de valor. Elas darão exemplos de Platão, Aristóteles, Locke, Hume ou Rousseau e mostrarão quando e onde esses homens famosos cometeram um erro que qualquer criança de dez anos agora sabe evitar. No entanto, seria errado acreditar que na nova era, de acordo com as demandas do positivismo lógico ou da ciência comportamental, o lugar antes ocupado pela filosofia política seja preenchido inteiramente pela lógica, por mais ampliada que seja. Uma parte considerável da matéria anteriormente tratada pela filosofia política é agora tratada pela ciência política não filosófica, que faz parte de Ciência Social. Esta nova ciência política preocupa-se em descobrir leis de comportamento político e, em última análise, leis universais de comportamento político. Para não confundir as peculiaridades da política das épocas e dos lugares em que a ciência social se situa com o caráter de toda a política, ela deve estudar também a política de outros climas e outras épocas. A nova ciência política torna-se, portanto, dependente de um tipo de estudo que pertence ao empreendimento abrangente chamado história universal. Agora, é controverso se a história pode ser modelada nas ciências naturais ou não e, portanto, se a aspiração da nova ciência política de se tornar científica no sentido das ciências naturais é sólida.

De qualquer forma, os estudos históricos nos quais a nova ciência política deve se engajar devem se preocupar não apenas com o funcionamento das instituições, mas também com as ideologias que as informam. No contexto desses estudos, o significado de uma ideologia é principalmente o significado em que seus adeptos a entendem. Em alguns casos, sabe-se que as ideologias foram originadas por homens excepcionais. Nesses casos, torna-se necessário considerar se e como a ideologia, tal como concebida pelo criador, foi modificada por seus adeptos. Pois, precisamente, se apenas a compreensão rudimentar das ideologias pode ser politicamente eficaz, é necessário compreender as características da compreensão rudimentar. Se o que chamam de rotinização do carisma é um tema permitido, a vulgarização do pensamento também deveria ser um tema permitido. Um tipo de ideologia consiste nos ensinamentos dos filósofos políticos. Esses ensinamentos podem ter desempenhado apenas um papel político menor, mas não se pode saber disso antes de conhecer essas doutrinas solidamente. Esse conhecimento sólido consiste principalmente em compreender os ensinamentos dos filósofos políticos como eles próprios os entendiam. Certamente, cada um deles se enganou ao acreditar que seu ensinamento era um ensinamento sólido sobre questões políticas. Por meio de uma tradição confiável, sabemos que essa crença faz parte de uma racionalização, mas o processo de racionalização não é tão completamente compreendido que não valha a pena estudá-lo no caso das mentes mais brilhantes. Pelo que sabemos, pode haver vários tipos de racionalizações, etc., etc. É, portanto, necessário estudar as filosofias políticas, não apenas como foram entendidas por seus criadores, em contraste com a maneira como foram entendidas por seus adeptos e vários tipos de adeptos, mas também por seus adversários e até mesmo por observadores ou historiadores distantes ou indiferentes. Pois a indiferença não oferece garantia suficiente contra o perigo de identificarmos a visão do criador com um compromisso entre as visões de seus adeptos e as de seus adversários. A compreensão geral das filosofias políticas, que é então absolutamente necessária com base na ciência política comportamental, pode ser considerada possível hoje pelo abalo de todas as tradições; a crise do nosso tempo pode ter a vantagem acidental de nos permitir compreender de uma maneira não tradicional, nova, o que até então era compreendido apenas de uma maneira tradicional, derivada.

As ciências sociais, portanto, não estarão à altura de sua pretensão se não se preocupar com a compreensão genuína das filosofias políticas próprias e, portanto, principalmente porque vem em primeiro lugar, da filosofia política clássica. Como indiquei, tal compreensão não se pode presumir que esteja disponível. Às vezes, afirma-se hoje que tal compreensão nem sequer é possível porque toda compreensão histórica é relativa ao ponto de vista do historiador, de seu país, de sua época. O historiador não pode compreender, diz-se, o ensinamento como foi pretendido por seu originador, mas ele necessariamente o compreende de forma diferente de como seu originador o entendeu. Normalmente, a compreensão do historiador é inferior à compreensão do originador. Na melhor das hipóteses, a compreensão será uma transformação criativa do ensinamento original. No entanto, é difícil entender como se pode falar da transformação criativa do ensinamento original se não for possível compreender o ensinamento original como tal.

Seja como for, o seguinte ponto parece ser de crucial importância. Na medida em que o cientista social obtém sucesso nesse tipo de estudo, que lhe é exigido pelas demandas de sua própria ciência, ele não apenas amplia o horizonte da ciência social atual; ele até transcende as limitações dessa ciência social. Pois ele aprende a olhar as coisas de uma maneira que é, por assim dizer, proibida ao cientista social. Ele terá aprendido com sua lógica que sua ciência se baseia em certas hipóteses, certezas ou suposições. Ele aprende agora a suspender essas suposições porque, enquanto as mantiver, não terá acesso ao seu objeto de estudo. Ele é, portanto, compelido a fazer das suposições da ciência social o seu tema. Longe de ser meramente um dos inúmeros temas das ciências sociais, a história da filosofia política, e não a lógica, demonstra ser a busca preocupada com os pressupostos das ciências sociais. Esses pressupostos demonstram ser modificações dos princípios da filosofia política moderna, que, por sua vez, demonstram ser modificações dos princípios da filosofia política clássica. Na medida em que um cientista político comportamental leva a sério sua ciência e seus requisitos, ele é compelido a se engajar em tal estudo, em tal estudo histórico de sua própria disciplina, e não pode conduzir esse estudo sem questionar as premissas dogmáticas de sua própria ciência. Com isso, seu horizonte se amplia. Ele deve pelo menos considerar a possibilidade de que a ciência política mais antiga fosse mais sólida e verdadeira do que o que é considerado ciência política hoje.

Tal retorno à filosofia política clássica é necessário e provisório ou experimental. Não apesar disso, mas porque é provisório, deve ser levada a sério; isto é, sem olhar de soslaio para nossa situação atual. Não há perigo de que possamos nos tornar alheios a essa situação, visto que ela é o incentivo para toda a nossa preocupação com os clássicos. Não podemos razoavelmente esperar que uma nova compreensão da filosofia política clássica nos forneça receitas para o uso atual. O relativo sucesso da filosofia política moderna trouxe à existência um tipo de sociedade totalmente desconhecida pelos clássicos, um tipo de sociedade na qual os princípios clássicos como enunciados e elaborados pelos clássicos não são imediatamente aplicáveis. Somente nós, que vivemos hoje, podemos encontrar uma solução para os problemas de hoje. Uma compreensão adequada dos princípios, conforme elaborados pelos clássicos, pode ser o ponto de partida indispensável para uma análise adequada, a ser realizada por nós, da sociedade atual em seu caráter peculiar, e para a aplicação sábia, a ser realizada por nós, desses princípios às nossas tarefas.

Traduzido do inglês em: STRAUSS, Leo. The Crises of Our Time. In: SPAETH, Howard (ed.). The Predicament of Modern Politics. Detroit: University of Detroit Press, 1964, p. 42-54.


[1] Ambas as palestras “The Crisis of Our Time”, pp. 41–54, e “The Crisis of Political Philosophy”, pp. 91–103, de 1963, se encontram o livro editado e organizado por Howard Spaeth, intitulado: The Predicament of Modern Politics. Detroit: University of Detroit Press, 1964 [N. do T.].

[2] Argumento ad hominem é um tipo de argumento falacioso, cuja retórica se concentra sobre elementos pessoais ou subjetivos do arguidor ao invés de argumentos objetivos [N. do T.].

[3] Leo Strauss se refere aos EUA [N. do T.].

[4] Obra do sociólogo alemão Karl Marx (1818-1883), publicada em 1948.

[5] Patrice Lumumba (1925-1961), foi o fundador do Movimento Nacional Congolês (MNC), ele foi a principal liderança na luta contra a dominação colonial belga no Congo [N. do T.].

[6] Imre Nagy (1896-1958), líder comunista húngaro [N. do T.].

[7] Ruth Benedict (1887-1948), antropóloga estadunidense, cujo cerne de suas pesquisas era centrado nas relações entre cultura e personalidade [N. do T.].

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