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Esta é a situação da consciência. Ter consciência é ter tempo, estar além da natureza, em certo sentido, não ter nascido ainda. Tal ruptura não implica um ser inferior, mas sim o modo do sujeito. Ela implica um poder de ruptura, a rejeição dos princípios neutros e impessoais, da totalidade hegeliana e da política, dos ritmos fascinantes da arte.

Emannuel Levinas

Filósofo lituano. Professor da Sorbonne.

Traduzido por Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS)

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– A linguagem que se pretende direta e nomeia os acontecimentos carece de franqueza. Os acontecimentos convidam à prudência e ao compromisso por conveniência. Sem o seu conhecimento, o compromisso une as pessoas em partidos. Sua maneira de falar torna-se política. A linguagem dos comprometidos é codificada.

– Quem fala claramente sobre os acontecimentos atuais? Quem se expressa de acordo com o que sente sobre as pessoas?

Quem lhes mostra a sua cara?

– Aquele que se expressa em termos de “substância”, “acidente”, “sujeito”, “objeto” e outras abstrações…

(De uma conversa gravada no metrô)

A Bíblia Hebraica desde muito cedo na Lituânia, Pouchkine e Tolstói, a Revolução Russa de 1917, foi vivida aos onze anos na Ucrânia. A partir de 1923, a Universidade de Estrasburgo, onde Charles Blondel, Halbwachs, Pradines, Carteron e, mais tarde, Guéroult lecionavam na época. A amizade de Maurice Blanchot e, através dos professores, que eram adolescentes na época do Caso Dreyfus, a visão, deslumbrante para um recém-chegado, de um povo igual em humanidade e uma nação à qual se pode estar ligado de espírito e coração tão firmemente quanto pelas raízes. Uma estadia entre 1928 e 1929 em Freiburg e um aprendizado em fenomenologia, iniciado um ano antes com Jean Hering. A Sorbonne, Léon Brunschvicg. A vanguarda filosófica nas noites de sábado na casa de Gabriel Marcel. O refinamento intelectual — o anti-intelectualismo — de Jean Wahl e sua generosa amizade, redescoberta após um longo cativeiro na Alemanha; aulas regulares, a partir de 1947, no Colégio Filosófico que Wahl havia fundado e promovido. Diretor da centenária Escola Normal Israelita Oriental, dedicada à formação de professores de francês para as escolas da Aliança Universal Israelita da Bacia do Mediterrâneo[1]. Em comunhão diária com o Dr. Henri Nelson, frequentava o Sr. Chouchani, prestigioso professor de extremo rigor em exegese talmúdica. Palestras anuais, a partir de 1957, sobre textos talmúdicos[2] nos Colóquios de Intelectuais Judeus da França. Tese de doutorado em Literatura em 1961. Professor na Universidade de Poitiers, a partir de 1967, na Universidade Paris-Nanterre, e a partir de 1973, na Paris-Sorbonne. Este inventário deslocado é uma biografia.

Ela é dominada pelo pressentimento e pela memória do horror nazista.

Husserl terá contribuído com um método para a filosofia[3]. Este consiste em respeitar as intenções que animam o psíquico e as modalidades de aparecer, em conformidade com essas intenções, que caracterizam os diversos seres capturados pela experiência; em descobrir os horizontes insuspeitos onde se situa o real, assim capturado pelo pensamento representativo, mas também pela vida concreta, aquilo que ainda não pertence ao registro predicativo, partindo do corpo (inocentemente), da cultura (talvez menos inocentemente). Estender a mão, virar a cabeça, falar uma língua, ser a “sedimentação” de uma história — tudo isso condiciona transcendentalmente a contemplação e o contemplado. Ao mostrar que a consciência e o ser representado emergem de um “contexto” não representativo, Husserl terá desafiado a Representação como lugar da Verdade. O “andaime” exigido pelas construções científicas jamais poderá se tornar inútil, se tivermos cuidado com o significado dessas construções. As Ideias que transcendem a consciência não estão separadas de sua gênese na consciência essencialmente temporal. Apesar de seu intelectualismo e de sua certeza quanto à excelência do Ocidente, Husserl terá, assim, questionado o privilégio platônico, até então nunca discutido, de um continente que se crê no direito de colonizar o mundo.

O método fenomenológico foi utilizado por Heidegger para ir além de entidades objetivamente conhecidas e tecnicamente abordadas, chegando a uma situação que condicionaria todas as outras: a da apreensão do ser dessas entidades, a da ontologia. O ser dessas entidades não é, por sua vez, um ente. É neutro, mas esclarece, guia e ordena o pensamento. Ele apela ao homem e quase o desperta.

Ele apela ao homem e quase o desperta. Ser e ente, que por sua vez não é ente, são fosforescência, como afirma Heidegger?

Este é o caminho seguido pelo autor deste livro. Uma análise que simula o desaparecimento de toda a existência — e mesmo do cogito que a pensa — é invadida pelo murmúrio caótico de uma existência anônima, que é uma existência sem existente e que nenhuma negação pode superar. Há (il y a)  — impessoalmente — como chove ou como escurece[4]. A generosidade que o termo alemão “es gibt” correspondente ao (il y a) não se manifesta de forma alguma entre 1933 e 1945. Isso tem de ser dito! Luz e sentido só nascem com o surgimento e a posição dos existentes naquela horrível neutralidade do (il y a). Eles se encontram no caminho que leva da existência ao existente e do existente ao outro — um caminho traçado pelo tempo como tal[5]. O tempo não deve ser visto como uma “imagem” e aproximação de uma eternidade imóvel, como um modo deficiente de plenitude ontológica. Ele articula um modo de existência onde tudo é sempre revogável, onde nada é definitivo, mas sempre por vir — onde mesmo o presente não é uma simples coincidência consigo mesmo, mas também uma iminência. Esta é a situação da consciência. Ter consciência é ter tempo, estar além da natureza, em certo sentido, não ter nascido ainda. Tal ruptura não implica um ser inferior, mas sim o modo do sujeito. Ela implica um poder de ruptura, a rejeição dos princípios neutros e impessoais, da totalidade hegeliana e da política, dos ritmos fascinantes da arte[6]. Esse modo é um poder de falar, é liberdade de expressão, sem estabelecer por trás da palavra falada uma sociologia ou psicanálise que investigue o lugar dessa palavra em um sistema de referências e, assim, a reduza a algo que ela não queria. Portanto, é o poder de julgar a história sem esperar por seu veredito impessoal[7].

Mas o tempo, a linguagem e a subjetividade não pressupõem apenas um ser arrancado da totalidade, mas também um ser que não a abrange. Tempo, linguagem e subjetividade delineiam um pluralismo e, consequentemente, no sentido mais forte do termo, uma experiência: a recepção por um ser de um ser absolutamente outro. A ontologia — a compreensão heideggeriana do Ser do Ser — é substituída principalmente pela relação do ser com o ser, que, no entanto, não equivale a uma relação do sujeito com o objeto[8], mas sim à proximidade, à relação com o Próximo[9].

A experiência fundamental que a experiência objetiva pressupõe em si mesma é a experiência do Próximo. Experiência por excelência. Como a ideia de Infinito ultrapassa o pensamento cartesiano, o Próximo é desproporcional ao poder e à liberdade do Eu. A desproporção entre o Próximo e o Eu é precisamente a consciência moral. A consciência moral não é uma experiência de valores, mas sim um acesso ao ser exterior — e o ser exterior por excelência é o Próximo. A consciência moral, portanto, não é uma modalidade da consciência psicológica, mas sim sua condição e, antes de tudo, até mesmo sua própria inversão, pois a liberdade que vive em função da consciência é inibida diante do Outro, quando na verdade olho fixamente, francamente, sem artifício ou evasão, em seus olhos desarmados, absolutamente desprovidos de proteção. A consciência moral é justamente essa franqueza. É precisamente essa franqueza. O rosto do Próximo questiona a feliz espontaneidade do eu, essa alegre força que avança. A multidão que o Conde Rostophine, em Guerra e Paz, combateu Verechtchagin, hesita diante de seu rosto, que se avermelha e empalidece novamente, hesitante em usar a violência, inspirada por um “sentimento de humanidade em extrema tensão”; o povo permanece em silêncio ao final de Boris Godunov, diante dos crimes cometidos pelos poderosos.

Em Totalidade e Infinito[10], apresentou-se uma tentativa de sistematizar essas experiências, contrastando-as com um pensamento filosófico que reduz o Outro ao Mesmo, o múltiplo à totalidade, fazendo da autonomia seu princípio supremo. Mas a adaptação do Outro à medida do Mesmo na totalidade não se alcança sem violência, Guerra ou Administração, que alienam até mesmo o Mesmo. A filosofia, como amor à verdade, aspira ao Outro em sua condição como tal, como sendo distinto de seu reflexo no Eu. A filosofia busca sua lei; é a própria heteronomia; é metafísica. Em Descartes, o Eu pensante possui a ideia do infinito: a alteridade do Infinito não é amortizada pela ideia, como acontece com a alteridade das coisas finitas, que — segundo Descartes — eu mesmo posso explicar. A ideia do infinito consiste em pensar mais do que se pensa que se pensa.

Essa descrição negativa assume um significado positivo que não está mais na letra do cartesianismo: um pensamento que pensa mais do que pensa que pensa — o que é isso senão Desejo? Desejo que se distingue da indigência da necessidade. O Desejado não o preenche, mas sim o aprofunda.

A fenomenologia da relação com o Próximo sugere essa estrutura do Desejo analisada como a ideia do Infinito. À medida que o objeto se integra à identidade do Mesmo, o Próximo se manifesta através da resistência absoluta de seus olhos indefesos. A inquietação solipsista da consciência, vendo-se cativa de si mesma em todas as suas aventuras, termina aqui. O privilégio do Próximo em relação ao Eu — ou à consciência moral — é a própria brecha para o exterior, que é também uma brecha para o Alto.

A epifania daquilo que pode ser apresentado tão diretamente, tão externamente e também de forma tão eminente, é o rosto. A expressão do rosto, que fornece ajuda para si mesmo, é a palavra falada. A epifania do rosto é a linguagem. O Próximo é o primeiro registro do inteligível. Mas o infinito no rosto não aparece como uma representação. Ele questiona minha liberdade, que se revela assassina e usurpadora. Mas essa descoberta não é um derivado do saber de si. É inteiramente heteronomia. No rosto, eu sempre exijo mais de mim mesmo; quanto mais respondo ao rosto, mais as demandas aumentam. Esse movimento é mais fundamental do que a liberdade da autorrepresentação. A consciência ética não é, de fato, uma variedade de consciência particularmente recomendável, mas sim a contração, o recolhimento em si mesmo, a sístole da consciência, sem mais.

A orientação para a altura do Outro — assim descrita — é como um nivelamento do próprio ser. A indicação de algo que está acima não indica uma redução ao nada, mas sim um “mais de ser” melhor do que a felicidade das relações sociais. Sua “produção” seria impossível sem a separação, que por sua vez não corresponderia à redução a um componente dialético da Relação com o Próximo. De fato, a dialética da separação e da união só opera em função de uma totalidade. O princípio da totalidade não é proporcionado pela infelicidade da solidão, já orientada para o outro, mas pela felicidade do gozo. A partir desse momento, é possível sustentar um pluralismo que não se reduz a uma totalidade.

O Próximo, revelando-se através de seu rosto, é o primeiro elemento inteligível antes das culturas, antes de suas inundações e alusões. Assim, afirma-se a independência da ética em relação à história. Mostrar que o primeiro sentido emerge na moralidade — na epifania quase abstrata do rosto desprovido de toda qualidade, absoluto, absolvendo-se das culturas — é traçar um limite para a compreensão da realidade através da história e redescobrir o platonismo.

Desde o surgimento da Totalidade e do Infinito, foi possível apresentar essa relação com o Infinito como irredutível à “tematização”. O Infinito continua a se manter como uma “terceira pessoa”, “Ele”, apesar do “Tu” cujo rosto me concerne; o Infinito afeta o Eu sem que o Eu possa dominá-lo, sem que o Eu possa “assumir”, usando o arché do Logos[11], a imensidão do Infinito, afetando assim o Eu anarquicamente, imprimindo-se como um traço na passividade absoluta —anterior a toda liberdade—, revelando-se como a “Responsabilidade-pelo-Próximo” que essa afetação suscita. O sentido último dessa responsabilidade consiste em pensar o Eu na passividade absoluta do Si como o próprio fato de se substituir pelo Outro, de se tornar seu refém[12], e nessa substituição não apenas ser outramente, mas, como que liberto do conatus essendi[13], outramente que ser. A linguagem ontológica que Totalidade e Infinito ainda utiliza para excluir o significado puramente psicológico das análises propostas é doravante evitada. E as análises, em si mesmas, não remetem à experiência, onde um sujeito sempre tematiza aquilo que iguala, mas à transcendência, onde responde por aquilo que suas intenções não conseguiram mensurar.

Traduzido do original em francês: LEVINAS, Emmanuel. Difficile Liberté: essais sur le judaïsme. Paris: Albin Michel, 1976.


[1] Escola em que Levinas ensinava francês e hebraico para jovens judeus argelinos pobres (N. do T.).

[2] 1. Cf. Quatre lectores talmudiques, publicado pela Éditions de Minuit, na coleção “Crítica”, Paris, 1968.

[3] Cf. Théorie de rintuition dans la Phénomenologie de Husserl, Paris, Alean, 1930. Coroado pela Academia de Ciências Morais e Políticas. Republicado por Vrin em 1963 e 1970: En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger, Paris, Vrin, 1949; 2ª edição, 1967, seguida por Nouvelles recherches sur Husserl; 3ª edição em 1975, tradução conjunta com a Srta. G. Peiffer de Husserl, Meditations Cartesiennes, Colin, 1930, posteriormente reeditada por Vrin.

[4] Cf. “De l’Évasion”, en Recherches Philosophiques, 1935-1936. De l ’existence á l ’existant, París, Vrin, 1947.

[5] Cf. “Le temps et l’Autre” en los Cahiers du Collége Philosophique, París, Arthaud, 1949; “Maurice Blanchot et le regard du poete”, Monde Nouveau, mars de 1956.

[6]  La realité et son ombre”, en Les Temps Modernes, noviembre de 1948. “Jean Wahl et la sensibilité, 1955, N° 331.

[7] Cf., em especial a, 1ª edição de Difficile Liberté, essai sur le judai’sme, París, Albín Michel, 1963.

[8] Em “Deucalion II”, 1947, “L’Autre dans Proust”. Cf. “Évidences”, septiembreoctubre de 1952: “Éthique et Esprit” (integrado en “Difficile Liberté”). Artigos da Revue de Métaphysique et de Morale:1º) “¿L’ontologie est-elle fondamentale?”, janeiro e março de 1951, integra a “Phénoménologie – Existence”, publicado por Colin; 2º) “Liberté et Commandement”, julio-septiembre de 1953; 3o) “Le moi et la totalité”, octubre-diciembre de 1954; 4o) “La philosophie et l’idée de rinfini”, diciembre de 1958 (parte da 2a edição de En découvrant 1’existence avec Husserl et Heidegger).

[9] Cf. a segunda edição de En découvrant l ’existence avec Husserl et Heidegger e, em especial, o estudo intitulado“Langage et proximité”.

[10] Totalité et infini, La Haya, Nijhoff, 1961, 2ª edição, 1965; 3ª edição, 1968; 4ª edição, 1971; 5ª edição, 1974.

[11] Arché e Logos, respectivamente, “princípio” e “razão” está em referência a grande parte do trabalho de Levinas em sua crítica a um princípio unívoco de instauração de conhecimentos em que o (il y a) da faticidade existencial não podem ser assumidos como parte de seus pressupostos (N. do T.).

[12] Cf. “La trace de I’Autre” e “Langage et proximité”, na 2ª edição de En découvrant l ’existence avec Husserl et Heidegger, e “La substitution”, na Revista Filosófica de Louvain, agosto de 1968 (núcleo do livro publicado em 1974: Autrement qu’étre ou au-delá de l ’essence). Cf.también, acerca de todos esses temas: Humanisme de l ’autre homme (1972). Noms propres e Sur Maurice Blanchot (1976). Cf. Também em “Le Nouveau Commerce” (30-31), o estudo de 1975: “Dieu et la Philosophie”.

[13] Conatus essendi significa em português “esforço de ser”, termo muito utilizado na Ética de Baruch Spinoza (N. do T.).

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