… e se for ainda

Atônito eu nada tinha o que fazer, senão escutar o peso da chuva a tombar sobre as folhas de outono. Como gostaria que tais fossem as minhas lágrimas também por não deixar que seus rios corressem rumo ao oceano. As partidas…

Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]

Era natural o vento cortar a pele quando o corpo se mostrasse enfraquecido. Afinal, era o desafio de tentar mais uma vez. Assim é o inverno aqui onde está o sul. As gotas penetram os coturnos, os casacos sempre insuficientes e a sensação de fugir acaba sendo melhor do que permanecer em pé, ainda mais por sermos profissionais liberais, sempre à espera de missões a serem encaminhadas.

Então um café se torna uma opção acompanhado de uma conversa leve com um interlocutor de muitos anos. Mesmo a dor de minha cabeça não me faria dizer a ele que eu não deveria ir ao nosso encontro. Afinal, eu sabia que no dia seguinte a dor ia passar e a conversa seria agradável. Dessa forma, nos encontramos ao final do dia repleto de nuvens e de candeeiros amarelados que logo surgiam por toda a rua.

Ali o café seria o motivo adequado para, após tantos meses encalacrados em nossos trabalhos, pensar algo relevante. A noite já se avistava enquanto eu disciplinava os passos. Ele me olhava sempre na cobrança de que meus atrasos eram inaceitáveis… mas isso eu teria de assumir como tarefa minha transformar cinco minutos de constrangimento em evento mediúnico insuperável.

Quando vimos o riso já nos contagiara. Como eu não tinha fome, me limitei a pedir café, enquanto ele já tinha gana por um quiche de alho-poró. Não menos tardios vieram os assuntos das últimas semanas. As palavras tentavam formar a cena do desencontro. Uma frase dita, novamente o tombo. “Ela nem notou…”, eu tomei outro gole de café. “E esqueceu de tudo o que eu disse…” O que vai mesmo acontecer no próximo ato? “Ela tinha um namorado…” E assim meu amigo olhava as distâncias entre as gotas e as folhas de plátanos formando pequenas poças.

Na imagem do silêncio, o turbilhão chega como um menino sozinho em sua casa, a esperar os pais do dia de trabalho. O menino sempre chamava o medo sem o querer por perto. Mesmo em pesadelos as sombras brincavam sobre a lousa da sala de aula em garatujas rudimentares. Os meninos sempre correm no recreio, mesmo para longe das meninas que lhes chamam para brincar. As palavras não podem ser cegas ou tolas de seus desconfortos. O erro de quem acredita nelas sem acreditar em si custa uma vida… e talvez nenhum homem lhe tenha dito isso. Nem almirantes são capazes de brilhar com suas estrelas ao mastro se não olharem as respostas do oráculo das eras.

Eu nada disse, pois sabia que as feridas vinham do mesmo motivo atrevido da solidão a falar uma besteira qualquer… como a imprecisão do tempo diante a minha voz, quase apagada. E isso após escutar a alcunha de ser um homem pragmático no meu trabalho. Não, nunca vão nos conhecer bem. O homem deve se curar… isso não tem jeito! Qual o tempo que faz os remendos parecem seres vivos autônomos? “Olhar as feridas e não ter pressa”, eu lhe disse. “Experimente o som mais uma vez, faça sozinho, fique quieto em sua trincheira”. Por que tantas pessoas de uma só vez? Não seria melhor tentar algo novo? Não sei ao certo se ele entendia das lições de resignação que eu lhe passava. “Eu mesmo me odeio por não ser mais pragmático… com a minha própria dor”, ele me disse. Só tinha mais uma coisa:

Porque são muitos os furos abertos na alma. Retumbava a frase para trazer o ponto de sabedoria tardia. Isso que as gerações novas esqueceram e só caíram no puro entretenimento dos últimos cem anos. Toda a ciência só serviu para reforçar aquilo que não precisávamos para viver…

Atônito eu nada tinha o que fazer, senão escutar o peso da chuva a tombar sobre as folhas de outono. Como gostaria que tais fossem as minhas lágrimas também por não deixar que seus rios corressem rumo ao oceano. As partidas… Lembro que já escutei pessoas a sussurrarem o quanto uma memória parecia sempre voltar e voltar… apesar dos anos amontoados em ribeiras de emoções frívolas.

“Os furos é que de fato escorrem, meu amigo”, arremeti no luzir de dentes desconcertantes.

“E no campo das coisas ditas as pessoas continuam a se tratar como lixo humano”, ele se volta aos estertores. “Lixo e violência pelas coisas não conquistadas. Tédio e inveja pela incapacidade de fazer melhor. Medo e terror por uma vida que só soube determinar o gosto amargo daqueles que tentam viver. Esse mesmo chorume insidioso de uma dificultosa ousadia de manter-se em repouso diante aos infortúnios biográficos. Ou mesmo…

Na escolha dos outros…”

“Meu amigo, se for”, digo no desconsolo, “ainda…”.

Eu falava sozinho. Não notei que ele foi ao banheiro e quando retornou seus olhos haviam se contorcido, naquele misto de incompreensão que nos leva a perguntar. Recebo naquele instante uma mensagem por WhatssApp de que em breve haveria exercícios militares entre o exército inglês e o brasileiro… na grande guerra contra o leste. Acredito que minha expressão deva ter se tornado a mesma de meu amigo. Afinal de contas, as feridas podem não ter tempo de virar cicatrizes.

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