
A lembrança de uma contribuição comum à civilização europeia ao longo da Idade Média, quando os textos gregos chegaram à Europa por meio de tradutores judeus que traduziram traduções árabes, só pode ser exaltante se ainda conseguirmos hoje acreditar no poder das palavras desprovidas de retórica ou diplomacia.
Monoteísmo e Linguagem[1]
Emmanuel Levinas
Filósofo francês de origem lituana. Professor da Sorbonne.
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]
A longa colaboração histórica entre judeus, cristãos e muçulmanos, sua proximidade geográfica como vizinhos mediterrâneos, a maneira como se misturam em nosso mundo de estruturas homogêneas, o mundo real que zomba de anacronismos, cria, gostemos ou não, uma comunidade de fato entre judeus, muçulmanos e cristãos – mesmo que sérios mal-entendidos os separem e mesmo que sejam opostos uns aos outros.
Gostemos ou não! Por que não deveríamos? Por que essa comunidade deveria existir contra a vontade de seus membros?
Cada uma dessas famílias espirituais ensinou o universalismo ao mundo, mesmo que nem sempre concordassem em questões de pedagogia. Nossos destinos essenciais se olham com benevolência.
O monoteísmo não é uma aritmética do Divino. É o talvez dom sobrenatural de ver que um homem é absolutamente igual a outro homem sob a variedade de tradições históricas mantidas vivas em cada caso. É uma escola de xenofilia e antirracismo.
Mas é mais do que isso: obriga o outro a entrar em um discurso que o une a mim. Este é um ponto da maior importância. A lógica dos gregos estabeleceu, como sabemos, a harmonia entre os homens, mas há uma condição: nosso interlocutor deve concordar em falar e ser levado ao discurso. E Platão, no início da República, nos diz que ninguém pode obrigar um Outro a entrar em um discurso. Aristóteles nos diz que o homem que permanece em silêncio pode se recusar indefinidamente a se entregar à lógica da não contradição. O monoteísmo, a palavra do único Deus, é precisamente a palavra que não se pode deixar de ouvir e não se pode deixar de responder. É a palavra que nos obriga a entrar em discurso. É porque os monoteístas permitiram que o mundo ouvisse a palavra do único Deus que o universalismo grego pode separar a humanidade e unificá-la lentamente. Esta humanidade homogênea que se forma gradualmente diante de nossos olhos, que vive com medo e angústia, mas já alcança a solidariedade colaborando economicamente, foi criada por nós, monoteístas!
Não foi o jogo de forças econômicas que criou a solidariedade que, de fato, une raças e Estados ao redor do mundo. O oposto é o caso: o poder do monoteísmo de fazer um homem tolerar outro e levá-lo a responder tornou possível toda a economia da solidariedade.
O Islã é, acima de tudo, um dos principais fatores envolvidos nesta constituição da humanidade. Sua luta tem sido árdua e magnífica. Há muito tempo, superou as tribos que o deram origem. Alastrou-se por três continentes. Ele uniu inúmeros povos e raças. Compreendeu melhor do que ninguém que uma verdade universal vale mais do que particularismos locais. Não é por acaso que um apólogo talmúdico cita Ismael, o símbolo do Islã, entre os raros filhos da História Sagrada, cujo nome foi formulado e anunciado antes de seu nascimento[2]. É como se sua tarefa no mundo já tivesse sido prevista desde a eternidade na economia da Criação.
Diante da grandeza dessa realização e dessa colaboração soberana com a obra da unificação — o ponto final e a justificação de toda unificação particular — o judaísmo sempre prestou homenagem. Um de seus maiores poetas e teólogos, Jehouda Halevy, que, como judeu, certamente não poderia ter negado um direito de primogenitura ao judaísmo nesse domínio, escrevendo em árabe, exaltou a missão do islamismo.
Este reconhecimento é feito com veemência por qualquer judeu digno desse nome. Pois o judeu — e esta é talvez uma de suas definições — é o homem a quem as preocupações e lutas do momento deixam aberto, a qualquer momento, um diálogo elevado — isto é, a palavra que passa de um homem para outro. Acima de tudo, o judeu é alguém para quem o diálogo elevado tem pelo menos a mesma importância determinante que as preocupações e lutas do dia. É inconcebível que tal disposição não encontre eco naquelas mesmas pessoas que realizaram tão magnificamente a tarefa cuja mensagem foi primeiramente transmitida pelo judaísmo. É isso que eu gostaria de dizer, a fim de explicar a atitude do judaísmo em relação ao islamismo, a uma reunião de estudantes judeus — isto é, clérigos e um povo de clérigos. A lembrança de uma contribuição comum à civilização europeia ao longo da Idade Média, quando os textos gregos chegaram à Europa por meio de tradutores judeus que traduziram traduções árabes, só pode ser exaltante se ainda conseguirmos hoje acreditar no poder das palavras desprovidas de retórica ou diplomacia. Sem renegar nenhum de seus compromissos, o judeu está aberto à palavra e acredita na eficácia da verdade.
Pensamentos piedosos, nós dizemos, e palavras generosas! Eu sei que não podemos mais acreditar em palavras, pois não podemos mais falar neste mundo atormentado. Não podemos mais falar, pois ninguém pode começar seu discurso sem imediatamente testemunhar algo diferente do que diz. Ao denunciar a mistificação, nós já temos um ar novo de mistificar.
Mas nós, judeus, muçulmanos e cristãos, nós, monoteístas, quebramos o feitiço, proferimos palavras que se libertam de seu contexto distorcido, proferimos palavras que começam na pessoa que as profere, redescobrimos a palavra que penetra, a palavra que desata, a palavra profética.
Tradução do original em francês “Monothéisme et Langage” retirado do livro Difficile Liberté: essais sur le judaïsme. Paris: Albin Michel, 1976, p. 268-271.
[1] Fala pronunciada em uma reunião convocada pela União dos estudantes judeus acerca da Mutualidade no inverno de 1959.
[2] Não temos como saber exatamente qual sábio talmudista Levinas está a se referir. Contudo, a julgar pela erudição de Levinas acerca do tratado talmúdico San’hedrin (Sinédrio), é possível que ele esteja a se referir ao sábio Shimon bar Yochai, durante sua preleção na folha 89b do presente tratado. Uma vez que a escolha de Deus por Isaac em detrimento de Ishmael para o sacrifício não implicava o amor incondicional de Abrahão (N. do T.).

Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).