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Um Exercício de Pensar

Eu penso com o instante de eternidade que me foi dado em uma consciência. Eu sinto, pois sentir faz o pensamento pesar com as coisas que a razão não entende.

Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico (PUCRS). Doutor em Letras (PUCRS).

Os nós que precisam de soltura na Odisseia de Homero são chamados de análise (Αναλουειν /analoien/). Cada nó é uma espécie de imbricação ou peripécia na qual o herói deve desemaranhar. Quantas vezes o pensamento sobre um nó foi ali colocado de modo a sua atividade de resolução tivesse uma oportunidade de além de prender também ser a soltura? Eu me pego a pensar.

Quantos anos eu poderia me dispor a fazer pensamento sobre algo da importância da minha vida se no instante em que nasci já havia tanto da vida de meus pais, quanto da minha própria vida futura? Esse tenso elemento performa a conjuntura de uma descoberta não apenas crível como impossível de ser praticada por qualquer ser humano. Entretanto, me pego a pensar se em cada esforço que me entreguei, cada hora de leitura e estudo, cada palavra pronunciada para outra pessoa, como uma confissão de meus erros sobre a vida, se ali diretamente eu não estaria presente e consciente, mesmo que sem os resultados do tempo futuro. Sim, eu de fato estou vivo a observar meu julgamento sobre como me vejo a partir das coisas que foram em mim depositadas, mas também sobre as coisas que em mim eu julguei relevantes para permanecerem e serem melhor desenvolvidas. Nesse rol de elementos, também não posso deixar de ver a figura do que se depositou e talvez eu nunca consiga tirar de dentro… O que me dá esperança de tentar ao menos olhar o que é.

Esse desafio que vejo nas grandes obras dos Profetas do Velho Testamento, as coisas que movem a chegada de um Messias que é tanto Rei, Sacerdote e Profeta, observado com clareza por homens que receberam a verdadeira mensagem em seus corações e tiveram a coragem de pronunciá-la mesmo sendo todos assassinados por seu próprio povo. Essa crueldade com a voz profética, com a inspiração da justiça divina em tempos de indolência e maldade viscerais, tempos esses que permanecem sempre como o pôr-do-sol a cada dia.

A disposição de pensar o pecado crucial de estar errado e não conseguir sentir! Essa estranha força que paralisa a minha humanidade em tempos de transição. Eu lembro dos anos em que posso ter me abatido e me transformado em uma máquina para não sentir as coisas que os homens costumam sentir, rir, ver, construir para suas vidas. Não, por vezes o exílio é mais profundo… E cada um terá o seu momento de sentir essa solidão que parece não ter fim. E quando me vejo vivendo o instante do tempo, esse mesmo tempo que antes era eterno e depois permanecerá eterno, pois em um instante tudo é agora e depois nada mais será o que foi antes, levando ao inevitável futuro apenas uma palavra de fé, ou seja, esperança. E quando eu tentava pronunciar o que foi a minha vida para mim mesmo, construindo metáforas o mais objetivamente, obstinadamente, sobre a viagem que tem sido essa estranha consciência repleta de enganos. O melhor que consigo é imaginar um espírito imanente as coisas do qual eu tenho certo acesso, mas por vezes é tão misterioso a ponto de não penetrar nem em mim com exclusividade… Por ser um espírito transcendente a mim. E cada soma dos hábitos que tenho, as restrições colocadas para serem o meu esmero de humanidade, todas elas performam esse homem que cada um deve ver si, enquanto eu vejo como investimento contínuo para meus filhos. Por isso o ato de pensar é tão valoroso para mim, ele me coloca de volta ao que eu necessito com urgência deter-me, seja em questões que outrora filósofos se pronunciaram, embora eu tenha de ver minha introspecção e não me dar por vencido de apenas um psicologismo reduzido a ipseidade. Não, o pensar pode ir mais longe.

O pensamento, resultado do pensar, percebe que há coisas ainda desconhecidas, tanto sobre mim quanto sobre a natureza do mundo. A organização disso em categorias pode até ser uma facilidade, mas devo cuidar para que a categoria não roube a experiência real da tentativa, a qual leva a um elemento tão genuíno, tão real de significação que não seja abandonado por mim, mas meritório, mérito de fazer desse sofrimento minha dignidade, tal como Dostoievsky observou em si. Sim, esse esforço não pode ser hipocrisia, como Raskolnikov se deu conta em sua confissão. A hipocrisia é a perda de tempo na qual muitos o fazem sem ter consciência direta. A perda do tempo é um elemento tão humano… Contudo a vida é breve e a arte ainda clama por ser um alento, uma inspiração que tomo da Poética de Aristóteles, diante ao mundo das sombras quando atravessamos a noite escura após o crepúsculo partir.

Eu penso com o instante de eternidade que me foi dado em uma consciência. Eu sinto, pois sentir faz o pensamento pesar com as coisas que a razão não entende. Eu sou, quando o tempo me eleva até o mais próximo de toda a minha história e seu legado. Sim, a análise é um desfazimento de nós para que os barcos possam buscar seus portos. Dessa aventura que não vejo como cessar, senão a fazer pensamento, dar uma oportunidade para essa conjunção de fatores se enobrecerem em uma unidade que só eu organizei desse jeito, pelo esforço e seu devido mérito. Sobre um pensar que não se classifica somente, mas deseja ser ele mesmo como uma vivência da coisa em sua entrega mais verdadeira. Essa lição eu extraio do pathos da aliança sensível entre Deus, homem e mundo, cujo brilho beira a mil dobras refratadas, nas quais o tempo se dilata durante um sonho repleto de enganos. Sim, sobreviver aos conflitos sem medo e manter o cajado firme mesmo diante à fragilidade. Lá de onde nós aprendemos novamente a arte para continuar a jornada.

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Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).

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