
Esse impressionante papel oracular da questão também é capaz de compreender algo que não se prende a imagens ou histórias, mas sim a situações vividas no presente com singularidade espaço temporal.
Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo Clínico (PUCRS). Doutor em Letras (PUCRS).
Durante o período da minha formação em psicologia eu realmente estive feliz. Eu olhava tudo como uma grande oportunidade de aprendizado. Eu lembro de ir para a biblioteca da PUC e retirar livros, os quais eu li alguns integralmente, pois os livros sempre foram caros e muitos deles não tinham mais edição. Outra coisa que eu gostava era de sentar à mesa dos meus pais na hora do almoço para conversarmos sobre clínica. Meu padrasto é psiquiatra e muito meu amigo e minha mãe fonoaudióloga clínica. Esse ambiente me ajudou muito a pensar clinicamente, isto é, ao fazer uma leitura de sinais e sintomas, compreender o tipo de pergunta que deve ser feita para investigar atenciosamente, saber em quais livros estão certas ideais e sua conjuntura anterior.
A razão disso ser tão importante está na importância de fazer uma formação tão repleta de estímulos e de uma capacidade de atenção muito especiais nos meus anos iniciais. A clínica de meu padrasto, um hospital dia chamado CAMPI, também foi muito importante, pois lá se trabalhava com pacientes com grande grau de agravamento mental, como a esquizofrenia, doença muito debilitante. Contudo, aprendi ao ir muito em sua clínica como uma equipe multidisciplinar pode ajudar pacientes com severas dificuldades a se organizarem. Portanto, a ideia de que a cura parte de uma organização de elementos vividos muito dispersos, fragmentados, esteve em mira desde o começo da minha formação.
A atenção dedicada a isso se deve a um fato muito importante, pois, justamente, na prática, como psicólogo clínico além de ajudar a organizar conteúdos na vida mental dos meus pacientes, eu também deveria ajudar eles a relaxarem, isso é, não verem aquilo como um problema intransponível, propondo alternativas de resolução. Esse fato demorou anos para estar claro como uma prática clínica, pois não são atividades fáceis de serem feitas, a demandarem anos para serem exercitadas com maestria. As pessoas chamam de expertise, termo advindo do inglês, esse tipo de conhecimento de quem pratica por muito tempo, uma atividade e possui nela excelência. Um belo dia eu acordei e me vi repleto de uma experiência muito rica.
O que gostaria de chamar atenção aqui foi um pequeno embate, mas muito importante, durante esse período. O embate dizia respeito às ideias de dois grandes pensadores da psicologia contemporânea. Durante minhas caminhadas aos finais de semana era o tempo que eu possuía para pensar sobre o que eu lia durante a semana. Isso era muito importante, pois poderia pensar sobre as escolas da psicologia, como elas propunham ideias que para os professores pareciam muito distintas, mas, na verdade, elas todas eram complementares uma a outra quando eu as lia. Esse fato também influenciava a forma de conversar com meus pais, pois eu percebia que a clínica não se restringia a um conceito fechado. Eu sentia e enxergava que a clínica é feita de influências distintas, cuja dinâmica ia desde a criação de metáforas, como na poesia, até o acionamento de órgãos governamentais para ajudar pacientes em dificuldades. Não poderia faltar nunca o acolhimento e a recepção de todas as demandas que chegavam. A curiosidade era de extrema importância: o que essa pessoa está querendo me dizer? O que ela está dizendo que não parece ser uma dificuldade para ela enfrentar? O que eu preciso de indicar com a minha fala?
Foi nesse momento que eu gostaria de trazer o prefácio escrito por Carl Gustav Jung para a tradução alemã de Richard Wilhelm, na edição de 1949, ao livro I Ching, o livro das mutações chinês. Por se tratar de um livro anterior à dinastia Chou (1150-249 a.C.), nós precisamos de nos ater ao olhar oriental oracular da obra, em que os Kua, hexagramas, eram usados para a leitura das posições entre atividade e repouso imanentes à natureza de todas as coisas. “Os axiomas da causalidade estão sendo abalados em seus fundamentos: sabemos agora que o que denominamos leis naturais são meramente verdades estatísticas que supõem, necessariamente, exceções” (JUNG, 1997, p. 16). O pensador suíço está profundamente detido na ideia de uma concretude ante toda a forma ideal de pensamento que se pode lançar sobre os resultados do oráculo. Ele entende que ali há a ideia de um tempo em que cada coisa pertence a si mesma e está em relação com a natureza ao redor. Eis a “sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e no tempo, significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores” (JUNG, 1997, p. 17). Isso significa que aquele a observar é intérprete de uma ação única e momentânea em toda a história do universo. Como é interessante imaginar como isso pode ser tão singular e raro… um milagre em toda a história! Eu não poderia me afastar de questionar o quanto um paciente vem ao meu consultório para buscar aquilo que só eu posso dar na forma da minha própria constituição. O ponto do encontro é tão significativo quanto o resto até aquele momento crucial.
“Evidentemente, o processo varia um pouco segundo como a pergunta é formulada. Se, por exemplo, uma pessoa encontra-se numa situação confusa, ela própria pode aparecer no oráculo como aquela que fala, ou se a pergunta diz respeito a um relacionamento com outra pessoa, essa pessoa pode aparecer como aquela que fala” (JUNG, 1997, p. 21).
Isso implica necessariamente o ponto cego de toda a nossa existência até aquele preciso momento em que a consciência se abre, tal como um oceano. Isso é absolutamente maravilhoso! Abre um leque sobre quem somos e a direção de nosso caminho a partir dali. Esse impressionante papel oracular da questão também é capaz de compreender algo que não se prende a imagens ou histórias, mas sim a situações vividas no presente com singularidade espaço temporal. “O I Ching a todo instante insiste no autoconhecimento” (JUNG, 1997, p. 23). Porque é justamente quando perguntamos verdadeiramente, muito implicados com a resposta, é que estamos fazendo um esforço para nos garantir como parte viva de todos os vetores de ida e de vinda para a sua resposta. Não por nada, a pergunta leva a outra pergunta nessa via, a resposta provisória é apenas a espera até uma nova descoberta sobre o que se pergunta. A cada linda do hexagrama, um lugar no horizonte espaço-temporal, mas na última linha a resposta mais íntima e pessoal que podemos imaginar.
E não menos importante me parece aos olhos de hoje o quanto o caráter civilizatório do livro se apresenta até nós. Ao unir as linhas, separá-las, propor com a sabedoria daqueles que mais se aproximaram da natureza de todas as coisas, olharam as linhas não visíveis, aquelas que eles traçaram nos Kua. Esse trabalho milenar, de antes da contagem do tempo conhecido por nós, transparece como o fim da era das tribos e sua beligerância. Desse mesmo caráter de construção de caráter emerge um homo universalis, a consagrar em si todas as qualidades reunidas nos traços diferenciais, cuja marca consagra a cada um dentro do seu próprio modo de ser com o outro. Essa relação inexorável outrora ponto inquestionável é hoje posta em dúvida por perniciosas degenerações em todos os campos de atividade humana no ocidente. Inclusive, o I Ching, chinês, traz os pontos ainda a serem esclarecidos pela mente ocidental. A mente ocidental clama por ter seus instintos satisfeitos da maneira como seu pensamento lhe induz a crer, ao não abrir espaço para o surgimento de novas questões. A realidade torna-se fixada pelo pala saturação dos cinco sentidos e leva a uma totalidade abrupta e equivocada leitura das situações.
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Prefácio. In: WILHELM, Richard. I Ching. Tradução de Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Correa Pinto. São Paulo: Pensamento, 1997.
Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).
- Estevan Ketzerhttps://agorap.org/membros/estevan-ketzer/
- Estevan Ketzerhttps://agorap.org/membros/estevan-ketzer/
- Estevan Ketzerhttps://agorap.org/membros/estevan-ketzer/
- Estevan Ketzerhttps://agorap.org/membros/estevan-ketzer/