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Em busca da verdade, parte 4

O compositor não sabia, mas naquele momento ele musicou a cultura perenialista do século XX.

Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo Clínico (PUCRS). Doutor em Letras (PUCRS).

O aroma da celulose do papel é tão incrível ainda hoje. Lá, no baú das antigas recordações altaneiras do sobrado, misto de casa e refúgio das tempestades emocionais. Aonde cada coisa precisava necessariamente de sentido ante a partidas das pessoas velhas… as mesmas que me disseram que a leitura era algo bom. Eu nem lia, porém, cada coisa nas imagens daqueles livros enfileirados, com as marcas das letras de cada volume, dava vontade de entender bem mais de perto.

Seria a curiosidade a marca daquela dedicação? Ou mesmo os primeiros laivos de uma pequena disciplina que se abrilhantava? Afinal, alguns poderiam chamar de dedicação para cada imagem lida. Como esquecemos que as letras também são imagens… E as imagens verdadeiras, na profundeza de seu sentido supera as qualidades específicas que hoje buscamos com as palavras. O quanto é difícil voltar aos hieróglifos depois que se conhece o alfabeto… Cada imagem e cada som específico advindo das linhas harmônicas dos compositores, eram uma trilha para as linhas ainda não lidas, mas para as imagens vivenciadas nos interstícios de cada singular manifestação de uma ruptura.

E quando se vai a um espetáculo de dança moderna se escuta ao fundo as contribuições da Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky. Esse frêmito de micro diferenças em compassos quebrados acompanham esse novo homem surgido entre as vaias sofridas por Théâtre des Champs-Élysées em 29 de maio de 1913. O compositor não sabia, mas naquele momento ele musicou a cultura perenialista do século XX. De um sonho de Stravinsky em conversas com seu Nicholas Roerich, em que antigos sacerdotes observam a dança de uma jovem antes de seu sacrifício aos deuses primaveris. Os ouvidos também descobrem sua gramática, como repertórios de coisas tão antigas que chegam para nós como a linha de um futuro palpável a unir as linhas dos primeiros laivos solares em um dia agradável. Esse sentido de escutar com prazer, ler com prazer, sentir com prazer, sem cair no puro hedonismo narcisista, cujo efeito produz a fraqueza. Esse sentido a plenos pulmões a pulsar na tentativa de recriar a todo o momento as possibilidades de ser quem somos ao adentrar nas pequenas diferenças que habitam a cada um de nós. Acho que essa leitura gramatical dos estilos e pulsações humanas é parte da antiga a curiosa herança de meus pais.

Não foi menos encantador quando o quebra-cabeça de referências me levou a escutar o álbum Apocalypse da Mahavishnu Orchestra comanda por John McLaughlin acompanhada pela London Symphony Orchestra. Esse hipersônico misto de mitologia hindu e jazz-rock me levou diretamente aos rios tenebrosos do Congo pelas linhas de Joseph Conrad e seu perplexo livro The Heart of Darkness. O rio que todos navegamos, mas apesar do medo temos de continuar. Esse mesmo rio cósmico de Claude Lévi-Strauss e seus Tristes Trópicos. A leitura do antropólogo diante ao rito de morte da tribo perdida no cerrado brasileiro, tal como Stravinsky, Mahavishnu Orchestra e Conrad, Lévi-Strauss parece ser mais um dos que se dispõe a essa conversa com o outro que não leva ao sincretismo. Não, não pode levar ao sincretismo jamais! Aqui vista como conversa de confissão das culturas, mesmo que os temores levem a improvisação sobre o que de fato estamos fazendo ali. Esse legado de desconhecimento, ímpeto e originalidade dado aos artistas no enfrentar dos próprios desentendimentos sobre suas partículas visíveis em meio ao caos do mundo.

A tradição de respeito ao desconhecido, a criação sempre advinda de um repertório, a sensibilidade a despertar. O que as artes contemporâneas ensinam é a multidão de elementos dispersos prestes a serem organizadas, colocam o protagonismo humano para o aperfeiçoamento desse curioso toque entre dois pensamentos. O pensar é sempre carregado de um sentir e nele nos encontramos cada vez mais como a apreciação de uma música tensa e repleta de surpreendente mistério, ao permitir que os sons vivos fossem impressões imagéticas ao invés de uma simples gramática normativa.

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Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).

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