Mas será então que o ensinamento que o iniciante realmente compreende é idêntico ao ensinamento que o estudante perfeitamente treinado realmente compreende? A distinção entre o ensinamento exotérico e esotérico de Platão às vezes remonta à oposição de Platão ao “politeísmo e à religião popular” e à necessidade que ele tinha de ocultar essa oposição.

Ensino Exotérico[1]

Leo Strauss

Filósofo alemão. Professor de Ciências Políticas na Universidade de Chicago.

Traduzido por Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]

A sina do homem bom é expor livremente seus pensamentos. Aquele que não ousa olhar fixamente para os dois polos da vida humana, religião e governo, é apenas um covarde.

Voltaire

A distinção entre ensinamentos exotéricos (ou públicos) e esotéricos (ou secretos) não é atualmente considerada de qualquer importância para a compreensão do pensamento do passado: a principal enciclopédia da antiguidade clássica não contém nenhum artigo, por mais breve que seja, sobre exotérico ou esotérico. Como um número considerável de escritores antigos teve bastante a dizer sobre a distinção em questão, o silêncio da principal enciclopédia não pode ser devido ao silêncio das fontes; deve ser devido à influência da filosofia moderna sobre os estudos clássicos; é essa influência que impede os estudiosos de atribuir importância a inúmeras, ainda que não necessariamente corretas, declarações de escritores antigos. Pois, embora caiba aos estudiosos clássicos decidir se e onde a distinção entre ensinamentos exotéricos e esotéricos ocorre nas fontes, cabe aos filósofos decidir se essa distinção é significativa em si mesma. E a filosofia moderna não é favorável a uma resposta afirmativa a essa questão filosófica. O estudioso clássico Zeller pode ter acreditado ter razões convincentes para rejeitar a visão de que Aristóteles “escolheu propositalmente para suas publicações científicas um estilo obscuro e ininteligível para a mente leiga”; mas é duvidoso que essas razões lhe parecessem igualmente convincentes, se o filósofo Zeller não lhe tivesse assegurado que a visão rejeitada “atribui ao filósofo uma espécie de mistificação muito infantil, totalmente destituída de qualquer motivo razoável”[2].

Até o último terço do século XVIII, a visão de que todos os antigos filósofos distinguiam entre seus ensinamentos exotéricos e esotéricos ainda era mantida, e suas implicações essenciais eram plenamente compreendidas por pelo menos um homem. Gotthold Ephraim Lessing uniu em si, de maneira única, as qualidades tão divergentes do filósofo e do erudito. Ele discutiu a questão do exoterismo de forma clara e completa em três pequenos escritos seus: em “Leibniz von den ewigen Strafen” [Leibniz sobre o Castigo Eterno] (1773), em “Des Andreas Wissowatius Einwiirfe wide die Dreieinigkeit” [Objeções de Andreas Wissowatius à Trindade] (1773) e em “Ernst und Falk” [Ernst e Falk] (1777 e 1780)[3]. Ele a discutiu tão clara e completamente quanto poderia ser feito por alguém que ainda aceitasse o exoterismo não apenas como um fato estranho do passado, mas sim como uma necessidade inteligível para todos os tempos e, portanto, como um princípio que norteava sua própria atividade literária[4]. Em suma, Lessing foi o último escritor que revelou, ao mesmo tempo que as escondia, as razões que compeliam os sábios a esconder a verdade: ele escreveu nas entrelinhas sobre a arte de escrever nas entrelinhas.

Em “Ernst und Falk”, um personagem, chamado Falk, que se expressa de forma um tanto evasiva e às vezes enigmática, tenta mostrar que toda constituição política, e mesmo a melhor constituição política, é necessariamente imperfeita, a imperfeição necessária de toda a vida política tornando necessária a existência do que ele chama de maçonaria, e ele não hesita em afirmar que a maçonaria, que é necessária, sempre existiu e sempre existirá. O próprio Falk é um maçom, ainda que herético, e para ser um maçom, um homem deve conhecer verdades que seria melhor ocultar[5]. Qual é então a razão oculta de sua visão de que toda vida política é necessariamente imperfeita?[6] A intenção das boas obras dos maçons é tornar as boas obras supérfluas[7], e a maçonaria surgiu[8], quando alguém que originalmente havia planejado uma sociedade científica que tornaria as verdades especulativas úteis para a vida prática e política, concebeu uma “sociedade que se elevaria da prática da vida civil à especulação”[9]. As razões ocultas da imperfeição da vida política como tal são os fatos de que toda vida prática ou política é essencialmente inferior à vida contemplativa, ou que todas as obras e, portanto, também todas as boas obras, são “supérfluas” na medida em que o nível da vida teórica, que é autossuficiente, é alcançado, e que as exigências do inferior estão fadadas, de tempos em tempos, a conflitar e a substituir na prática, as exigências do superior. A consideração desse conflito é a razão última pela qual os “maçons” (isto é, os sábios ou os homens de contemplação) devem ocultar certas verdades fundamentais. Pode-se acrescentar que Lessing aponta em “Ernst und Falk” que a variedade de religiões se deve à variedade de constituições políticas[10]: o problema religioso (isto é, o problema da religião histórica e positiva) é considerado por ele como parte integrante do problema político.

Em “Leibniz von den ewigen Strafen” e em “Wissowatius“, Lessing aplica essas visões a uma explicação da atitude de Leibniz em relação à religião. O propósito explícito desses dois pequenos tratados é discutir “os motivos e as razões” que levaram Leibniz a defender certas crenças ortodoxas (a crença na condenação eterna e a crença na trindade)[11]. Ao defender a defesa de Leibniz da crença na condenação eterna, Lessing afirma que a maneira peculiar de Leibniz concordar com opiniões aceitas é idêntica ao que todos os filósofos antigos costumavam fazer em seu discurso exotérico[12]. Ao fazer essa afirmação, ele não apenas afirma que todos os filósofos antigos faziam uso de duas maneiras de ensinar, uma exotérica e uma esotérica; ele também nos convida a rastrear todas as características essenciais do exoterismo de Leibniz até o exoterismo dos antigos. Quais são, então, as características essenciais do exoterismo de Leibniz? Ou, em outras palavras, quais são os motivos e razões que guiaram Leibniz em sua defesa da opinião ortodoxa ou aceita?[13] A primeira resposta de Lessing a essa pergunta é que a maneira peculiar de Leibniz ao concordar com opiniões aceitas é idêntico “ao que todos os filósofos antigos costumavam fazer em seus discursos exotéricos. Ele observava uma espécie de prudência para a qual, é verdade, nossos filósofos mais recentes se tornaram sábios demais”[14]. A distinção entre discurso exotérico e esotérico tem, portanto, tão pouco a ver com “misticismo” de qualquer tipo que é um resultado da prudência. Um pouco mais adiante, Lessing indica a diferença entre a razão esotérica que permite a Leibniz defender a doutrina ortodoxa da condenação eterna e a razão exotérica expressa em sua defesa dessa doutrina[15]. Essa razão exotérica, afirma ele, baseia-se na mera possibilidade de aumento eterno da maldade dos seres morais. E então ele prossegue dizendo: “É verdade, a humanidade estremece diante dessa concepção, embora ela diga respeito à mera possibilidade. Eu não deveria, contudo, por essa razão, levantar a questão: por que se assustar com uma mera possibilidade? Pois eu deveria esperar esta contra pergunta: por que não se assustar com ela, já que ela só pode ser assustadora para aquele que nunca foi sério em relação à melhoria de si mesmo”. Isso implica que um filósofo que faz uma afirmação exotérica afirma, não um fato, mas o que Lessing escolhe chamar de “mera possibilidade”: ele não acredita, estritamente falando, na verdade dessa afirmação (por exemplo, da afirmação de que existe algo como uma maldade eternamente crescente dos seres humanos, o que justificaria punições eternamente crescentes). Isto é indicado por Lessing na seguinte observação que introduz uma citação da parte final do Górgias de Platão: “O próprio Sócrates acreditava seriamente em tais punições eternas; ele acreditava nelas pelo menos na medida em que considerava conveniente ensinar tais punições em termos que não levantassem suspeitas e que fossem mais explícitos”[16].

Antes de prosseguir, devo resumir a visão de Lessing sobre o ensinamento exotérico. Para evitar o perigo de interpretação arbitrária, omitirei todos os elementos dessa visão que não são percebidos à primeira vista, mesmo pelo leitor mais superficial de Lessing, embora a parte óbvia de sua visão, se tomada isoladamente, seja um tanto enigmática. (1) Lessing afirma que todos os filósofos antigos e Leibniz[17] fizeram uso da apresentação exotérica da verdade, distinta de sua apresentação esotérica. (2) A apresentação exotérica da verdade faz uso de afirmações que são consideradas pelo próprio filósofo como afirmações, não de fatos, mas de meras possibilidades. (3) Afirmações exotéricas (isto é, afirmações que não ocorreriam e não poderiam ocorrer dentro do ensinamento esotérico) são feitas pelo filósofo por razões de prudência ou conveniência. (4) Algumas afirmações exotéricas são dirigidas a pessoas moralmente inferiores que deveriam se assustar com tais afirmações. (5) Há certas verdades que devem ser ocultadas. (6) Mesmo a melhor constituição política está fadada a ser imperfeita. (7) A vida teórica é superior à vida prática ou política. A impressão criada por este resumo, de que existe uma estreita conexão entre o exoterismo e uma atitude peculiar em relação à vida política e prática, não é enganosa: a “maçonaria”, que como tal conhece verdades secretas, deve sua existência à imperfeição necessária de toda a vida prática ou política. Alguns leitores podem se sentir inclinados a rejeitar imediatamente todo o ensinamento de Lessing, visto que parece se basear na suposição obviamente errônea, ou meramente tradicional[18], de que todos os filósofos antigos fizeram uso de discursos exotéricos. Para alertar tais leitores, é preciso salientar que a frase incriminada permite uma interpretação totalmente inquestionável: Lessing nega implicitamente que escritores sobre temas filosóficos que rejeitam o exoterismo mereçam o nome de filósofos[19]. Pois ele conhecia as passagens de Platão nas quais se indica que foram os sofistas que se recusaram a ocultar a verdade.

Após Lessing, que faleceu no ano em que Kant publicou sua Crítica da Razão Pura [1781], a questão do exoterismo parece ter sido quase completamente perdida de vista, pelo menos entre estudiosos e filósofos, distintos dos romancistas. Quando Schleiermacher introduziu aquele estilo de estudos platônicos, no qual a erudição clássica ainda se engaja, e que se baseia na identificação da ordem natural dos diálogos platônicos com a sequência de sua elaboração, ele ainda teve que discutir em detalhes a visão de que existem dois tipos de ensinamento platônico, um exotérico e um esotérico. Ao fazer isso, ele fez cinco ou seis observações extremamente importantes e verdadeiras sobre os recursos literários de Platão[20], observações cuja sutileza, até onde sei, nunca foi superada ou sequer rivalizada desde então. No entanto, ele não conseguiu enxergar a questão crucial. Ele afirma que existe apenas um ensinamento platônico — o ensinamento apresentado nos diálogos —, embora haja, por assim dizer, um número infinito de graus de compreensão desse ensinamento: é o mesmo ensinamento que o iniciante compreende inadequadamente e que apenas o estudante perfeitamente treinado de Platão compreende adequadamente. Mas será então que o ensinamento que o iniciante realmente compreende é idêntico ao ensinamento que o estudante perfeitamente treinado realmente compreende? A distinção entre o ensinamento exotérico e esotérico de Platão às vezes remonta à oposição de Platão ao “politeísmo e à religião popular” e à necessidade que ele tinha de ocultar essa oposição; Schleiermacher acredita ter refutado essa visão ao afirmar que “os princípios de Platão sobre esse tópico são suficientemente claros para serem lidos em seus escritos, de modo que dificilmente se pode acreditar que seus alunos pudessem precisar de ainda mais informações sobre eles”[21]. No entanto, “politeísmo e religião popular” é uma expressão ambígua: se Schleiermacher tivesse usado a menos ambígua “crença na existência dos deuses adorados pela cidade de Atenas”, ele não poderia ter dito que a oposição de Platão a essa crença está claramente expressa em seus escritos. De fato, em sua introdução à tradução da Apologia de Sócrates de Platão, ele considera “um ponto fraco desse escrito o fato de Platão não ter feito um uso mais enérgico do argumento extraído do serviço de Sócrates a Apolo, para refutar a acusação de que Sócrates não acreditava nos deuses antigos”[22]. Se o Sócrates de Platão acreditava nos “deuses antigos”, não é provável que o próprio Platão também acreditasse neles? E como se pode então dizer que a oposição de Platão ao “politeísmo e à religião popular” como tal está claramente expressa em seus escritos? O argumento mais forte de Schleiermacher contra a distinção entre os dois ensinamentos de Platão parece ser sua afirmação de que as investigações reais de Platão estão ocultas, não de forma absoluta, mas apenas dos leitores desatentos, ou que a atenção é o único pré-requisito para uma compreensão plena de suas investigações reais, distintas daquelas investigações que são meramente a “pele” das primeiras[23]. Mas algum homem em sã consciência jamais afirmou que Platão desejava ocultar seu ensinamento secreto de todos os leitores ou de todos os homens? Algum homem cujo julgamento possa alegar ter algum peso nesta questão jamais entendeu por ensinamento esotérico de Platão algo diferente daquele ensinamento de seus diálogos que escapa apenas aos leitores desatentos? A única diferença possível de opinião diz respeito exclusivamente ao significado da distinção entre leitores desatentos e atentos: um caminho contínuo leva do leitor extremamente desatento ao leitor extremamente atento, ou o caminho entre os dois extremos é interrompido por um abismo? Schleiermacher tacitamente assume que o caminho do começo ao fim é contínuo, enquanto, segundo Platão, a filosofia pressupõe uma conversão real[24], ou seja, uma ruptura total com a atitude do iniciante: o iniciante é um homem que ainda não saiu da caverna por um momento, enquanto o filósofo é o homem que saiu da caverna e que (se não for compelido a fazer o contrário) vive fora da caverna, nas “ilhas dos abençoados”. A diferença entre o iniciante e o filósofo (pois o estudante perfeitamente treinado de Platão não é ninguém além do filósofo genuíno) é uma diferença não de grau, mas de tipo. Ora, é bem sabido que, segundo Platão, virtude é conhecimento ou ciência; portanto, o principiante é inferior ao aluno perfeitamente treinado de Platão, não apenas intelectualmente, mas também moralmente. Ou seja, a moralidade dos principiantes tem uma base essencialmente diferente daquela na qual se apoia a moralidade dos filósofos: sua virtude não é virtude genuína, mas apenas virtude vulgar ou política, uma virtude baseada não em insight, mas em costumes ou leis[25]. Podemos dizer que a moralidade dos principiantes é a moralidade dos “auxiliares” da República, mas ainda não a moralidade dos “guardiões”. Ora, os “auxiliares”, os melhores entre os quais são os iniciantes, devem acreditar em “nobres mentiras”[26], isto é, em declarações que, embora úteis para a comunidade política, são, no entanto, mentiras. E há uma diferença não de grau, mas de tipo, entre verdade e mentira ou inverdade. E o que vale para a diferença entre verdade e mentira vale igualmente para a diferença entre o ensinamento exotérico e o esotérico; pois o ensinamento exotérico de Platão é idêntico às suas “nobres mentiras”.

Essa conexão de considerações, que é mais ou menos familiar a todos os leitores de Platão, ainda que não devidamente enfatizada por todos os estudantes de Platão, nem sequer é mencionada por Schleiermacher em sua refutação da visão de que há uma distinção entre o ensinamento exotérico e o esotérico de Platão. Nesse contexto, ele tampouco faz alusão aos diálogos de Lessing (“Ernst und Falk” e a conversa de Lessing com F. H. Jacobi), que provavelmente se aproximam mais do espírito dos diálogos platônicos e de sua técnica do que qualquer outra obra moderna em língua alemã. Portanto, a refutação de Schleiermacher à visão em questão não é convincente. Uma comparação de sua Ética Filosófica com a Ética a Nicômaco traria à luz a razão[27] pela qual ele não prestou atenção à diferença entre a moral do principiante e a moral do filósofo, ou seja, à diferença que está na base da diferença entre os ensinamentos exotérico e esotérico.

Volto a Lessing. Como Lessing foi levado a notar[28] e a compreender a informação sobre o fato de que “todos os filósofos antigos” haviam distinguido entre seus ensinamentos exotérico e esotérico? Se não me engano, ele redescobriu o significado dessa distinção por seu próprio esforço, após ter passado por sua conversão, isto é, após ter tido a experiência do que é a filosofia e dos sacrifícios que ela exige. Pois é essa experiência que leva diretamente à distinção entre os dois grupos de homens, os homens filósofos e os homens não filósofos, e, com isso, à distinção entre as duas maneiras de apresentar a verdade. Em uma famosa carta a um amigo[29], ele expressa seu temor de que “ao abandonar certos preconceitos, joguei fora um pouco demais que terei que recuperar”[30]. Essa passagem às vezes foi interpretada como uma indicação de que Lessing estava prestes a retornar do racionalismo intransigente de seu período anterior para uma visão mais positiva da Bíblia e da tradição bíblica. Há amplas evidências para mostrar que essa interpretação está errada[31]. O contexto da passagem deixa claro que as coisas que Lessing havia “jogado fora” antes e que, segundo ele, deveria “trazer de volta” eram verdades que ele descreveu “de longe” em um livro de Ferguson, como acreditava com base no que havia visto no sumário daquele livro. Ele também descreveu “de longe” no livro de Ferguson “verdades em contínua contradição com as quais vivemos e temos que continuar vivendo continuamente em benefício de nossa tranquilidade”. Pode muito bem haver uma conexão entre os dois tipos de verdade: as verdades que Lessing havia jogado fora anteriormente podem ter sido verdades contraditórias às verdades geralmente aceitas pela filosofia do Iluminismo e também aceitas por Lessing ao longo de sua vida. De qualquer forma, dois anos depois, ele repreendeu abertamente os filósofos mais recentes que haviam evitado a contradição entre sabedoria e prudência, tornando-se sábios demais para se submeterem à regra da prudência observada por Leibniz e todos os filósofos antigos. Evidências externas corroboram a visão de que o livro mencionado por Lessing é o Ensaio sobre a História da Sociedade Civil, de Ferguson[32]. As “verdades na contínua contradição com a qual temos que viver”, que haviam sido discutidas por Ferguson e que são indicadas, em certa medida, no sumário de seu Ensaio[33], diziam respeito ao caráter ambíguo da civilização, ou seja, ao tema dos dois famosos primeiros escritos de Rousseau, que Lessing, como talvez sentisse, não havia considerado com a devida atenção em sua juventude[34]. Lessing expressou sua visão do caráter ambíguo da civilização alguns anos depois nestes termos mais precisos: mesmo a melhor constituição civil é necessariamente imperfeita. Parece, então, ter sido o problema político que levou o pensamento de Lessing a um afastamento decisivo da filosofia do Iluminismo, de fato, mas não em direção ao romantismo de qualquer tipo, em direção ao que se chama de uma visão histórica mais profunda de governo e religião, mas em direção a um tipo mais antigo de filosofia. O quão perto ele aparentemente chegou de certas visões românticas em seu caminho da filosofia do Iluminismo para esse tipo mais antigo de filosofia, podemos aprender com o que F. H. Jacobi nos conta em um ensaio seu dedicado à explicação de uma observação política feita por Lessing. Segundo Jacobi, Lessing disse certa vez que os argumentos contra o despotismo papal ou não são argumentos de fato, ou então são duas ou três vezes mais válidos contra o despotismo dos príncipes[35]. Poderia Lessing ter defendido a visão de que o despotismo eclesiástico é duas ou três vezes melhor do que o despotismo secular? Jacobi, em outro lugar, afirma em seu próprio nome, mas certamente no espírito de Lessing, que o despotismo baseado “exclusivamente” na superstição é menos ruim que o despotismo secular[36]. Ora, o despotismo secular poderia facilmente ser aliado à filosofia do Iluminismo e, portanto, à rejeição do exoterismo propriamente dito, como demonstra sobretudo o ensinamento do clássico do despotismo esclarecido: o ensinamento de Hobbes. Mas o “despotismo baseado exclusivamente na superstição”, ou seja, de forma alguma na força, não pode ser mantido se a minoria não supersticiosa não se abstiver voluntariamente de expor e refutar abertamente as crenças “supersticiosas”. Lessing não precisou, então, esperar pela experiência do despotismo de Robespierre para perceber a verdade relativa do que os românticos afirmavam contra os princípios de J.-J. Rousseau, que parece ter acreditado em uma solução política para o problema da civilização: Lessing percebeu essa verdade relativa uma geração antes e a rejeitou em favor do caminho que conduzia à verdade absoluta, ou à filosofia. A experiência que teve naquele momento permitiu-lhe compreender o significado da “prudência” de Leibniz de uma maneira infinitamente mais adequada do que os leibnizianos esclarecidos entre seus contemporâneos compreenderam e puderam compreender. Leibniz é, portanto, o elo na cadeia da tradição do exoterismo que está mais próximo de Lessing. Leibniz, no entanto, não foi o único pensador do século XVII a ser iniciado. Sem mencionar o prudente Descartes, mesmo um escritor tão ousado como Spinoza admitiu a necessidade de “pia dogmata, hoc est, talia quae animum ad obedientiam movent” [dogmas piedosos, isto é, coisas que movem a mente à obediência] em distinção de “vera dogmata” [dogmas verdadeiros][37]. Mas Lessing não precisou se basear em nenhum representante moderno ou medieval da tradição: ele estava familiarizado com suas fontes. Foi precisamente seu classicismo intransigente — sua visão ponderada de que o estudo aprofundado dos clássicos é a única maneira pela qual um homem diligente e pensante pode se tornar um filósofo[38] — que o levou, primeiro, a notar o exoterismo de alguns filósofos antigos e, mais tarde, a entender o exoterismo de todos os filósofos antigos.

Tradução a partir da versão inglesa: STRAUSS, Leo. Exoteric Teaching. Translation by Kenneth Hart Green. Interpretation, London, v. 14, n. 1, jan. 1986, pp. 51-60.


[1] Este ensaio foi originalmente escrito por Leo Strauss em dezembro de 1939. A versão final datilografada, com suas correções manuscritas, provavelmente foi preparada logo depois. Trata principalmente de G. E. Lessing (e secundariamente de F. Schleiermacher). Foi nos anos imediatamente anteriores que Strauss redescobriu o exoterismo, e isso se deveu, sem dúvida, em parte à sua leitura de Lessing em conexão com suas pesquisas para o Jubiläumsausgabe [edição de aniversário] de Moses Mendelssohn, Volumes 2, 3 Parte 1 e 3 Parte 2. Strauss tinha plena consciência da dívida que tinha com Lessing e a mencionou em “Uma Prestação de Contas”, p. 3 (The College [Annapolis and Santa Fe] Vol. 22, No. 1 (abril de 1970) pp. 1-5), e em sua carta de 28 de maio de 1971 a Alexander Altmann (publicada por ele na ‘Vorbemerkung’ [Observação preliminar] do Volume 3, Parte 2 das Moses Mendelssohn Gesammelte Schriften: Jubiläumsausgabe [Escritos Colecionados: Edição de Aniversário], Stuttgart-Bad Cannstatt: Friedrich Frommann [Gunther Holzboog], 1974.) Talvez este ensaio seja o mais próximo que possuímos do ensaio que Strauss disse em 1971 que queria escrever, desde 1937, para apresentar o “Zentrum” dos ensinamentos de Lessing “de Deo et mundo”, e que seria intitulado “Despedindo-se da Alemanha”. Sobre essa intenção, Strauss também disse que “os pontos decisivos são tão claros para mim hoje quanto eram então”. (Cf. a carta a Altmann em ‘Vorbemerkung’, loc. cit., p. VIII.) O ensaio a seguir foi descoberto pelo presente autor no Arquivo Leo Strauss da Biblioteca da Universidade de Chicago (versão final: Caixa 9, Pasta 18, e rascunho: Caixa 12, Pasta 2) e aparece sem alterações no texto que possam afetar o significado. Este ensaio é publicado com a permissão do Espólio de Leo Strauss, a cujo executor, o Professor Joseph Cropsey, meus sinceros agradecimentos por sua gentil assistência. O generoso interesse e assistência do Professor Alexander Altmann também são reconhecidos com gratidão [nota do editor Kenneth Hart Green].

[2] Aristóteles e os Peripatéticos Anteriores (traduzido por Costelloe e Muirhead), Londres, 1897, 1. 120ff.

[3] Ver Lessing, Werke, orgs. Petersen e von Olshausen, VI. 21-60 (“Ernst und Falk“) e XXI. 138-89 (os dois outros tratados mencionados acima). Compare também “Über eine zeitige Aufgabe” [Sobre uma tarefa inicial] de Lessing (XXIV. 146-53).

[4] O exoterismo de Lessing foi reconhecido em certa medida por Gottfried Fittbogen, Die Religion Lessings, Leipzig, 1923, pp. 6ss. e 79ss. Fittbogen, entretanto, não vê a questão mais importante aplicações de suas valiosas observações, uma vez que sua interpretação de Lessing é baseada em uma interpretação kantiana ou pós-kantiana do significado da filosofia.

[5]Falk. Weisst du, Freund, dass du schon ein halber Freimaurer bist? denn du erkennst ja schon Wahrheiten, die man besser verschweigt. Ernst. Aber doch sagen könnte. Falk. Der Weise kann nicht sagen, was er besser verschweigt” [Falk. Você sabia, amigo, que já é meio maçom? Porque você já reconhece verdades que é melhor não dizer. Ernst. Mas que ainda poderiam ser ditas. Falk. Um homem sábio não pode dizer o que é melhor não dizer.] (Segundo Diálogo, loc. cit., p. 31).

[6] No terceiro diálogo (p. 40), afirma-se explicitamente que apenas as deficiências, mesmo da melhor constituição política, foram explicitamente mencionadas, pois são evidentes até mesmo para os olhos mais míopes. Isso implica que existem outras deficiências da vida política como tal que não são evidentes para “olhos míopes”.

[7] Primeiro diálogo (no final) e terceiro diálogo (p. 39).

[8] A contradição entre a afirmação feita no início, de que a Maçonaria sempre existiu, e a afirmação feita no final, de que a Maçonaria surgiu no início do século XVIII, permite-nos ver que Maçonaria é um termo ambíguo.

[9] Quinto diálogo (próximo ao final).

[10] Segundo diálogo (pp. 34ff).

[11] Werke, XXI. 143 e 181.

[12] Loc. cit., 147.

[13] Cf. loc. cit., 146.

[14] Loc. cit., 147. Cf. Platão, Teeteto, 18oc7-d5, com Protágoras, 316C5-317C5 e 343b4-5.

[15] Loc. cit., 153ff.

[16] Loc. cit., 160. Cf. também as observações sobre “acreditar” nas páginas 184, 187 e 189.

[17] Numa conversa privada, publicada somente após sua morte, Lessing disse a F. H. Jacobi sobre Leibniz: “Es ist bei dem grossten Scharfsinn oft sehr schwer, seine eigentliche Meinung zu entdecken” [“Muitas vezes é muito difícil, mesmo com a maior perspicácia, descobrir o verdadeiro significado de alguém”] (Werke, XXIV. 173).

[18] Compare Clemente de Alexandria, Stromata, V.58 (365 Stahlin).

[19] Cf., para um exemplo semelhante da maneira de Lessing se expressar, seu Briefe antiquarischen

Inhalts VII [Cartas de Conteúdo Antiquado VII] (Werke, XVII 97ff.).

[20] F. Schleiermacher, Platons Werke, 1. 1, Berlim, 1804, p. 20. 3ª edição, Berlim, 1855, p. 16.

[21] Loc. cit., 14. 3ª edição, Berlim, 1855, p. 12.

[22] Platons Werke, 1. 2, Berlim, 1805, p. 185. 3ª edição, Berlim, 1855, p. 128.

[23]Das geheime … (ist) nur beziehungsweise so… 1.1, 12. “… die eigentliche Untersuchung wird mit einer anderen, nicht wie mit einem Schleier, sondern wie mit einer angewachsenen Haut überkleidet, welche dem Unaufmerksamen, aber auch nur diesem, dasjenige verdeckt, was eigentlich soil beobachtet oder gefunden werden, dem Aufmerksamen aber nur noch den Sinn für den innern Zusammenhang scharft und lautert.” [“O segredo… (é) apenas respectivamente assim… 11, 12. “… a investigação em si é coberta por outra, não como um véu, mas como uma pele aderida, que esconde dos desatentos, mas somente deles, o que de fato se supõe ser observado ou descoberto, mas para a pessoa atenta apenas aguça e purifica o sentido da conexão interior”] Loc. cit., 20 (os itálicos são meus).

[24] República 518c-e, 52ie e 619c-d. Cf. também Fédon 69a-c.

[25] República 430C3-5 e Fédon 82aio-b8.

[26] República 414b4ss. Cf. Leis 663d6ss.

[27] Essa razão pode ser descoberta pela análise das seguintes afirmações, por exemplo: “O conhecimento

da essência da razão é ética” e “A distinção comum entre guerras ofensivas e defensivas é completamente

vazia” (loc. cit., §§ 60 e 276).

[28] Cf. as observações do jovem Lessing sobre a passagem relevante em Gellius (XX.5) no décimo Literaturbrief [Cartas sobre literatura] (Werke, IV. 38).

[29] A Moses Mendelssohn, de 9 de janeiro de 1771.

[30] Outra afirmação sobre a crise pela qual Lessing passou quando tinha cerca de quarenta anos ocorre

no Briefe antiquarischen Inhalts LIV [Cartas de Conteúdo Antiquado] (Werke, XVII.250).

[31] Ver, por exemplo, von Olshausen em sua introdução a Werke, XXIV. 41ff. Compare também a carta de Jacobi para Hamann de 30 de dezembro de 1784. “… Als (Lessings) Erziehung des Menschengeschlechts von einigen fur eine nicht unchristliche Schrift, beinahe fur eine Palinodie angesehen wurde, stieg sein Arger uber die Albemheit des Volkes bis zum Ergrimmen” [Quando a Educação da Raça Humana (de Lessing) foi considerada por alguns como uma obra não anticristã, quase uma palinódia, sua raiva pela insensatez do povo chegou ao ponto da raiva”] (FH Jacobi, Werke, 1.398).

[32] Cf. von Olshausen, loc. cit., 44 pp., que, no entanto, rejeita esta conclusão com base em “razões internas”.

[33] Cf., por exemplo, os seguintes títulos das seções: “Da separação entre artes e profissões” e “Da corrupção inerente às nações polidas”.

[34] A influência do rousseaunismo mitigado de Ferguson sobre Lessing pode ser vista a partir da comparação das seguintes citações com o que Lessing diz em “Ernst und Falk” sobre as razões óbvias da imperfeição necessária de todas as sociedades civis. Ferguson diz na Parte I, seções 3 e 4: “A poderosa máquina que supomos ter formado a sociedade ensina apenas a colocar seus membros em desacordo, ou a continuar suas relações depois que seus laços de afeição foram rompidos”. “Os títulos de concidadãos e homens do campo, sem oposição aos de estrangeiro e estrangeiro, aos quais se referem, cairiam em desuso e perderiam seu significado.” “… é vão esperar que possamos dar à multidão de um povo sentimento de união entre si, sem admitir hostilidade àqueles que se opõem a eles.” Veja também Parte IV, seção 2: “… se a sorte de um escravo entre os antigos era realmente mais miserável do que a do trabalhador indigente e do mecânico entre os modernos, pode-se duvidar que as ordens superiores, que detêm consideração e honras, não falhem proporcionalmente na dignidade que convém à sua condição”.

[35] Jacobi, Werke, II.334 (“Etwas das Lessing gesagt hat” [Algo que Lessing disse]. Jacobi cita extensivamente o Ensaio de Ferguson nesse artigo.

[36] Jacobi, Werke, III.469. ” Gesprach über die Soldaten und Monche” [Discurso sobre os soldados e Monche], de G. Lessing (Werke, XXIV. 159).

[37] Tractatus Theologico-Politicus, Cap. § 20 (Bruder).

[38] Ele escreve no 71º Literaturbrief (Werke, iv. 197), após ter citado uma declaração de Leibniz em elogio à crítica e ao estudo dos clássicos: “Gewiss, die Kritik von dieser Seite betrachtet, und das Studium der Alten bis zu dieser Bekanntschaft [with Plato, Aristotle, Archimedes and Apollonius] getrieben, ist keine Pedanterei, sondern vielmehr das Mittel, wodurch Leibniz der geworden ist, der er war, und der einzige Weg, durch welchen sich ein fleissiger und denkender Mann ihm nähern kann”  [Certamente, a crítica vista dessa perspectiva, e o estudo dos antigos levado a esse conhecimento [com Platão, Aristóteles, Arquimedes e Apolônio], não é pedantismo, mas sim o meio pelo qual Leibniz se tornou o que foi, e a única maneira pela qual um homem diligente e ponderado pode abordá-lo] (O itálico é meu.) Dez anos depois (1769), ele diz em suas Briefe antiquarischen Inhalts XLV [Cartas de Conteúdo Antiquado] (Werke, XVII.218): “Wir sehen mehr als die Alten; und doch durften vielleicht unsere Augen schlechter sein als die Augen der Alten: die Alten sahen weniger als wir; aber ihre Augen, überhaupt zu reden, mochten leicht scharfer gewesen sein als unsere. Ich fürchte, dass die ganze Vergleichung der Alten und Neuern hierauf hinauslaufen dürfte” [Vemos mais do que os antigos; e, no entanto, talvez nossos olhos sejam piores do que os olhos dos antigos: os antigos viam menos do que nós; mas seus olhos, falando de modo geral, podem facilmente ter sido mais aguçados do que os nossos. Temo que toda a comparação entre antigos e modernos possa se resumir a isso].

Assine grátis o Newsletter da Revista Ágora Perene e receba notificações dos novos ensaios

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *