
A copla andaluza, expressão musical lírica e trágica, revela uma visão do amor como entrega absoluta, oposta aos ideais contemporâneos de autossuficiência. Nestas obras, e através da dor e da perda, o eu lírico feminino ressoa dimensões espirituais esquecidas, aproximando-se do mistério cristão do sacrifício por amor — onde perder-se é, paradoxalmente, encontrar-se.
Tiago Barreira
O amor trágico prefigura o mistério da infinitude divina — um amor que transgride as fronteiras da própria dignidade e soberania para esvaziar-se no Outro. No cristianismo, esse mistério encontra sua expressão mais radical: o Deus que se aniquila por amor ao homem. Como escreveu Unamuno, a abertura à dimensão trágica da existência constitui a essência mais profunda do cristianismo. Amar, no sentido pleno e absoluto, é perder-se.
Poucas culturas acolheram tão intensamente essa visão como a espanhola. Na literatura, nas artes visuais, no teatro e na música, a Espanha fez da tragédia uma linguagem espiritual.
A copla andaluza: expressão popular da dor amorosa
O gênero musical espanhol que talvez melhor expresse o amor trágico é a copla andaluza, que alcançou grande prestígio no século XX, especialmente na voz de cantoras como Concha Piquer, Estrellita Castro e Lola Flores.
A copla é lírica, passional, intensa e melancólica. Suas letras tratam do amor incondicional, do sacrifício feminino, da misericórdia, do perdão e da perseverança diante do amado que rejeita, abandona ou fere — e que, ainda assim, é amado: “Y sin embargo te quiero.”
Contra a lógica do empoderamento performático
São temas hoje frequentemente demonizados pelo discurso woke, por se oporem aos ideais hegemônicos contemporâneos de empoderamento, culto ao Eu e autossuficiência — uma autossuficiência muitas vezes ilusória, pois performática e mediada por validações algorítmicas em redes sociais.
Na copla, encontramos expressões líricas de um amor que se doa integralmente, sem esperar nada em troca, mesmo ao custo do sacrifício total de si. Um amor que deseja mais do que a própria vida, que transborda os limites da razão e das fronteiras entre o Eu e o Tu, buscando fundir-se em um Uno onde não se sabe onde termina um e começa o outro — como na mística: “Já não sou eu quem vive, é o amor que vive em mim.”
Amor trágico e revelação espiritual
Esse perder-se em nome do amor — tão categoricamente classificado hoje como idealização patológica, relação tóxica ou até mesmo manifestação de machismo estrutural — guarda, paradoxalmente, uma das chaves da revelação cristã: “Aquele que perde a própria vida por minha causa, a encontra. Aquele que busca salvar a própria vida, a perde.”
Simone de Beauvoir, ao definir a identidade feminina como uma construção voltada ao Outro — em que a mulher teria sua voz anulada em nome da validação externa — oferece uma leitura sociológica racionalizante que, embora válida em muitos contextos, não esgota a complexidade do fenômeno.
O feminismo, ao tentar traduzir toda a angústia existencial em termos de conflito Eu-Outro, pode incorrer no mesmo erro das filosofias ocidentais modernas denunciado por René Guénon: o de reduzir o real ao discurso analítico-racional.
Amar até o ponto da anulação não pode ser visto apenas como parte de um dispositivo ou estrutura invisível de poder. Há ali uma entrega que ultrapassa qualquer explicação psicanalítica ou sociológica. O discurso do autocuidado, ao patologizar a dimensão trágica da existência, nos afasta das camadas mais profundas e indizíveis da alma.
Uma sabedoria esquecida
A música da copla dá voz a esse indizível — algo que escapa à racionalização dos especialistas e à lógica terapêutica contemporânea. Mais do que manifestação de uma carência traumática, o amor que essas mulheres expressam revela uma sensibilidade quase sobrenatural, que remete a arquétipos femininos profundos como Maria Madalena, a Virgem Dolorosa ou até mesmo Cristo no Horto das Oliveiras. É uma fraqueza que, ao final, se transforma em força.
Canções como “Y sin embargo te quiero”, na voz de Concha Piquer, tocam as camadas mais ocultas do inconsciente psíquico que a modernidade insiste em silenciar. A mulher cansada de ostentar empoderamento e performar autossuficiência nas redes sociais precisa — talvez mais do que nunca — dessa música que a reconecta com a verdade trágica, bela e sacrificial do amor.
Pois há uma sabedoria esquecida nessas vozes femininas que choram e amam ao mesmo tempo. Vozes que compreendem aquilo que o discurso moderno já não sabe mais escutar: que “aquele que perde a própria vida por minha causa, a encontra”.