
Esta Imaginação está sujeita a duas possibilidades, pois só pode revelar o Oculto continuando a velá-lo. É um véu; este véu pode se tornar tão opaco a ponto de nos aprisionar e nos capturar na armadilha da idolatria.
Henry Corbin
Filósofo Francês. Professor e pesquisador da Universidade de Sorbonne em Paris, França.
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS).
Será necessário, primeiramente, recordar os atos da cosmogonia eterna conforme concebidos pelo gênio de Ibn Arabi[1]. Para começar: um Ser Divino sozinho em Sua essência incondicionada, da qual conhecemos apenas uma coisa: precisamente a tristeza da solidão primordial que O faz ansiar por ser revelado aos seres que O manifestam a Si mesmo na medida em que Ele se manifesta a eles. Essa é a Revelação que apreendemos. Devemos meditar sobre ela para a fim de conhecer quem somos. O leitmotif não é a irrupção de uma Onipotência autárquica, mas uma tristeza fundamental: “Eu era um Tesouro escondido, ansiava por ser conhecido. É por isso que produzi criaturas, para ser conhecido nelas.” Esta fase é representada como a tristeza dos Nomes divinos sofrendo angústia no desconhecimento porque ninguém os nomeia, e é essa tristeza que desceu no Sopro divino (tanafus) que é Compaixão (Rahna) e existenciação (ijad), e que, no mundo do Mistério, é a Compaixão do Ser Divino consigo mesmo e por si mesmo, isto é, pelos Seus próprios Nomes. Ou, em outros termos, a origem, o início é determinado pelo amor, o que implica um movimento de desejo ardente (arakat shawqiya) por parte daquele que está apaixonado. Este desejo ardente é apaziguado pela Visão divina[2].
Por meio de uma análise na qual descobre o mistério do ser na experiência do seu próprio ser, o teosofista evita desde o início a oposição teológica entre Ens increatum e um ens creatum extraído do nada, uma oposição que torna duvidoso que a relação entre o Summum Ens e o nada do qual Ele faz surgir as criaturas tenha sido verdadeiramente definida. A tristeza não é o “privilégio” da criatura; está no próprio Criador; é de fato o motivo que, antecipando todas as nossas deduções, torna o Ser primordial um Ser criativo; é o segredo de Sua criatividade. E Sua criação brota, não do nada, de algo diferente de Si mesmo, de um não-Ele, mas de Seu ser fundamental, das potências e virtualidades latentes em Seu próprio ser não revelado. Consequentemente, a palavra tanaffus também conota “brilhar”, aparecer à maneira do “durante”. A Criação é essencialmente a revelação do Ser Divino, primeiramente para si mesmo, uma luminescência ocorrendo dentro d’Ele; é uma teofania (tajallz ilahz). Aqui não há noção de uma creatio et nihilo abrindo um abismo que nenhum pensamento racional jamais será capaz de transpor, porque é essa ideia profundamente divisora em si mesma que cria oposição e distância; aqui não há nem mesmo uma fissura capaz de se transformar em uma área de incerteza que nenhum argumento ou prova jamais possa atravessar. A Respiração Divina exala o que nosso shaikh designa como Nafas al-Rah-man ou Nafas Rahmanz, o Suspiro da Compaixão existencial; este Suspiro dá origem a toda a existência primordial, sutil, chamada Nuvem (‘ama). O que explica o seguinte hadith: “Alguém perguntou ao profeta: Onde está o Senhor antes de criar Sua Criação (visível)? Não havia espaço acima ou abaixo”[3].
Esta Nuvem, na qual o Ser Divino exalou e em que Ele originalmente estava, recebe todas as formas e, ao mesmo tempo, dá aos seres suas formas; ela é ativa e passiva, receptiva e existencial (muhaqqiq); através dela é efetuada a diferenciação dentro da realidade primordial do ser (haqiqat al-wujud) que é o Ser Divino (Haqq fi dhatihi). Como tal, é a Imaginação absoluta e incondicionada (khayal mutlaq). A operação teofânica inicial pela qual o Ser Divino se revela, “mostra-se” a Si mesmo, diferenciando-se em seu ser oculto, isto é, manifestando a Si mesmo as virtualidades de Seus Nomes com seus correlatos, as eternas existências dos seres, seus protótipos latentes em Sua essência (a’yan thabita)[4] — esta operação é concebida como sendo a Imaginação Ativa criativa, a Imaginação teofânica. Nuvem Primordial, Imaginação absoluta ou teofânica, Compaixão existencial são noções equivalentes, expressando a mesma realidade original: o Ser Divino de quem todas as coisas são criadas (al-Haqq al-makhluq bihi kull shay) — o que equivale a dizer a “Criatura-Criadora”. Pois a Nuvem é o Criador, pois é o Suspiro que Ele exala e está oculto n’Ele; como tal, a Nuvem é o invisível, o “esotérico” (batin). E é a criatura manifestada (zahir). Criatura-Criadora (khaliq-makhluq): isto significa que o Ser Divino é o Oculto e o Revelado, ou também que Ele é o Primeiro (al-Awwal) e o Último (al-Akhir)[5].
Assim, nesta Nuvem se manifestam todas as formas do ser, desde os mais elevados Arcanjos, os “Espíritos extasiados de amor” (al-muhayyamun), até os minerais da natureza inorgânica; tudo que se diferencia da pura essência do Ser Divino como tal (dhat al-Haqq), gêneros, espécies e indivíduos, tudo isso é criado na Nuvem. “Criado”, mas não produzido ex nihilo, pois o único não-ser concebível é o estado latente dos seres, e visto que mesmo em seu estado de pura potencialidade, oculto dentro da essência não revelada, os seres têm um status positivo (thubat) desde a pré-eternidade. E, de fato, a “criação” tem um aspecto negativo, pois põe fim à privação do ser que mantém as coisas em sua ocultação; essa dupla negatividade, o não-ser de um não-ser, constitui o ato positivo. Nesse sentido, é permitido dizer que o universo se origina ao mesmo tempo no ser e no não-ser[6].
Assim, a Criação é Epifania (tajallz), isto é, uma passagem do estado de ocultação ou potência ara o estado luminoso, manifesto, revelado; como tal, é um ato da Imaginação divina, primordial. Correlativamente, se não houvesse dentro de nós esse mesmo poder da Imaginação, que não é imaginação no sentido profano de “fantasia”, mas a Imaginação Ativa (quwwat al-khayal) ou Imaginatrix, nada do que nos mostramos se manifestaria. Aqui encontramos o elo entre uma criação recorrente, renovada de instante a instante, e uma Imaginação teofânica incessante, em outras palavras, a ideia de uma sucessão de teofanias (tajalliyat) que ocasiona a sucessão contínua de seres. Esta Imaginação está sujeita a duas possibilidades, pois só pode revelar o Oculto continuando a velá-lo. É um véu; este véu pode se tornar tão opaco a ponto de nos aprisionar e nos capturar na armadilha da idolatria. Mas também pode se tornar cada vez mais transparente, pois seu único propósito é permitir ao místico obter conhecimento do ser como ele é, isto é, o conhecimento que liberta, porque é a gnose da salvação. Isso ocorre quando o gnóstico compreende que as formas multissucessivas, seus movimentos e suas ações, parecem estar separadas do Um somente quando estão veladas por um véu sem transparência. Uma vez alcançada a transparência, ele sabe o que são e por que são; por que há união e discriminação entre o Oculto e o Manifesto; por que há o Senhor e seu vassalo, o Adorador e o Adorado, o Amado e o Amante; por que qualquer afirmação unilateral de uma unidade que os confunde, ou de uma discriminação que opõe suas duas existências como se não fossem da mesma essência, é uma traição à intenção divina e, portanto, à Tristeza que em cada ser anseia por apaziguamento na manifestação de Seu segredo.
A Criatura-Criadora, o Criador que não produz Sua criação fora de Si, mas, por assim dizer, reveste-Se dela como a Aparência (e transparência) sob a qual Ele se manifesta e se revela, antes de tudo, a Si mesmo, é referido por vários outros nomes, como o “Deus imaginado”, isto é, o Deus “manifestado” pela Imaginação teofânica (al-Haqq al-mutakhayyal), o “Deus criado nas fés” (al-Haqq al-makhaluq fi’l-i’tiqdhat). Ao ato inicial do Criador imaginar o mundo corresponde a criatura imaginar seu mundo, imaginar os mundos, seu Deus, seus símbolos. Ou melhor, estas são as fases, as recorrências de um único e eterno processo: Imaginação efetuada em uma Imaginação (takhayyul fz takhayyul), uma Imaginação que é recorrente assim como – e porque – a própria Criação é recorrente. A mesma Imaginação teofânica do Criador que revelou os mundos, renova a Criação a cada momento no ser humano que Ele revelou como Sua imagem perfeita e que, no espelho que esta Imagem é, se mostra Aquele de quem ele é a imagem. É por isso que a Imaginação Ativa do homem não pode ser uma ficção vã, visto que é esta mesma Imaginação teofânica que, no e pelo ser humano, continua a revelar o que se mostrou ao imaginá-lo primeiro.
Essa imaginação só pode ser chamada de “ilusória” quando se torna opaca e perde sua transparência. Mas quando se volta para a realidade divina que revela, ela liberta, desde que reconheçamos a função com a qual Ibn ‘Arabi a dotou e que somente ela pode desempenhar; a saber, a função de coincidentia oppositorum (jam’ bayna’l naqzdayn). Este termo é uma alusão às palavras de Abu Sa’id al-Kharraz, um célebre mestre sufi. “Por onde conheces Deus?”, perguntaram-lhe. E ele respondeu: “Pelo fato de que Ele é a coincidentia oppositorum”[7]. Pois todo o universo de mundos é ao mesmo tempo Ele e não-Ele (huwa la huwa). O Deus manifestado em formas é ao mesmo tempo Ele mesmo e diferente de Si mesmo, pois, uma vez que Ele se manifesta, Ele é o limitado que não tem limite, o visível que não pode ser visto. Esta manifestação não é perceptível nem verificável pelas faculdades sensoriais; a razão discursiva a rejeita. Ela é perceptível apenas pela Imaginação Ativa (Hadrat al-Khayal, a “Presença” ou “Dignidade” imaginativa, a Imaginatrix) nos momentos em que domina as percepções sensoriais do homem, nos sonhos ou, melhor ainda, no estado de vigília (no estado característico do gnóstico, quando ele se afasta da consciência das coisas sensoriais). Em suma, uma percepção mística (dhawq) é necessária. Perceber todas as formas como formas epifânicas (mazahir), isto é, perceber através das figuras que elas manifestam e que são as hecceidades etéreas, que elas são outras que não o Criador e, no entanto, que são Ele, é precisamente efetuar o encontro, a coincidência entre a descida de Deus em direção à criatura e a ascensão da criatura em direção ao Criador. O “lugar” deste encontro não está fora da totalidade Criador-Criatura, mas é a área dentro dela que corresponde especificamente à Imaginação Ativa, à maneira de uma ponte que une as duas margens de um rio[8]. A travessia em si é essencialmente uma hermenêutica de símbolos (ta’wzl, ta’bzr), um método de compreensão que transmuta dados sensoriais e conceitos racionais em símbolos (mazahir), fazendo-os efetuar esta travessia.
Uma intermediária, uma mediadora: tal é a função essencial da Imaginação Ativa. Falaremos mais sobre ela mais adiante. O intelecto (‘aql) não pode substituí-la. A Primeira Inteligência (‘Aql awwal) é a primeira determinação (ta’ayyun awwal) que se abre dentro da Nuvem, que é ela mesma a Imaginação teofânica absoluta. A intermediária entre o mundo do Mistério (‘alam al-ghayb) e o mundo da visibilidade (‘alam al-shahadat) só pode ser a Imaginação, visto que o plano do ser e o plano da consciência que ela designa é aquele em que os Seres Incorpóreos do mundo do Mistério “tomam corpo” (o que ainda não significa um corpo material, físico)[9], e em que, reciprocamente, as coisas naturais e sensuais são espiritualizadas ou “imaterializadas”. Citaremos exemplos para ilustrar esta doutrina. A Imaginação é o “lugar de aparição” de seres espirituais, Anjos e Espíritos, que nela assumem as figuras e formas de suas “formas aparicionais” e porque nela os conceitos puros (ma’anz) e os dados sensoriais (masusat) se encontram e florescem em figuras pessoais preparadas para os eventos do drama espiritual, ela é o lugar onde toda a “história divina” se realiza, as histórias dos profetas, por exemplo, que têm significado porque são teofanias; enquanto no plano da evidência sensorial sobre a qual se realiza o que chamamos de História, o significado, isto é, a verdadeira natureza dessas histórias que são essencialmente “histórias simbólicas” não pode ser apreendido.
Tradução da versão inglesa: CORBIN, Henry. The Creative Imagination as Theophany or the “God from Whom All Being Is Created”. In: Alone with the Alone: creative imagination in the Sufism of Ibn ‘Arabi. Princeton: Princeton Universtity Press, 1998.
[1] Cf. os aspectos já delineados acima, Cap. I, §§ 2 e 3. A fim de estabelecer as equivalências da terminologia empregada nos parágrafos seguintes, observemos o seguinte: al-Haqq al Makhluq bihi: o Deus por quem e em quem todo ser é criado (o Criador-Criatura). Al-Haqq al-mutakhayyal: o Deus manifestado pela Imaginação teofânica. Al-Haqq Makhluq fi’l-i’tiqadat: o Deus criado nas fés. Tajdid al-khalq recorrência da criação.
[2] Cf. Ibn ‘Arabi, Fatuhat, II, 310.
[3] Ibid., sobre a essência (haqiqa) da Imaginação absoluta (khayal mutlaq), da Imaginação que essencializa (khayal muhaqiqi), configura (mussawir) todas as formas ou receptáculos que constituem o aspecto exotérico, manifesto e epifânico do Ser Divino (Zahir Allah).
[4] Finalmente, como já observamos e por razões que não precisam ser expostas aqui, o termo eterna hecceidade [caráter único do ente segundo Duns Scotus] nos parece a tradução mais direta para o termo a’yan thabita, empregado com conotações tão complexas na obra de Ibn Arabi. Hecceidade é um termo característico do vocabulário técnico de Duns Scotus. Ao empregá-lo aqui, não pretendemos sugerir afinidade ou homologia. Tal questão só poderia ser levantada em conexão com um estudo aprofundado dos últimos avicermanos de Irar, que foram eles próprios permeados pela teosofia de Ibn ‘Arabi.
[5] Fatuhaz II, 313. Como o Suspiro Divino, a Nuvem é um sopro inalado e exalado pelo Ser Divino (na haqiqa do Haqq); é a configuração (e a configurabilidade) da criatura no Criador. É a Criatura-Criadora, isto é, Aquele em que se manifestam todas as formas do universo, Aquele em quem a infinita diversidade das teofanias se desdobra sucessivamente (fa-kana al-Haqq al makhluq bihi ma xahara min suwar al-‘alam fihi ma xahara min ikhtilaf al-tajalli al-ilahi fihi).
[6] Fatuhaz II, 311.
[7] Citado em Futuhaz II, 379.
[8] Ibid., 379.
[9] Cf. os cinco significados “descendentes” denotados pelo termo “matéria” na teosofia de Ibn ‘Arabi e em teosofias relacionadas; Cap. I, n. 99.

Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).