
Em “Vidas Secas”, Fabiano representa o homem cuja imaginação se atrofiou pela falta de cultura, pela falta de acesso à educação, ao conhecimento e aos livros. Fabiano não consegue compreender bem o que se passa com ele e com a sua família precisamente porque lhe falta repertório verbal, porque lhe falta domínio da linguagem, porque lhe falta a capacidade de se exprimir através das palavras.
Bernardo Souto
“Sobre aquilo que não se pode [ou não se consegue] falar, deve-se calar”, disse o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, em “Tractatus Logico-Philosophicus” — uma vez que, segundo o mesmo pensador, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Daí os grunhidos e os sons guturais do retirante; daí a ‘animalização’ do vaqueiro errante, característica tão ressaltada por Graciliano Ramos. Fabiano é silencioso, lacônico, quase mudo.
Mas o silêncio de Fabiano não é o silêncio do filósofo contemplativo, é antes o silêncio de quem possui enormes dificuldades de raciocinar. A miséria do matuto indigente, do sertanejo pai de família, portanto, não é tão somente financeira, também é a miséria da mutilação ontológica causada pela ausência de educação literária, pela ausência de contato com a filosofia, em suma, pela ausência de convívio com o que há de mais rico e profundo na Língua Portuguesa. Para Fabiano, não existem símbolos, não existem metáforas, não existem analogias; a bem da verdade, Fabiano não detém sequer um vocabulário minimamente elementar, nem tampouco um domínio trivial da sintaxe do nosso idioma.
Por isso o destino de Fabiano é cíclico, como o do cão que tenta morder a própria cauda, como o do cão faminto, abandonado à própria sorte. “Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos.” Um bicho. “Fabiano, você é um bicho, Fabiano”, escreve Graciliano, com a sua dicção contundente, agressiva e seca, seca como as terras sertanejas que o grande escritor nordestino tão bem conhecia.
Eis por que o vaqueiro Fabiano “vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica, gutural”, como escreve o exímio artista da palavra alagoano. “Um bicho”. De fato, Fabiano é praticamente um bicho.

Bernardo Valois Souto é bacharel em Letras/Crítica Literária pela Universidade Federal de Pernambuco e mestre em Literatura e Cultura: Estudos Comparados pela Universidade Federal da Paraíba. Lecionou Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Teoria da Literatura na Faculdade de Formação de Professores de Araripina, em Pernambuco, por vários anos. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias como Zunái, Germina, Eutomia (UFPE), Tom, Cronópios, Vila Nova, Síntese, Unamuno, dentre outras. Recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Pernambucana de Letras, em 2020.