
O pensamento e os métodos antropológicos remontam aos primeiros tempos da literatura de viagens em que várias culturas e costumes foram descritos. Quando a antropologia se definiu como uma disciplina separada e distinta, passou por diferentes abordagens e metodologias. Muitos dos primeiros antropólogos também eram sociólogos, de modo que tanto as teorias quanto as abordagens de ambas as disciplinas geralmente combinam.
Um das primeiras formas de pensamento antropológico foi a antropologia evolutiva – cujos adeptos, que ainda estavam encantados com a teoria da evolução de Darwin, pensavam que as culturas passam por estágios evolutivos exatamente como os organismos. As especificidades desse processo evolutivo podem variar de um pensador para outro, mas, em geral, correspondem a três estágios gerais: (1) estágio da magia, da superstição, do totemismo e do politeísmo simples; (2) estágio do monoteísmo e da religião organizada; e, finalmente, (3) estágio da ciência e do pensamento científico.
Tais antropólogos acreditavam que todos os seres humanos partilham de uma mesma unidade psíquica e que as descobertas científicas e inovações tecnológicas ocorrem em todas as culturas quando a cultura em questão atinge determinados estágios de desenvolvimento. Esses pensadores adotaram uma abordagem característica de fé no progresso da Europa de então.
À medida que o conhecimento se expandiu, todavia, essa perspectiva simplista passou a ser desafiada – complexos sistemas econômicos e mesmo jurídicos foram encontrados em culturas que nem sequer praticavam o direito escrito.
Muitos dos que seguiam o animismo nem sempre pensaram que o próprio objeto era, em si mesmo, espírito, mas que, em vez disso, estava “preenchido” pelo espírito que vem do alto. O hinduísmo, por exemplo, é incorretamente considerado politeísta. Essa religião é mais precisamente descrita como um tipo de henoteísmo, em que as diversas divindades antropomorfizadas são apenas manifestações multifacetadas do único e supremo Deus que é, em Si, informal e ilimitado – mais conhecido como Brahman: o Deus que está no mundo e além dele. Mas o hinduísmo, apesar de sua longa existência, nunca “matou” seus muitos deuses em função de Brahman, algo que, segundo a perspectiva evolutiva, deveria acontecer.
O difusionismo foi uma teoria que se desenvolveu na tentativa de corrigir os erros das perspectivas evolutivas simplistas. Dentro desta escola também existem diferentes perspectivas: (1) o difusionismo heliocêntrico, que acredita que todas as culturas se originaram de um único centro; (2) a perspectiva dos círculos culturais acredita que as culturas se originaram de certo número específico de centros culturais; e, finalmente, (3) a perspectiva que afirma que toda cultura é influenciada por outras, e que este processo é arbitrário e contingente.
Os difusionistas acreditavam que um item cultural se difunde de um lugar para outro, e que foi assim que as civilizações e sociedades se formaram. Expandindo essa perspectiva, essa teoria afirma que certos itens e estruturas culturais não aparecem em todas as culturas depois que determinada cultura passou por seu caminho evolutivo, mas que, em vez disso, o item ou estrutura é produzido em um único local e depois se difunde para outras culturas.
Um exemplo seria a invenção do computador, da internet, ou do cultivo do café, que não foi algo que toda cultura, em sua evolução, viria a alcançar, mas que, em vez disso, a invenção do computador ou do cultivo do café foi algo que aconteceu em um só lugar, para só então, a partir desse lugar, difundir-se para outros. Os seres humanos as difundem por meio do comércio, da migração, da guerra ou de qualquer outro tipo de contato.

“Os difusionistas acreditavam que um item cultural se difunde de um lugar para outro, e que foi assim que as civilizações e sociedades se formaram. Expandindo essa perspectiva, essa teoria afirma que certos itens e estruturas culturais não aparecem em todas as culturas depois que determinada cultura passou por seu caminho evolutivo, mas que, em vez disso, o item ou estrutura é produzido em um único local e depois se difunde para outras culturas. “
Redes de Conhecimento
“Se a tecno-ciência pode ser descrita como sendo tão poderosa e ao mesmo tempo tão pequena, tão concentrada e ao mesmo tempo diluída, isto significa que ela tem as características de uma rede. A palavra ‘rede’ indica que os recursos estão concentrados em poucos lugares – nos nós dessa rede, que estão conectados uns aos outros por meio dos links e da malha: essas conexões transformam os recursos dispersos em uma rede que pode parecer se estender por toda parte.” (Ciência em Ação, Bruno Latour)
O antropólogo Franz Boas foi um dos pensadores mais importantes da escola difusionista. Ele desenvolveu uma perspectiva um tanto genética do processo de desenvolvimento dos traços culturais, ao observar que algumas sociedades têm uma combinação semelhante de traços. Ele afirma que a cultura não é algo a ser visto como se existisse no vácuo, mas como parte de um processo histórico único.
Nesse processo histórico, o traço é primeiro introduzido e, depois, aos poucos, sua origem vai se tornando obscura. Os processos que ocorrem dentro da cultura, difusão e modificação, são aqueles que trazem elementos estranhos e eventualmente os modificam, antes de incluí-los na própria rede de itens culturais, criando assim todo um novo contexto cultural.
Um sociólogo e antropólogo mais contemporâneo, Bruno Latour, traz uma ideia semelhante em seu livro Ciência em Ação. Assim como Boaz afirma que a origem de determinado item cultural se torna desconhecida, Latour argumenta que o que consideramos fato torna-se fato por meio do processo de competição envolvendo redes de referências até que, eventualmente, passe-se a enxergar alguma teoria como fato e a utilizá-la como tal. Com uma tal construção do pensamento científico, Latour também constrói sua geografia da ciência; ele tenta imaginar sobre como a ciência vem a se constituir. Ele não vê apenas as pessoas como atores da rede, mas também como outros objetos.
Eleanor Robson, professora de História do Oriente Médio Antigo na UCL, usa essa referência a Latour em seu livro Ancient Knowledge Networks, quando fala de “objetos não humanos” que faziam parte da rede de conhecimento da Mesopotâmia de então. Os objetos de que ela fala eram divindades e espíritos que eram invocados no período de existência dessa civilização.
No mesmo livro, Robson traz as ideias de David Livingstone, que mais uma vez se aproximam das de Boaz: “A teoria científica evidentemente não se dispersa uniformemente pelo globo a partir de seu ponto de origem. Tudo isso demonstra que o sentido das teorias científicas não é estável, mas móvel e varia de lugar para lugar. E esse significado toma forma em resposta às forças espaciais em todas as escalas de análise – da geografia macropolítica das regiões nacionais à geografia microssocial das culturas locais.” Os seres humanos difundem e modificam todo tipo de conhecimento, e o que for considerado ciência em determinado momento. Nosso conhecimento é, ao mesmo tempo, parte do contexto cultural e da rede em que vivemos.
Para ilustrar como um item cultural é tanto difundido quanto modificado, usarei o exemplo da deusa Afrodite. Acredita-se que Afrodite tenha sido importada do Oriente Próximo, ou pelo menos seu culto foi fortemente influenciado pelos cultos do Levante. O nome de Afrodite também é geralmente aceito como de origem semítica e não indo-européia. Pausânias, o viajante grego, afirmou como os assírios foram os primeiros a cultuá-la, provavelmente como Ishtar, que, entre os sumérios, era o mesmo culto que a Innana, e os fenícios a conheciam como Astarte, e os sírios como Atargatis, ou, ainda, como Luciano a chama, “Dea Síria”.
Da Fenícia, Afrodite veio para o Chipre, a partir de onde se inicia o ciclo grego da deusa – considerava-se que ela havia nascido em Chipre ou em seus mares. Suas primeiras representações eram muito semelhantes às de Ishtar, Innana e Astarte, e, assim como elas, ela era uma deusa guerreira – em Esparta, adorava-se Afrodite Areia, o aspecto guerreiro da deusa. Com a famosa deusa síria, ela compartilhou sua associação com o animal peixe, com constelação de Peixes e com as pombas. Todas essas deusas são deusas da fertilidade, do amor e da sexualidade – enfim, de Eros.
Enquanto o culto à deusa se espalhava de um lugar para outro, cada lugar também dava à deusa uma expressão única, uma nova gênese. Ela se acomodou ao novo clima, à nova cultura, ao novo contexto em que deveria ser adorada. Afrodite finalmente chegou a Roma como Vênus, e então o Império difundiu sua influência novamente. Podemos encontrar estatuetas de Ísis-Afrodite, uma mistura de ambas as deusas greco-romana e egípcia (veja a estatueta).
“Acredita-se que Afrodite tenha sido importada do Oriente Próximo, ou pelo menos seu culto foi fortemente influenciado pelos cultos do Levante. O nome de Afrodite também é geralmente aceito como de origem semítica e não indo-européia. Pausânias, o viajante grego, afirmou como os assírios foram os primeiros a cultuá-la […], e os fenícios a conheciam como Astarte, e os sírios como Atargatis, ou, ainda, como Luciano a chama, ‘Dea Síria’. “
Afrodite continuou a estar presente na cultura ocidental mesmo depois dos tempos antigos. Os artistas renascentistas a retratavam segundo seus ideais; para os barrocos, ela era exuberante e voluptuosa. Astarte, a Afrodite fenícia, assumiu a forma de uma femme fatale burlesca no cartão-postal mostrado ao lado. Um simples item cultural, como a deusa, espalhou-se e assumiu inúmeras formas, sempre modificadas para melhor se adequar ao contexto cultural e histórico dado, mas, em sua essência, permanecendo sempre o mesmo.
É inútil discutir se Afrodite é cipriota, síria ou fenícia, ou onde ela apareceu pela primeira vez. O seu culto se espalhou dentro de certo círculo cultural e, assim como disse Boaz, a partir de certo ponto, sua primeira aparição foi esquecida.
Muitos outros itens e muitos outros saberes fizeram viagens grandiosas – os gregos antigos tinham laços estreitos com o Oriente Próximo e o Egito; a Rota da Seda não difundiu apenas o comércio, mas também a cultura e o conhecimento; a penetração de Alexandre na Índia viu surgir a arte única da tradição greco-budista; a língua turco-otomana teve uma quantidade significativa de influências persas, que, por sua vez, tiveram uma quantidade significativa de influências árabes. Os otomanos trouxeram muitas de suas palavras para as línguas balcânicas. Essas palavras geralmente têm origem persa ou árabe, mas, nas línguas eslavas do sul, elas são chamadas de “turcizmi” ou “empréstimos turcos”, pois foram trazidas pelos otomanos.
Redes de Conhecimento e Civilização
Chegamos ao estágio em que tanto o vulgarismo quanto o puritanismo aparecem na cultura – tudo é exposto e visível, mas, ao mesmo tempo, certas tendências naturais inatas aos homens são demonizadas. Pode-se ver o puritanismo cultural em ambos os lados do espectro político: um que insiste na apropriação cultural e nos estudos coloniais, e outro que tenta reconstruir a história para encontrar a cultura “pura”, livre de quaisquer influências estrangeiras. Ambos se opõem a qualquer noção universalista e a qualquer noção de difusão: os primeiros, porque acreditam que o universalismo enquanto tal foi moldado pelo pensamento cultural ocidental; e os segundos, porque acreditam que uma religião divorciada de uma identidade étnica e racial permite que tais identidades desapareçam. E, no entanto, é exatamente o contato entre os povos e culturas que deu origem às civilizações.
“Muitos outros itens e muitos outros saberes fizeram viagens grandiosas – os gregos antigos tinham laços estreitos com o Oriente Próximo e o Egito; a Rota da Seda não difundiu apenas o comércio, mas também a cultura e o conhecimento; a penetração de Alexandre na Índia viu surgir a arte única da tradição greco-budista.”
A civilização não pode acontecer isoladamente – a alta cultura da Grécia e de Roma, que o Ocidente vê como seus primeiros alicerces, não poderia ter surgido nas terras isoladas da Islândia ou do norte da Suécia; em vez disso, surgiu no Mediterrâneo, cujos povos habitantes daquela região estavam profundamente conectados entre si, o que permitiu a difusão do conhecimento e de itens culturais locais.
Mas, ao contrário dos indivíduos desalojados e desenraizados encontrados na circunstância do multiculturalismo moderno, cada um daqueles povos estava enraizado em culturas ricas com princípios e valores claros e distintos. Embora as religiões antigas não tivessem o mesmo caráter universalista que o cristianismo, o islamismo e o budismo têm, elas, por outro lado, careciam de dogmas, o que lhes tornava fácil o “intercâmbio de divindades”.
Mesmo essas religiões universalistas contemplam uma expressão específica. Li histórias de profetas islâmicos na Indonésia que envolviam tigres e macacos – e é claro que não havia tigres indonésios no Oriente Médio de então, mas é exatamente assim que certo conceito universal encontra expressão particular.

“A civilização não pode acontecer isoladamente – a alta cultura da Grécia e de Roma, que o Ocidente vê como seus primeiros alicerces, não poderia ter surgido nas terras isoladas da Islândia ou do norte da Suécia; em vez disso, surgiu no Mediterrâneo, cujos povos habitantes daquela região estavam profundamente conectados entre si, o que permitiu a difusão do conhecimento e de itens culturais locais.”
Um dogmático pode argumentar que se trata uma inovação, ou de uma “folclorização” da religião, e pode até ser que ele esteja certo, mas é também justamente assim que, com freqüência, um conceito universal e impessoal adquire morada num lugar todo pessoal. Em vez de ser um conceito estrangeiro, distante, que existe em pura abstração, torna-se algo próximo das pessoas, e algo que elas vivem em seu cotidiano, e não apenas quando visitam locais de culto.
Dessa forma, os itens culturais adquirem raízes e não podem facilmente se desenraizar, assim como Afrodite, enquanto ideal ou arquétipo, ainda existe, apesar das muitas formas particulares que assumiu ao longo do tempo e nos mais variados lugares.
Artigo publicado orignalmente por Naida no blog Orphic Inscendence. Traduzido por Adriel Teixeira.