
Mas não apenas neste aspecto o silêncio revela. Ele também pode ser a passagem da comunicação… local onde as coisas íntimas se encontram.
Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo clínico (PUCRS). Doutor em Letras (PUCRS).
Palavras o tempo todo. Eu escuto-as enquanto penso. Eu me penso ao escutar, nesse jogo sensível. As linhas advindas do lume candeeiro aceso no campo para dar caminho à noite escuta. Lá onde os animais silenciam, lá onde eu crio uma imagem própria da minha voz na parte mental. Mesmo isso também pede para silenciar.
O profeta bíblico Elias é conhecido através dos tempos como um emissário de Deus. Entre muitas das suas histórias, gostaria de dar relevo a história relacionada a morte do filho de uma mulher muito pobre na região de Tzarfat, em Israel. Elias ressuscita o filho dela ao aproximar três vezes o jovem morto junto a si e recitar uma bênção a Deus (Reis 17:17-24). As histórias de mortos que ressuscitam são muito comuns em histórias antigas por trazem uma dimensão mágica, causando para nossa mente mais materialista uma forte incredulidade. Este ponto significa simplesmente o limite da explicação possível para uma dada realidade equacionada, por não ser impeditivo do fenômeno. Por outro lado, gostaria de ressaltar aqui a ideia da narrativa bíblica em que Elias se abaixa sobre o morto três vezes de forma silenciosa. Esse sacro silêncio da morte… a cruzar repentinamente nossas vidas.
Como pode o silêncio dizer tanto na história em certas situações? Sua forma de mostrar-se inteiro sem a necessidade de sons ou palavras é muito curiosa na história da humanidade. O silêncio humano também é fonte de aproximação e intimidade. Nem sempre estar na região de intimidade conosco é simples. Para uma pessoa sem jamais ter passado por uma experiência de análise é altamente desconfortável reconhecer o silêncio a falar dentro de cada um de nós. É neste silêncio, justamente a medida de um novo desenho de realidade o qual somos aproximados.
Tão curioso é o tipo de som criado quando se silencia, tão nosso, tão único. Pode ser parte nossa de intimidade? Certamente aí a busca de si é uma das primeiras resistências a se olhar, pois nós começamos a ver um certo engessamento na corrente a fluir dentro de nós para a realidade circundante como se tivéssemos que nos acostumar a isso. Esse toque de enfrentamento da realidade para o despertar de um ser mais genuíno e conectado consigo também desperta as emoções para o que realmente é importante: o sentido específico e imprescindível da vida humana diante ao desconhecido a habitá-la.
Mas não apenas neste aspecto o silêncio revela. Ele também pode ser a passagem da comunicação… local onde as coisas íntimas se encontram. O psicanalista opera no silêncio, pois ela se antepõe à liberdade da comunicação, dando lugar a essa forma de se ser o que se é sem saber exatamente a raiz de sua origem. Esse silêncio primordial, o qual trabalha Santiago Kovadloff (2003), se bem manejado, gera um som quase inaudível, expresso por vez em uma lágrima a cair, um sono retumbante ou a sensação de desconforto. É de lá as imagens quase repletas de sons próprios, a esconderem em seus pretensos significados a parte do som ainda a ser descoberta
O poema de Paul Celan “Fala também tu” (Sprich auch du) explicita o silêncio na composição da confidência e da troca entre sensibilidades, ilustrando o quanto o imponderável destaca-se diante de toda a determinação pré-estabelecida ao sentido adquirido pelo contato:
Sprich auch du, Sprich als letzter Sag deinen Spruch. Sprich – Doch scheide das Nein nicht vom Ja. Gib deinem Spruch auch den Sinn: gib ihm den Schatten. Gib ihm Schatten genug, gib ihm so viel, als du um dich verteilt weißt zwischen Mittnacht und Mittag und Mittnacht. Blicke umher: sieh, wie’s lebendig wird rings – Beim Tode! Lebendig! Wahr spricht, wer Schatten spricht. Nun aber schrumpft der Ort, wo du stehst: Wohin jetzt, Schattenentblößter, wohin? Steige. Taste empor. Dünner wirst du, unkenntlicher, feiner! Feiner: ein Faden, an dem er herabwill, der Stern: um unten zu schwimmen, unten, wo er sich schimmern sieht: in der Dünung wandernder Worte. | Fala também tu, fala o extremo, diz tua sentença. Fala – porém não corte o não do sim. dê a tua sentença também o senso: dando-a à sombra. Dando-a sombra plena, dando-a ao muito, quanto a ti tu sabes espalhá-la entre meia-noite e meio-dia e meia-noite. Olhe ao redor: veja, como ao isso vivo tornam-se anéis – em morte! vivo! Verdade fala, quem sombra fala. Contudo agora míngua o lugar, onde tu estavas: para onde agora, o dessombrado, para onde? escala. Tateando empós. escasso tu te tornaste, indecifrável, estreito! estreito: um fio, à ela desejo-desce, a estrela: para abaixo flutuar, abaixo, ali ela retém o cintilar de si: no vagaroso da onda sempre viandante de palavras. (CELAN, 2022) |
Por que as sombras falam? Falam sem expressar seus significados. Elas falam porque um homem diante de suas negras vias de acesso é interrompido pelo estampido de uma angústia sem representação formal. Desprovido de forma, o cérebro estica a pressão sobre a amígdala, exige o que ainda não vivenciou. É ali o lugar desconhecido, não experienciado, ou reduzido a ser um sofrimento não nomeável até ser encontrado. Quantas coisas escondemos para melhor não saber acerca do destino? Explicitar este processo no poema é dar vida ao inefável, dá a arte um ar de experiência e marca sua preciosidade cotidiana. E ela silencia, pois faz das palavras apenas uma condução confidente do que pode não chegar a ser captado pelos sentidos. Os gregos chamavam de desmedida (hybris) o momento da revelação (apokalypsis), o momento tenso da encenação dramática, cujo liame de sentido aproxima o homem da realidade que ele se esforça por não querer trazer para perto de si.
Esse lugar no qual a percepção ainda não adentrou. Fuga do olhar, cujo momento de atenção sobre o que se sente é um ponto breve em nosso coração. Tão pequeno é o ponto que somente sua chegada nele deve ser realizada com um cuidado especial, para não quebrar o que deve permanecer, nem superficializar o que precisa de reconhecimento com devida proporção. O caminho da mediania (tó meson) tão ressaltado como o ponto de melhor observação da realidade, o qual promove a moderação (sophrosyne) das emoções (páthos). É que este é o passo para a mente adquirir boa consciência (nous), devendo aqui olhar não apenas o escurecimento, mas também a libertação pela augusta luz de dentro.
Não sabemos qual a vereda pessoal de cada singularidade em sua tentativa de ser si mesmo. O convite a se adentrar com cautela e, ao mesmo tempo, coragem evidencia o homem no espírito de sua plenitude. Nós não escapamos de aprender alguma coisa para além de nossas expectativas. E nela reside o silêncio de nossas faculdades mentais. Eis que o psicanalista Wilfred Ruprecht Bion (1990), traduziu as expectativas em caminhos insólitos pela concretude de sensações embrutecidas. Como tornar o caminho repleto de interpelações? Ele reconheceu o problema ao trazer a memória com tanta força quanto o presente e o futuro. Afinal, hoje sabemos o quanto memórias são tão fantasistas quanto expectativas como algo fatídico, exemplos de sínteses de proteínas subcorticais. Essa custosa plasticidade cerebral, cujo trabalho é maior, mas os resultados também o são. Para essa síntese a pergunta básica pode ser um simples “será que…?”, parte dessa nova disciplina no socorro da mente em busca de treinamento. Aliás, lembrar do futuro é tão envolvente quanto brincar: “A visão de Panksepp era de que os valores afetivos associados e algumas qualidades perceptivas são um vestígio de suas origens nos afetos sensoriais” (SOLMS, 2024, p. 279). Tal é a riqueza do afeto a parte da mente que sempre se parece consciente aos nossos olhos, porém, a consciência mesma aparece como o maior dos paradigmas entre pontos de atenção e heterodeposições do cobertor de Markov. Eis então não apenas memória e desejo se evitam, como também se interpretam na busca de uma mutualidade talvez cega…, talvez ingênua da parte da natureza e dos domínios do espírito. Esse grande abismo, cuja exigência nos faz buscar por entre os interstícios do que realmente conseguimos ser
Referências:
BÍBLIA hebraica. Tradução David Gorodovits, Jairo Fridlin. São Paulo: Editora Sefer, 2016.
BION, Wilfred Ruprecht. (1979) Notas sobre memória e desejo. In: BARROS, Elias Mallet da Rocha (Org.). Melanie Klein Hoje, Volume 2. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
CELAN, Paul. Poemas. Tradução de Piero Eyben. ZUNÁI – Revista de poesia & debates. São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.revistazunai.com/traducoes/paul_celan1.htm. Acesso em: 21 jul. 2022.
KOVADLOFF, Santiago. O silêncio primordial. Trad. Eric Nepomuceno, Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.
SOLMS, Mark. A Fonte Oculta: uma jornada até a origem da consciência. Tradução de Rafael Falasco. São Paulo: Martins Fontes, 2024.
Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).
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