
Pois a língua para a qual vocês traduziram não era a da fala cotidiana nem a da literatura alemã da década de 1920. Vocês almejavam um alemão que, extraindo sustento de tendências anteriores, estava potencialmente presente na língua, e foi justamente esse utopismo que tornou sua tradução tão emocionante e estimulante.
Gershom Scholem
Filósofo e professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer
Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]
Meu Caro Martin Buber, como um tradicional siyyum[1] judaico marcando a conclusão de um ciclo de estudos, nos reunimos hoje em sua casa para celebrar a notável ocasião da conclusão de sua tradução da Bíblia para o alemão. Ela nos proporciona uma oportunidade significativa de relembrar este seu trabalho, sua intenção e suas realizações. Alguns de nós testemunhamos e acompanhamos o desenvolvimento desta obra desde o seu início e podemos muito bem compreender o sentimento de satisfação que deve acompanhar sua conclusão.
Você é um homem que sempre dedicou grande perseverança e resistência às suas tarefas. Você dedicou mais de cinquenta anos à conclusão de sua obra hassídica, a qual o acompanhou durante a maior parte de sua vida. E, se não me engano, trinta e cinco anos já se passaram desde o recebimento do primeiro volume da tradução feita por você e Franz Rosenzweig. Não sei exatamente as circunstâncias que, em 1924 ou 1925, o levaram a decidir iniciar este projeto junto com Rosenzweig. Eu já estava na Palestina na época. Acredito ter sido — como às vezes acontece — um impulso providencial, o tipo de pura coincidência, nunca inteira a um ente acidental, pois um jovem editor, Lambert Schneider, tenha vindo até você e dito o quanto gostaria que você fizesse uma tradução da Bíblia. Quando você decidiu empreender este projeto e obteve a colaboração de Franz Rosenzweig, provavelmente não esperava a ocupação dessa tarefa por pouco mais de alguns anos. E, no entanto, como se viu, por mais de uma geração — com algumas interrupções — você dedicou a ela grande parte de sua energia e, eu acrescentaria, de seus poderes criativos. Deve ter sido um desafio para você lidar com um texto que, como as Sagradas Escrituras, exige mais do que o esforço do artista e a precisão do filólogo, especialmente de pessoas que, como Rosenzweig e você, abordaram este texto de um ponto de vista espiritual definido e se sentiram interessadas por ele. E assim você colocou muito de si mesmo nesta obra, mesmo quando só conseguia expressá-lo por meio da tradução mais fiel.
Quando recebi o volume do Gênesis, ou melhor, o livro chamado “No Princípio”[2], escrevi-lhe uma longa carta na qual expus todos os tipos de considerações. Não me lembro exatamente o que escrevi, mas ainda tenho sua resposta, na qual você disse ter encontrado em minha carta a única crítica séria que havia recebido até então. Desde então, sua obra fez mais do que passar pelo crisol da crítica. Ela se estabeleceu como uma realização histórica e provou ser um tipo especial de Gastgeschenk[3]. Mas falarei mais sobre isso depois. Você mesmo foi o mais severo, teimoso e determinado crítico de sua própria obra, o artista, mestre da língua e homo religiosus, cuja luta constantepela precisão e riqueza de expressão satisfariam sua intenção.
Se eu considerar o que, de fato, você e Rosenzweig poderiam ter pretendido principalmente com este projeto, sou tentado a dizer algo acerca de um apelo ao leitor: vá e aprenda hebraico! Pois sua tradução não é de forma alguma uma tentativa de elevar a Bíblia, por meio da língua alemã, a um nível de clara compreensão, além de todas as dificuldades. Em vez disso, você teve um cuidado especial para não tornar a Bíblia mais simples do que ela é. O que é claro permanece claro, o que é difícil permanece difícil e o que é incompreensível permanece incompreensível. Você não engana o leitor e não faz concessões. O leitor é constantemente remetido à sua própria reflexão e deve se perguntar — exatamente como você pretendia — o que aqui busca expressão. Você não suavizou nada, nem facilitou as coisas. Muito pelo contrário: você tinha um senso especial para os obstáculos e dificuldades escondidos até mesmo no fluxo aparentemente descomplicado da prosa ou da poesia. Eu quase disse: você tornou o texto mais áspero para que as palavras afetassem o leitor com muito mais imediatismo. O método que você achou útil foi buscar a máxima literalidade, uma literalidade a qual às vezes parecia ir além dos limites. Você tinha uma concepção definida da estrutura grosseira da língua hebraica e procurou expressá-la em sua tradução. Sem palavras de preenchimento, sem transições não existentes em hebraico. Sem brincar com o sublime, mas deixando-o em sua própria grandeza bruta.
E há algo mais. Não sei se você percebeu na época qual seria o efeito do seu método em toda a sua severidade. Mas acredito ter encontrado a palavra certa para isso em seus escritos mais recentes. Há alguns dias, li suas breves, porém, significativas, reflexões filosóficas sobre o significado da “Palavra Falada”, que você escreveu em 1960 como um resumo autêntico do seu pensamento em termos de linguagem (Sprachdenken). Percebi o quanto importava para você a palavra falada em sua tradução. Você não estava interessado em traduzir a Bíblia como literatura; não era a qualidade literária que importava para você, não o que o leitor pudesse captar com os olhos, mas o reino da palavra viva e falada. É uma característica única da sua tradução ela usar todos os meios para forçar o leitor a ler o texto em voz alta. Por sua sintaxe e escolha de palavras, e ainda mais por sua separação das partes das frases em “unidades respiratórias”, ele o força, tanto quanto um texto escrito pode, a lê-lo em voz alta. As frases são impressas de forma a dividi-las em linhas de acordo com o ciclo respiratório natural. Assim, em seu trabalho, você forneceu uma das ilustrações mais significativas para a noção de estrutura no discurso literário, que naqueles dias, quando você e Rosenzweig iniciaram sua tarefa, estava se tornando conhecida como colorometria. A palavra bíblica como palavra falada, recitativa, esteve sempre diante de seus olhos — ou melhor, diante de seus ouvidos — e nisso nenhum tradutor jamais o superou. Essa fidelidade discreta ao original traz consigo outra bênção. Pois sua tradução não é meramente uma tradução; sem acrescentar uma palavra de explicação per se, é também um comentário. Repetidamente, quando nos deparamos com trechos difíceis da Bíblia, muitos de nós nos perguntamos: o que Buber tem a dizer sobre isso? Não muito diferente de nos perguntarmos: o que Rashi diz? Essa incorporação de comentários, mesmo na mais estrita literalidade da própria tradução, parece-me uma das maiores conquistas do seu trabalho.
A longa interrupção seguida à publicação da maior parte da sua tradução por Lambert Schneider e Schocken deu-lhe a oportunidade de retrabalhá-la nos últimos anos para a nova edição definitiva e completa; você a harmonizou com o novo sentido da linguagem, bem como com o conhecimento exegético da sua maturidade. Não comparei essas duas versões do começo ao fim, mas li o suficiente delas para arriscar a seguinte observação: se eu tivesse que caracterizar a diferença entre as duas versões[4], a antiga e a nova, eu falaria — se me permitem o termo — da extraordinária urbanidade da versão posterior.
Isso quer dizer é o seguinte: a primeira versão, em toda a sua grandeza, contém também um elemento de fanatismo. Esse fanatismo, parecia-nos, era inseparável do seu esforço. Visava levar as palavras ao seu limite, extraindo — quase disse cinzelando — da linguagem um extremo, sim, um excesso de dureza e precisão. Nem sempre foi fácil recuperar a apresentação melódica dos grandes textos, o negro da linguagem. E, no entanto, esse era exatamente o objetivo que você estabeleceu para o leitor. Embora, como você sabe, eu não tenha nada contra fanáticos, certamente não contra os da linguagem, a distinta urbanidade da sua nova versão me parece a maior virtude. Sem abrir mão do propósito e do método da sua tradução, você alcançou algo ao mesmo tempo muito envolvente e agradável. Agora é possível ler muitas das frases sem sentir ansiedade; a precisão não foi sacrificada, mas há sinais de uma espécie de recuo para uma forma mais civilizada e medida de falar, da palavra falada. Indica uma maestria que não precisa mais de extravagância, mas é capaz de expressar seu ponto de vista mesmo com discrição. As palavras do discurso bíblico não mais se encontram naquele estado de tensão com seus melos[5] às vezes sentidos na tradução anterior. É uma dádiva maravilhosa que você tenha conseguido concluir uma obra de tamanha maturidade, de tamanha sabedoria exegética e fidelidade linguística.
Finalmente, há uma última consideração a determinar o caráter especial de sua tradução em ambas as versões. É um dos grandes paradoxos deste empreendimento que, em uma tradução, pois, na análise final, apresenta a Bíblia como a palavra de Deus, o nome de Deus como tal não apareça. Ele é substituído pelo uso enfático e proeminente de Eu, Tu e Ele. Somente por meio desses pronomes podemos apreender Deus com grande clareza, embora apenas como mediania, nos convém. Esta não é a menos significativa das numerosas e ousadas inovações da tradução. Ela se baseia na convicção de um livro que fala acerca do governo de Deus na criação e na história, o nome de Deus, o qual estava disponível aos autores antigos, precisa aparecer apenas indiretamente. Dessa forma, você encontrou um compromisso criativo entre o tradicional temor judaico da proibição de pronunciar do nome de Deus e a obrigação de tornar a palavra bíblica legível, ou seja, audível. Aqui está minha apreciação e expressão de gratidão a você pelo seu trabalho. Você não poupou esforços para estudar comentários e supercomentários, dicionários de alemão e hebraico, filólogos bons e ruins. Em sua escolha final de palavras, você se posicionou sem usar o meio da tradução para exercer a crítica. E assim, podemos expressar a você nossos agradecimentos e felicitações pela conclusão do seu trabalho.
E, no entanto, não posso encerrar sem dizer uma palavra sobre o contexto histórico do seu trabalho, que deve permanecer uma questão muito preocupante. Quando você e Rosenzweig começaram este empreendimento, havia um judaísmo alemão; seu trabalho pretendia ter uma influência vital sobre eles, despertá-los e conduzi-los ao original. Havia também uma língua alemã na qual vocês poderiam encontrar um elo com grandes tradições e conquistas, e com desenvolvimentos significativos desta língua. Vocês mesmos poderiam esperar elevar esta língua a um novo patamar com seu trabalho. Havia um elemento utópico em seu esforço. Pois a língua para a qual vocês traduziram não era a da fala cotidiana nem a da literatura alemã da década de 1920. Vocês almejavam um alemão que, extraindo sustento de tendências anteriores, estava potencialmente presente na língua, e foi justamente esse utopismo que tornou sua tradução tão emocionante e estimulante. Agora, quer vocês tenham pretendido isso conscientemente ou não, sua tradução — que veio da associação de um sionista e um não sionista — foi uma espécie de Gastgeschenk que os judeus alemães deram ao povo alemão, um ato simbólico de gratidão na partida. E que Gastgeschenk dos judeus para a Alemanha poderia ser tão historicamente significativo quanto uma tradução da Bíblia? Mas os acontecimentos tomaram um curso diferente. Temo (ou espero?) que provoque sua contradição e, no entanto, não posso deixar de perguntar: a quem se destina esta tradução agora e a quem ela influenciará? Vista historicamente, não é mais uma Gastgeschenk dos judeus para os alemães, mas sim — e não me é fácil dizer isso — a lápide de um relacionamento extinto em horror indizível. Os judeus para quem você traduziu não existem mais.
Seus filhos, que escaparam desse horror, não mais lerão alemão. A própria língua alemã mudou profundamente nesta geração, como sabem todos que nos últimos anos tiveram contato com a nova língua alemã. E não se desenvolveu na direção daquela utopia linguística da qual seu esforço é tanto testemunho impressionante. O contraste entre a língua comum de 1925 e sua tradução não diminuiu nos últimos trinta e cinco anos; ele se tornou maior.
Quanto ao que os alemães farão com a sua tradução, quem pode se aventurar a dizer? Pois aconteceu mais aos alemães do que Hölderlin[6] previu quando disse:
Não é ruim que certas coisas se percam,
e o som vivo do discurso desapareça.
(und nicht Übel ist, wenn einiges
verloren gehet, und von der Rede
verhallet der lebendige Laut.)[7]
Para muitos de nós, o som vivo que você tentou evocar na língua alemã desapareceu. Será que alguém o encontrará para retomá-lo?
Tradução a partir da versão inglesa de: SCHOLEM, Gershom. At the Completion of Buber’s Translation of the Bible. Translation by Michael A. Meyer. In: The Messianic Idea in Judaism and Other Essays on Jewish Spirituality. New York: Schocken Books, 1971, pp. 314-319.
[1] Siyyum é o ciclo de um ano de leitura dos 54 capítulos da Torá, o qual é comemorado com a festa do Simcha Torá (N. do T.).
[2] Bereshit no original em hebraico (N. do T.).
[3] Tradução do alemão “Presente do anfitrião” (N. do T.).
[4] Scholem faz referência aqui a versão de Lutero comparada a versão de Buber (N. do T.).
[5] Scholem utiliza o termo grego “melos” o qual denota erudição de sua parte ao se referir a parte tanto “melódica” quanto a parte de “ligação” dos termos bíblicos (N. do T.).
[6] Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770 — 1843) filósofo, poeta e romancista alemão, conhecido por ser grande divulgador do movimento da literatura romântica em suas obras (N. do T.).
[7] Mantido em alemão no original, mas aqui por nós traduzido: “(e não há nada de errado, se um / deixar de lado, e da rede / deixar de lado a vida.)” (N. do T.).
Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).
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