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“A Imagem de Deus” segundo o Rabino Haim Voloziner

O coração é, dentro do corpo, a pedra fundamental do Templo celestial. E a recomendação dos doutores talmúdicos de direcionar o coração em oração para o Santo dos Santos não significa apenas uma orientação, mas uma identificação ou uma intenção de identificação.

Emmanuel Levinas

Filósofo francês de origem lituana. Professor da Sorbonne.

Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer

Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected]

Para Herman Heering, Professor de

Teologia na Universidade de Leiden

  1. Quem é o Rabino Haim Voloziner?

O Rabino Haim Voloziner — ou Rabino Haim de Voloziner (1759-1821) — foi discípulo e admirador do famoso Gaon de Vilna. A cidade de Voloziner, à qual seu nome se refere, está localizada na Lituânia. Foi lá que o Rabino Haim fundou uma yeshivá[1] em 1802, que exerceu considerável influência na vida do judaísmo do Leste Europeu, especialmente nas chamadas regiões lituanas. Ela determinou um estilo particular de estudo que inspiraria yeshivot em todo o mundo até hoje.

O Rabino Eliyahu, Gaon de Vilna (1720-1797), professor do Rabino Haim Voloziner, foi um dos últimos grandes talmudistas de gênio. Através de sua personalidade forte, pela amplitude e precisão de seu conhecimento talmúdico e cabalístico, através da originalidade e profundidade de sua interpretação, ele marcou tanto a ciência rabínica quanto a própria vida dos judeus de seu tempo. Deixou sua marca, em certo sentido, até nossos tempos. Ele desempenhou, entre outras coisas, um papel de liderança na resistência de um grande segmento do judaísmo à expansão do hassidismo[2]. O Gaon de Vilna acreditava que esse movimento popular, exigindo mais fervor do que conhecimento, negava à ciência e à dialética do Talmude seu lugar primordial na vida religiosa judaica e que, ao agrupar comunidades em torno de figuras espirituais com poder carismático — os tsadikim[3] ou “rabinos milagrosos” que não recusavam a adoração dos fiéis — alterava a verdadeira relação entre discípulo e mestre e minava os princípios essenciais do monoteísmo judaico. O Gaon era a alma e o líder desses oponentes, esses mitnagdim[4], como continuam a ser chamados hoje, onde os antagonismos entre eles e os hassidim diminuíram. Os mitnagdim desconfiavam do misticismo sentimental da nova doutrina. O estudo talmúdico, cuja primazia espiritual afirmavam, não se reduzia para eles a qualquer aquisição de conhecimento: era a própria vida da Torá, o princípio da criação, o objeto da vida contemplativa e a participação na vida mais elevada. A fundação de uma yeshivá em Volozin pelo Rabino Haim Voloziner significou uma confirmação prática dessa primazia.

Mas o Rabino Haim, embora combatesse os excessos do movimento hassídico, tinha uma atitude menos intransigente em relação a ele do que o Gaon. As portas da yeshivá não estavam fechadas para aqueles entre os hassídicos que buscavam entrar. O Rabino Haim Voloziner e sua Academia de Estudos Talmúdicos Avançados desempenharam, assim, seu papel na reabilitação dos estudos talmúdicos dentro do hassidismo e, de modo geral, contribuíram para garantir que esse movimento religioso, apesar de suas novidades, não se tornasse cismático.

A influência do Rabino Haim Voloziner e dos estudos talmúdicos renovados pela yeshivá de Volozin e pelas casas de estudo que foram criadas seguindo seu exemplo talvez também se reflita na maneira como a “Era do Iluminismo”, o racionalismo da Haskalah, foi acolhida pelos judeus da Europa Oriental. A partir do século XIX, eles se viram gradualmente atraídos por estudos que não os da Torá e pelas chamadas formas ocidentais de pensamento e vida, um processo no qual, desde o século XVII, o judaísmo da Europa Ocidental entrou deliberadamente. Esse movimento em direção à chamada vida moderna estava, de fato, tomando forma entre os judeus russos, poloneses e lituanos quase simultaneamente à influência que pode ser atribuída à yeshivá de Volozin. Mas, embora sofresse a sedução do Ocidente e de sua cultura racionalista, o judaísmo oriental, em sua maior parte, permaneceu imune às tentações da assimilação pura e simples ao mundo circundante. Recusou-se a tratar o mundo espiritual de suas origens como secundário e a duvidar da grande maioria da cultura judaica tradicional, mesmo enquanto gradualmente se distanciava, em sua vida e preocupações intelectuais, das regras rígidas legadas pela tradição. Essa fidelidade à Torá como cultura e uma consciência nacional baseada nessa cultura permaneceram, dentro de um estilo de vida ocidental, a marca distintiva do judaísmo oriental. Havia, é claro, muitas razões demográficas, sociais e políticas para isso. Mas entre as causas dessa firmeza, deve-se incluir também o treinamento recebido em yeshivot como a de Volozin pelas elites desses judeus orientais. O judaísmo das academias talmúdicas — ou a memória desse judaísmo persistindo nas famílias — preservará as massas judaicas da assimilação, assim como preservou o movimento hassídico do cisma. De qualquer forma, ele teve muito a ver com isso.

Mas essa prioridade da Torá, que o Rabino Haim de Volozin afirmou por meio de seus ensinamentos, é também o tema de uma exposição teórica que ele deixou na forma de um pequeno livro póstumo publicado sob o título Nefesh Ha-Haim (“Alma da Vida”) em 1824, em Vilna. Uma obra notável, na qual a glorificação da Torá, à qual sua quarta e última parte (“Portão 4”) é mais especificamente dedicada, é apresentada como um momento essencial em uma vasta síntese da espiritualidade judaica e como sua realização máxima. Escrita durante os últimos anos de sua vida para o benefício dos estudantes de yeshivá, é uma exposição acadêmica do sistema judaico, do judaísmo como sistema. Isso é relativamente raro na chamada literatura rabínica, onde os insights doutrinários são dispersos entre estudos sobre regras de conduta, a Halakha[5], ou implícita e implicitamente entendidos como se não precisassem ser explicados entre pessoas de boa e erudita companhia. É um privilégio raro para um leitor moderno possuir um texto sobre o judaísmo como o de Nefesh Ha-Haim, que, embora apresente uma visão geral — uma das visões gerais possíveis — da espiritualidade judaica na forma de um sistema, é o trabalho de uma autoridade talmúdica especialista em Halakha que teve que escrever as tradicionais “perguntas e respostas” sobre problemas práticos.

Nas páginas seguintes, gostaríamos de apresentar um aspecto desta obra, que é uma tentativa de estabelecer o significado da humanidade do homem na economia geral da Criação. Mas a empreitada não é isenta de dificuldades.

A forma como os problemas são colocados e abordados em Nefesh Ha-Haim poderia confundir um leitor moderno desinformado. Ele ficará surpreso com a natureza dogmática e religiosa do livro e com sua maneira de comprovar suas afirmações, que poderiam passar por misticismo, algo que nosso autor rejeita, ou pelo menos, rejeita em seus excessos hassídicos. Mas este ensaio metafísico ou doutrinário, o qual pretende ser significativo para o intelecto, só o comprova por meio de referências a textos. Baseia-se exclusivamente na exegese de escrituras bíblicas, talmúdicas (halakhicas e midráshicas) e cabalísticas (o Zohar e o tratado Etz Haim do Rabino Haim Vital, que registra a Cabala de Safed, a de Luria, o famoso Ari). Nenhuma influência direta do Ocidente moderno o penetra. Nem mesmo uma alusão explícita à filosofia judaica medieval inspirada em Aristóteles e ao neoplatonismo, apesar da cosmologia gnóstica oferecida ao leitor; poucas referências a Maimônides, a quem o Gaon de Vilna contestou. Mas nada, absolutamente nada, da filosofia ou ciência da era moderna. Nada de Descartes, nada de Leibniz, nada de Spinoza, e a algumas centenas de quilômetros de Königsberg, Jena e Berlim — nenhum sinal de Kant, Fichte ou Hegel. Mas, se a prova permanece exegética do começo ao fim, trata-se de mais do que apenas uma exegese conduzida à maneira rabínica, à maneira da Midrash, que se baseia na letra do texto para buscar, além do significado óbvio, o significado oculto e alusivo. É preciso estar familiarizado com essa hermenêutica para compreender que, para a Bíblia, por exemplo, mesmo quando a exegese parece ignorar ou negligenciar o significado imediato do texto, ela está, na verdade, restaurando o espírito do todo a um significado puramente “local”, aprofundando-o e fortalecendo-o. Às vezes, separando o versículo de seu contexto e até mesmo isolando uma curta sequência de palavras, como um fragmento significativo, do restante do versículo, essa hermenêutica, que tem suas próprias regras e tradição, explora todas as dimensões da “Palavra de Deus”. Que a palavra de Deus — e até mesmo a própria linguagem — não é naturalmente religiosa? — tenha mais dimensões de significado do que sua estrutura lógica sugere pode não surpreender o leitor de hoje. Apresentada sob a aparência rabínica, essa sabedoria ultramoderna é considerada ultrapassada. No entanto, não é impossível, em fidelidade à tradição, ser convencido e edificado por uma obra baseada na autoridade de citações veneráveis. Pode-se até — pelo menos quando o método é familiar — apreciar a aplicação bem-sucedida de Nefesh Ha-Haim ​​dos métodos comprovados da exegese rabínica e admirar a arte sutil de “renovar o significado dos versos” e dos ditos citados, os famosos hiduchim[6]. Pode-se até dizer que um pouco dessa arte nos distancia do significado óbvio, mas muito dela apenas o eleva ao pensamento. No entanto, tudo isso pode surpreender e até irritar um leitor impaciente, vindo de fora e naturalmente inclinado a tomar esse virtuosismo como uma forma de distorcer os textos. No máximo, ele conceberá algum projeto histórico para identificar as influências que explicariam essas opiniões, ou esses erros, ou essas “coisas infantis”, e que ajudariam a classificá-las.

Nossa tentativa é encontrar neles uma visão da humanidade ainda significativa hoje e, de alguma forma, libertada de sua linguagem de época. Mas é justamente isso que é difícil, mesmo quando se expõe um único aspecto da obra: as ressonâncias inimitáveis ​​dessa linguagem se perderiam com a eliminação das formulações originais, que, consequentemente, não podem ser declaradas obsoletas. O nascimento latente desse pensamento a partir de sua antiga expressão religiosa, a conexão entre noções e certas palavras, permanece essencial à sua maneira para o conteúdo e a riqueza dos pensamentos. Sua evocação, que não é puramente arqueológica, é indispensável, pelo menos às vezes. Não é suficiente, mas é necessária. Mesmo o universo pré-copernicano ao qual nosso autor se refere tem um poder de sugestão simbólica não pertencente simplesmente a uma era intelectual passada. Assim, por exemplo, os “mundos”, as “forças” e as “almas” discutidos nas páginas que tentaremos apresentar conferem uma gravidade ontológica a elementos que não devem ser tomados apenas em seu sentido astronômico. Eles dizem respeito ao ser designado em seu pluralismo e nas relações que regem os termos desta pluralidade; diz respeito a várias ordens de realidade em sua coerência ou nas rupturas que as separam. Pode até mesmo referir-se à diversidade de pessoas humanas, cada uma das quais é um mundo. A maneira como as noções utilizadas se refere às Escrituras, aos textos da Bíblia, do Talmude ou à Cabala nos convida a buscar, por trás da cosmologia ultrapassada que expressam, um significado espiritual e, assim, a reunir problemas permanentes, a retornar à experiência concreta e a um questionamento vivo. A interpretação é aqui inevitável e deve se permitir certas liberdades.

2. Homem, alma do universo

A humanidade do homem é compreendida em Nefesh Ha-Haim não a partir da animalidade racional dos gregos, mas a partir da noção bíblica do homem criado à imagem de Deus. Mais precisamente, a fórmula bíblica é declarada em Gênesis 1:27: “à imagem de Elohim” e em Gênesis 5:1: “à semelhança de Elohim”. O fato de Deus ser designado pela palavra Elohim não seria irrelevante para a definição de homem, mas também significa a existência do problema da divindade de Deus e do significado absoluto que Ele pode ter por trás dos nomes que recebe. Retornaremos a este ponto importante na segunda parte de nossa apresentação.

Mas o que significa Elohim? E o que significa “ser como Elohim” ou “ser à Sua imagem”? Nefesh Ha-Haim busca nessa semelhança “a profundidade da interioridade” (1:1)[7], seu segredo, além da distinção trivial entre a exterioridade do mundo e a interioridade da psique.

O termo Elohim, que nomeia Deus nas duas passagens onde a semelhança do homem e Deus é declarada, é designaria a divindade como “domínio de todas as forças” (1:2); todas as forças particulares remontam a Elohim, mas também podem receber esse nome por extensão: como as forças motrizes ou gênios das estrelas, os gênios nacionais, as forças políticas, os poderes judiciais[8]. A idolatria consiste em esquecer o fato de que todas essas forças relativas são devidas a Elohim no sentido original do termo[9]. Ser senhor de todas as forças equivale ao poder de criar ex nihilo [a partir do nada] “inúmeros mundos e forças”. A existência da criatura, tirada do nada — inúmeros mundos e forças —, depende de sua associação com a energia criativa de Elohim: “A cada momento, toda a energia de seu ser, ordem e subsistência depende do fato de que Sua vontade derrama neles um novo poder e abundância de luz. Se essa influência cessasse, os mundos retornariam ao nada e ao caos” (1:1). O próprio modo de ser da criatura seria, portanto, o que chamamos de “criação contínua”: o ser da criatura é sua “associação” com Elohim[10].

O ser da criatura é assegurado por essa associação? É incondicional? Uma questão fundamental. Ela leva precisamente à noção de interioridade.

Mas vamos esclarecer melhor a noção de Elohim. Ela também indica uma certa hierarquia, que governa os mundos e suas forças e através da qual a energia se espalha de cima para baixo: “Cada força, da mais baixa à mais alta, é apenas a extensão da existência e da vida de Elohim, uma extensão que alcança o inferior por intermédio daquela acima dela, cuja a alma é derramada em sua interioridade. E, como sabemos pela Cabala do Ari, a luz e a interioridade de cada mundo e cada força é o ser exterior da força e do mundo acima dela. “E é nesta ordem que se ascende do mais alto ao mais alto” (3:10). Cada mundo é direcionado “de acordo com os movimentos da força do mundo acima dele, o qual o dirige como uma alma dirige seu corpo. Esta é a ordem do mais alto para o mais alto, até Aquele que é a alma de todos” (1:5). Os vários mundos são assim organizados de tal forma que cada um é o corpo ou, como Nefesh Ha-Haim expressa ainda mais, a vestimenta daquele que está acima dele e a alma ou força daquele que está abaixo. O que é mais alto é sempre interior em relação ao que é mais baixo. Altura e interioridade coincidem. Superioridade é animação e inspiração. A Alma também é chamada de raiz: os mundos superiores são as raízes das raízes dos mundos inferiores. “Para cada alma, sua raiz ou o princípio de sua vida é conformado à alma do mundo acima dela e que se torna e é assim chamada a Alma da alma. E Ele (Elohim) é o Mestre de todas as forças, pois Ele é a alma, a vida e a raiz das raízes de todas as forças. Como está escrito (Nêemias 9:6): “Tu dás vida a todos os seres.” Para ser tomado literalmente: Tu a dás a cada momento. Portanto, Ele, bendito seja Ele, é chamado de alma de todas as almas e princípio e raiz de todos os mundos” (3:10). Deus é a alma do universo.

Neste estudo preliminar, não podemos nos deter nas várias ordens em que o cabalista — cuja linguagem nosso autor, que, no entanto, é cauteloso com o misticismo hassídico, naturalmente adota — subdivide a encadernação dos mundos. Seria legítimo buscar seu código para expressar a verdade de maneira menos particular. Uma classificação simbólica dos mundos, emprestada da “visão da carruagem” — a Merkavá — do primeiro capítulo de Ezequiel, onde quatro planos são distinguidos. Observe, em particular, a do Trono celestial, acima dos animais que o carregam, mas um Trono que carrega seus portadores (1:5). Um símbolo sugestivo de uma relação que governa toda essa hierarquia: o mais elevado repousa sobre o mais baixo, mas é a vida, a alma ou a interioridade do mais baixo.

No entanto, a criatura não pode ser reduzida a essa hierarquia, cuja estrutura, derivada de fontes cabalísticas, ainda se conforma a um modelo helênico. Pensada até o fim, a interioridade não pode ser reduzida à altura. Na encadernação dos mundos, o homem ocupa um lugar excepcional. Tudo depende dele, que se encontra no mais baixo, em contato com a matéria onde seu fazer se exerce. O homem tem afinidade com todos os níveis da realidade. Ele não é considerado apenas um fundamento. As “raízes de sua alma” alcançam o ápice da hierarquia. Ele está lá onde, “acima do Trono”, as almas se enraízam, onde as extremidades das “raízes” de todo o Israel[11] se fundem (ou não) (os textos, talvez intencionalmente, não são explícitos) com os Elohim, com o rosto humano que está acima do Trono na visão de Ezequiel. As almas humanas provêm do sopro divino: não está escrito (Gênesis 2:7) que Deus “soprou nas narinas do homem o sopro da vida”? Elas têm uma relação especial com a divindade de Elohim, que certamente não é uma identificação pura e simples, mas também não é uma distinção pura.

Várias imagens e símbolos, também emprestados da tradição cabalística, expressam a natureza especial da relação entre o homem e o mundo, por um lado, e entre o homem e Elohim, por outro, sem que seja possível atribuir imediatamente as imagens utilizadas a uma única forma visual. Em toda parte, é visível uma conaturalidade entre o homem e todos os mundos, por um lado, e uma intimidade especial entre o homem e Elohim — uma intimidade na qual tanto a superioridade de Elohim sobre o homem quanto uma certa dependência de Elohim, ou, mais precisamente, a dependência de sua associação com os mundos, em relação ao homem, são afirmadas. O homem “alimenta” a presença ou a “associação” divina com os mundos (2:7). Os humanos, por outro lado, são constituídos pelos resíduos ou “amostras” de cada um desses inumeráveis ​​mundos: sua substância é uma mistura das substâncias dos mundos (1:6). Ou os mundos estão ligados aos vários órgãos do corpo humano, cada um sujeito às normas dos mandamentos da Torá[12], de modo que a soma total dos mundos constitui uma estatura humana (1:6). Uma relação também é estabelecida entre o corpo humano e o Templo de Jerusalém, que é em si uma réplica exata do Templo celestial, a ordem da santidade absoluta. O coração é, dentro do corpo, a pedra fundamental do Templo celestial. E a recomendação dos doutores talmúdicos de direcionar o coração em oração para o Santo dos Santos não significa apenas uma orientação, mas uma identificação ou uma intenção de identificação: é preciso fazer de si mesmo o próprio santuário, o lugar de toda a santidade, e o único responsável por toda a santidade. Daí, finalmente, a assimilação da carruagem divina, a Merkavá, aos homens que alcançaram essa identificação, aos Patriarcas: “Os Patriarcas são a própria Merkavá” (1:6; 3:13).

Essa relação privilegiada é de analogia; mas envolve uma eficácia essencial: as ações do homem situado no mais baixo repercutem no mais alto e asseguram ou comprometem a presença de Elohim na criatura — ou sua partida — e o grau de sua proximidade ou distância, isto é, a confirmação no ser ou a redução ao nada da miríade de mundos. Assim, o homem desempenha um papel primordial no ser da criatura. A presença de Deus, como alma, no mundo e, portanto, a coerência de todo o sistema, a presença da alma em cada mundo, tudo isso depende do homem[13].

Daí a semelhança entre Elohim e o homem: o homem é a alma do mundo, como o próprio Elohim. Na hierarquia da criatura, muitos mundos, muitos seres perfeitos e imateriais — angélicos — são superiores ao homem; no entanto, todos lhe são entregues, devido à estrutura única do ser humano, ao mesmo tempo na base da escada e enraizados “acima do Trono”. As ações, palavras e pensamentos do homem — seus três modos de ser, procedentes de suas três almas: princípio vital (nefesh), espírito (ruach) e sopro divino (neshama), tantos nós no fio que conecta o ser humano ao cume da hierarquia — atuam sobre os mundos e as forças da criatura. Conforme alguém se conforma aos mandamentos da Torá, os mundos e as forças que a superam em elevação e perfeição são fortalecidos “em seu ser, em sua luz e em sua santidade” (1:6). Ou, ao contrário, contribui-se para diminuí-los e levar essas forças e esses mundos à ruína e à destruição. O significado ético dos mandamentos religiosos: eles equivalem a dar vida e, em caso de transgressão, a levar à morte aqueles que não são seus. O ser humano não equivale a ser-para-o-outro? O homem exerce sua maestria e responsabilidade como mediador entre Elohim e os mundos, assegurando a presença ou ausência de Elohim na encarnação dos seres, que nunca cessam de precisar de sua força vital para existir[14]. E Voloziner diz expressamente (1:3): “Sua vontade, bendito seja Ele, concede ao homem o poder de liberar ou impedir (abrir e fechar) milhares de miríades de forças e mundos, em virtude de cada detalhe e plano de sua conduta e ações em todos os momentos, graças à raiz superior de suas ações, palavras e pensamentos, como se o homem também fosse o mestre das forças que comandam esses mundos.”

Maestria que é interpretada sem hesitação como responsabilidade: “Que ninguém em Israel — Deus nos livre! — não diga a si mesmo: ‘O que sou eu e o que posso realizar com minhas humildes ações no mundo?'” Que ele, ao contrário, entenda, saiba e fixe isso em sua mente: nenhum detalhe de suas ações, palavras e pensamentos se perde em nenhum momento. Todos retornam às suas raízes para operar nas alturas das alturas, nos mundos e entre as luzes puras e superiores. O homem inteligente que compreende isso de acordo com a verdade temerá e tremerá em seu coração ao pensar nas profundezas que suas más ações alcançam e na corrupção e destruição que até mesmo uma pequena falha pode causar, muito além do que Nabucodonosor e Tito (destruidores do Templo em Jerusalém) destruíram. Eles não causaram dano ou destruição nas alturas, pois não têm parte nos mundos superiores nem raízes neles. Esses mundos estão além do seu alcance, enquanto, por meio de nossos pecados, a força do poder superior diminui e se dissipa” (1:4). Nabucodonosor e Tito, meros pagãos, não têm a responsabilidade reservada, na economia da Criação, aos filhos de Israel. O mal que praticam não tem as mesmas repercussões que aquelas atribuídas às ações, palavras e pensamentos do povo santo. Nabucodonosor e Tito só podiam destruir ou profanar o Templo terreno: “Moeram o trigo já moído” (ibid.), enquanto o homem do povo santo é capaz de prejudicar a própria santidade que é precisamente o que está sempre acima. “Que o coração do povo santo trema, pois eles abrangem em sua estatura todas as forças e todos os mundos (…), pois eles são a santidade e o santuário celestial” (ibid.). “Assim, quando um homem tem um pensamento impuro em seu coração, um pensamento de luxúria, é como se ele tivesse trazido uma prostituta para o Santo dos Santos, acima” (ibid.).

A partir deste ponto, compreenderíamos a interpretação dada por Nefesf Ha-Haim a Gênesis 2:7: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem se tornou um ser vivente. “Este é o significado óbvio; Nefesh Ha-Haim o relembra primeiro citando a antiga tradução do Targum Onkelos. “Mas”, acrescenta ele, “o versículo, literalmente, não diz que o fôlego se tornou uma alma vivente no homem; diz que o homem se tornou uma alma vivente para os inumeráveis ​​mundos. (…) Assim como o comportamento e os movimentos do corpo são devidos à alma que está dentro do homem, o homem inteiro é o poder e a alma vivente dos inumeráveis ​​mundos, superiores e inferiores, que são todos guiados por ele” (1:4). E é também em um sentido literal, mais literal, mas também mais especulativo do que o significado óbvio, que nosso autor lê a antiga bênção que o israelita pronuncia após a leitura da Torá: “Plantaste em nós a vida eterna” (hayei olam), que se torna: “Plantaste em nós a vida do mundo”.

Talvez seja necessário, de passagem, enfatizar o singular “materialismo” desta teoria da inspiração. É no nível mais baixo, no homem, que todo o curso do universo é decidido. O espírito não é pensado retoricamente, na magnificência de sua elevação. É através do domínio exercido sobre sua vida corpórea, sujeita à Torá, que ele se torna efetivo nas alturas. O sistema mitsvot adquire assim um alcance cósmico e confirma seu significado ético nesta universalidade: praticar os mandamentos é sustentar o ser do mundo. Não é por essa substancialidade — por um em-si e um para-si — que o homem e sua interioridade se definem, mas pelo “para o outro”: para o que está acima de si mesmo[15], para mundos — mas também, interpretando “mundo” de forma ampla, para comunidades, pessoas, estruturas espirituais. Apesar de sua humildade como criatura, o homem as está danificando (ou preservando). Por tudo isso, ao existir, ele… É um não-narcisismo fundamental.

Essa ideia de uma interioridade não-narcisista é ética. Essa é a verdade dessa linguagem ou desse simbolismo cosmológico, e provavelmente a profunda experiência do ritualismo judaico. Por que, entre o Deus criador e dirigente do mundo, o homem está inserido, senão para subordinar uma visão puramente cosmológica do ser a uma compreensão ética? A simples ideia de consciência ou mesmo de liberdade, é ainda a possibilidade de um elemento da criatura se colocar para si, como outro Deus a quem tudo é permitido. Ao subordinar a ação de Deus sobre o mundo, levando à possibilidade da criatura menos poderosa ser para o todo da criatura, a hierarquia cosmológica — unidirecional — é quebrada, sem que nenhuma nova hierarquia seja substituída, nem o inverso dessa hierarquia, nem anarquia. O homem é interiorizado por sua responsabilidade pelo universo. O poder de Deus subordinado à responsabilidade torna-se força moral. O homem não peca contra Deus desobedecendo aos mandamentos; ele destrói mundos. Ele “agrada a Deus” obedecendo: é por isso que ele fortalece e ilumina o ser dos “mundos”. O texto do tratado talmúdico Aboth 2:1: “Conheça o que está acima de você e você não cairá em pecado”, que literalmente convida os fiéis a pensar em Deus antes de agir, é interpretado como: “Saiba o que sua ação determina como uma reviravolta nos mundos que estão acima de você”. Diante de Deus, as ações humanas contam porque envolvem outros. O temor a Deus é o temor pelos outros.

3. O Homem e o Absoluto

Mas o papel do homem diante de Deus tem ainda outro aspecto. Associado ao mundo, Deus não esgotaria seu significado religioso, pois, dessa forma, representaria apenas Deus da perspectiva humana — Deus “do nosso lado”, segundo a expressão de Nefesh Ha-Haim. Mas Deus também tem um significado no Tetragrama[16], significando aquilo que o homem não pode definir, nem postular, nem pensar, nem mesmo nomear. A criação dos mundos, de fato, não introduz nele nenhuma diferença possível de uma definição; a hierarquia a reinar, então, entre as “miríades de mundos” ou seres, a ordem da Criação, não afeta sua invariância (11:4, 5, 8 e passim). “Deus não tem lugar no mundo, é o mundo que ocorre em Deus.” Esta fórmula talmúdica é lida de forma radical: Deus, como a espacialidade do lugar, é a condição de todo ser e, além disso, em sua essência geométrica, não é afetado por aquilo que o preenche (3:2). Ele é “Deus por si só”. Nosso autor, como os cabalistas, o designa pelo termo Ein-Sof: o Infinito. Uma contradição opõe o Deus “por nós”, a quem ascendemos da hierarquia da encadernação dos mundos, e o Deus “por si só”, que nem mesmo é afetado pelas distinções entre as coisas assumidas pela Torá (3:6). A fórmula “o Santo, bendito seja Ele”, pela qual Deus é piedosamente designado une a ideia de separação incluída no termo “Santo” e a de união com os mundos implícita na noção de bênção (3:5).

O que o humano significa em relação a essa nova noção? Há uma relação aqui? Há uma noção aqui? Certamente se dirá que, precisamente falando do Infinito, ou pensando no impronunciável Tetragrama, o homem já forma uma certa ideia de Deus em Seu absoluto e Lhe dá um nome. Mas será uma ideia? Será um nome? Não estamos reduzidos a uma teologia negativa?

Estamos aqui diante de uma área que exigiria um estudo à parte. Mas as ideias que a expressam encontram-se como se estivessem no pano de fundo de toda a Nefesh Ha-Haim. Não podemos deixar de mencioná-las, ainda que muito brevemente, em sua generalidade, ainda que altamente sugestivas.

A noção de Deus “por si só”, a qual se poderia suspeitar ser de origem não bíblica, mas filosófica (e que os modernos correm o risco de confundir com o “Deus da metafísica”) é, no pensamento do nosso autor, uma noção religiosa. É em direção ao Infinito em seu absoluto — e não em direção às suas hipóstases — que a alma deve ser “orientada” na oração. Isso é constantemente afirmado (3:8, 14 e passim). Isso seria, portanto, possível apesar do fato de que os termos da oração, como discurso, se referem ao mundo ou à associação de Deus com o mundo. Uma orientação da alma se traduz, segundo Nefesh Ha-Haim, no texto das antigas bênçãos da liturgia de Israel, por possuírem a autoridade associada ao prestígio dos homens da Grande Sinagoga que supostamente as instituíram. Uma orientação refletida não no vocabulário, mas em uma singularidade sintática: essas bênçãos começam por se dirigir a Deus na segunda pessoa e terminam por designá-Lo na terceira (3:3)[17]. Segundo a hermenêutica do nosso autor, esse Deus deve ser compreendido por trás do significado óbvio da fórmula central da liturgia diária de Israel, o famoso “Ouve, ó Israel” [Shemá Israel], isto é, o versículo 6:4 de Deuteronômio (3:2, 11 e passim): o versículo afirmaria esotericamente que “o Deus declarado como nosso Deus” na primeira parte do versículo pela palavra Elohenu (isto é, unido aos mundos) é o mesmo que o Tetragrama, na segunda parte do versículo, afirma como absolutamente uno, isto é, como não afetado pela multiplicidade e hierarquia dos mundos aos quais está “associado”: que ele é uno a ponto de ser único e que, em termos absolutos, não há nada além dele (3:2). Um significado que também deve ser encontrado no versículo de Deuteronômio 4:39: “Agora, reconheça e grave em seu coração que só o Senhor é Deus, em cima nos céus e aqui na terra; não há nada além dele.” “Não há nada além d’Ele” é a tradução literal do que geralmente é traduzido como “e não há outro” (3:3, 8)[18]. O monoteísmo seria, assim, afirmado em seu vigor absoluto sem se basear na ontoteologia, apesar da semelhança entre o Um do Deuteronômio e o Um das Enéadas; unidade absoluta que não seria externa à vida religiosa judaica e da qual, além de qualquer teoria temática e de qualquer diálogo desafiador, a oração e, eminentemente, o estudo da Torá estudada por si só, a oração e a Torá “em sua total pureza” (4 e 1:26) seriam precisamente o “lugar” original. Mas precisamos esclarecer o que se entende por essa quase-referência.

O Tetragrama — um Nome impronunciável, mas um Nome — já é, como nome, infiel ao inominável Ein-Sof. Eis um texto essencial sobre este ponto (3:2): “A essência do Ein-Sof está oculta mais do que qualquer segredo, e não deve ser chamada por nenhum nome, nem mesmo o Tetragrama, nem mesmo a ponta da menor letra.” E, abrindo um parêntesis, o autor acrescenta o ponto principal: “E mesmo que o Zohar o designe pelo nome Ein-Sof (Infinito), não é um nome. Isso diz respeito apenas à maneira como o alcançamos a partir das forças que emanam Dele, quando Ele escolhe associar-se aos mundos. É por isso que é chamado Ein-Sof (sem fim) e não sem começo.” Pois, na verdade, por si só, ele não tem fim nem começo, mas nossa maneira de compreender seus poderes, nossa compreensão, é apenas um começo; não há fim para o entendimento que visa atingir os poderes que dele emanam. E, fechando o parêntesis, isto: “E o pouco que alcançamos é o que denominamos e qualificamos por nomes, sobrenomes e atributos”. Portanto, o que é infinito, propriamente falando, é o não-alcançamento, não o absoluto de Deus que nada pode determinar, mas pensar o Absoluto não alcança o Absoluto, e isto à sua maneira — que não é um nada — de perder o Absoluto. A palavra “pensar” é apropriada aqui? Esta palavra não evoca, se não a visão, pelo menos o objetivo, o qual, à sua maneira, ainda propõe um termo ou o fixa como alvo? O texto que acabamos de citar sugere um começo que não leva a um fim; ele traça uma relação sem correlato. E, no entanto, é dessa possibilidade singular da psique humana — ou talvez da fonte de toda psique — que o Ein-Sof toma emprestado seu significado para figurar no discurso, como se o homem fosse sua própria maneira de significar. O humano seria, portanto, não apenas uma criatura a quem se faz a revelação, mas aquilo por meio do qual o absoluto de Deus manifesta seu significado: essa impossibilidade humana de conceber o Infinito é também uma nova possibilidade de significação. Devemos retornar à contradição entre “Deus do nosso lado” e “Deus do seu próprio lado”.

Nessa contradição radical, nenhuma das duas noções pode ser eclipsada pela outra. Mas é, além disso, paradoxal. O Ein-Sof, indiferente à hierarquia dos mundos e seres, indiferente à natureza relativa das regras, expressa um Deus universal e onipresente. Não é Ele Aquele que adoramos interiormente, além das “diferenças” que não podem ocultar e distinguir dentro d’Ele? E, no entanto, essa “modalidade” do divino é também a completude da intenção moral que anima a vida religiosa tal como é vivida a partir do mundo e de suas diferenças, do alto e do baixo, do puro e do impuro. A espiritualização descarta as formas cuja elevação ela completa, mas que transcende como incompatíveis com o Absoluto. Essa transcendência não é ambígua? Nosso autor parece sugerir essa afinidade tanto quanto essa transcendência ao evocar a dignidade profética “incomparável” que o final do Deuteronômio reconhece em Moisés: o homem da Torá tem uma intimidade excepcional com o Ein-Sof (3:13, 14). Para Moisés, Deus é onipresente. Ele fala com ele de uma simples sarça. Diante do seu Infinito, Moisés literalmente se aniquila. Abraão também disse (Gênesis 18: 27): “Sou apenas cinza e pó.” Moisés diz (Êxodo 16:7): “O que somos nós?” (3:13) Deus então fala em primeira pessoa pela boca de Moisés (3: 13, 14). Essa intimidade para a qual a oração, em sua pureza, nos parecia o esforço de transcendência excepcional (e este é talvez o sentido original de pureza) é afirmada como a essência do estudo da Torá em sua pureza, sobre a qual Moisés teria tido domínio completo. A noção de Ein-Sof é, portanto, a completude da Torá, libertada dos mundos cujo legalismo pressupõe encadeamento e hierarquia pelo significado óbvio do texto. Tudo é puro para quem está lá? Deve-se ir a essa libertação como ao ápice da religião? Deve-se insistir na elevação acima da Lei e na ética baseada na Lei, como no próprio dinamismo da Torá? Nefesh Ha-Haim ​​conhece essa tentação de se elevar acima da ética. Ele a percebe pelo menos nos excessos do hassidismo. Mas sua crítica vai além. Um passo a não ser dado. O espiritualismo, para além de qualquer diferença que viesse da criatura, significa para o homem a indiferença do niilismo. Tudo é igual na onipresença de Deus. Tudo é divino. Tudo é permitido. Mas Deus em todos os lugares, excluindo as diferenças da criatura, também não é Deus em lugar nenhum. O pensamento do Ein-Sof, do Infinito, sozinho, o ápice da religiosidade, é também o seu abismo. O pensamento do Ein-Sof, pensado até sua conclusão lógica e levando para fora e além da Torá que o sugere (3:3), é a impossibilidade da ideia religiosa de Deus. Devemos, portanto, dar espaço à religião de Elohim, à Lei da Torá, a “Deus associado aos mundos em suas diferenças” e ao nosso acesso a Deus por meio da encadernação dos mundos (20:6, 7).

É aqui que Nefesh Ha-Haim recorre à antiga ideia da especulação cabalística: a ideia da “contração original” do Divino, a ideia de Tsimtsum. Por meio dela, a antinomia entre a onipresença de Deus e o ser da criatura fora de Deus foi resolvida na Cabala. Deus se contrai antes da Criação para abrir espaço, ao lado de si mesmo, para o outro que não ele mesmo. De forma original, Nefesh Ha-Haim entende esse Tsimtsum como um evento gnosiológico, deduzindo a noção de Tsimtsum de textos ou termos análogos que sugerem dissimulação (3:7). O Infinito se envolve em obscuridade. Ele proíbe o escrutínio, a fim de deixar espaço para a verdade da associação do Infinito e dos mundos. É aqui que residiria o significado do Deus oculto de Isaías, capítulo 14 (3:7). Não se trata de afirmar pura e simplesmente a finitude humana: Tsimtsum não é uma falha do homem, mas um acontecimento original. A finitude humana que ele determina não é uma simples impotência psicológica, é uma nova possibilidade: a possibilidade de pensar o Infinito e a Lei juntos, a própria possibilidade de sua conjunção. O homem não seria simplesmente a confissão de uma antinomia da razão. Para além da antinomia, ele significaria uma nova imagem do Absoluto.

Tradução do original em francês: LEVINAS, Emmanuel. “À l’image de Dieu”, d’après Rabbi Haïm Voloziner. In: L’au delà du verset – lectures et discours talmudiques. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002, pp. 182-200.


[1] Escola rabínica [N. do T.].

[2] Vertente mística do judaísmo ortodoxo ucraniano, galgado nos ensinamentos do rabino Israel ben Eliezer (1698 – 1760), conhecido como Baal Schem Tov [N. do T.].

[3] Do hebraico “justos” [N. do T.].

[4] Do hebraico os “opositores”, em relação à forma de alegria mística típica do hassidismo, os mitnagdim preferiam a sobriedade da ética (moussar)talmúdica e uma atitude tanto sisuda quanto austera de interpretação da Torá

[5] Referência as regras escritas contidas na literatura rabínica acerca de como se deve pensar e executar as 613 ordenações (mitzvot) de Deus para os judeus conforme a própria tradição assim prescreve [N. do T.].

[6] Refere-se a uma nova abordagem ou interpretação da halakha [N. do T.].

[7] Nossas referências ao texto do Nefesh Ha-Haim são limitadas a um algarismo romano (indicando uma das quatro principais divisões, ou “Portões” do livro), seguido por um algarismo arábico indicando o capítulo.

[8] Na exegese rabínica atual das Escrituras, Elohim sempre se refere a Deus como o princípio da justiça rigorosa, o que se opõe ao Tetragrama, que indica Deus como o princípio da misericórdia. Veremos uma perspectiva mais ampla sobre esse ponto se abrir em Nefesh Habaim.

[9] Nefesh Habaim, portanto, lê, dando a todos os seus termos um significado forte, o versículo de 1 Reis 15:39: “Quando todo o povo viu isso, prostrou-se sobre seus rostos e clamou: ‘O Senhor é Elohim, o Senhor é Elohim’: o Deus designado pelo Tetragrama é o senhor de todos os poderes” (1:2, nota).

[10] À sua maneira, Voloziner baseia sua tese em uma leitura “de apoio” dos textos. Aqui estão alguns exemplos (I, 2): “Aquele que cria as grandes luzes”. O Salmo 137:7 não coloca “criou” no presente? Em uma das orações cuja instituição é atribuída aos “homens da Grande Sinagoga”, um elo essencial e altamente autoritário na tradição, segundo a teologia rabínica, e situado na época do retorno do cativeiro babilônico, não está escrito: “Aquele que, em sua bondade, renova a cada dia a obra do Princípio?”

[11] É necessária esta convenção: a humanidade autêntica é sempre sinônimo de Israel neste texto teológico pensado e exposto. Sinônimo quem não ri de “racismo” em uma obra consultada em Escrituras, como a noção de Israel não é exclusiva em seu emprego, mais corrente, e significa uma ordem aberta para todas as adesões.

[12] Na tradição judaica, sempre houve a preocupação de relacionar numericamente o “inventário” de órgãos humanos com os mandamentos da Torá, tanto positivos quanto negativos.

[13] “Portanto”, escreve Nefesh Ha-Haim (1:3), “os mundos se comportam de acordo com as ações humanas, que, de acordo com seus movimentos, despertam movimentos na raiz de sua alma superior, aquela que está acima dos mundos e que é sua própria Alma da vida; de acordo com seus movimentos, eles se movem, e quando estes param, eles deixam de se mover.”

[14] Voloziner refere-se em particular a Isaías 54:16. O versículo, que se traduz como: “Coloquei minhas palavras em sua boca e o abriguei à sombra da minha mão, com a intenção de estabelecer os céus e reconstruir a terra”, é usado para comparar o status dos céus e da terra às palavras que saem da boca do homem, pois se diz que elas foram colocadas ali para esse propósito. Da mesma forma, o versículo de Isaías 54:13: “Todos os seus filhos serão instruídos na Torá” é retomado de acordo com a transformação que sofre no midrash do tratado Berakhot 64a (e também nos tratados Yevamoth 122b, Nazir 66 e outros): “Não leiam banaich (seus filhos), mas bonaich (seus construtores)”: aqueles instruídos na Torá são os construtores dos mundos. O versículo de Isaías 19:17: “Seus destruidores e aqueles que te destroem se afastam de ti” é lido como “Seus destruidores e aqueles que te destroem procedem de ti.”

Finalmente, aqui está uma citação característica da coleção de midrachim Ekha Rabati: “Comentando sobre o Livro das Lamentações, o Rabino Aquiba disse: “Quando Israel faz a vontade de Deus, acrescenta força ao poder do Alto, pois está escrito (Salmo 9:14): ‘Com Deus faremos coisas poderosas.’ E quando Israel não faz a vontade de Deus, é como se enfraquecesse o grande poder do Alto, pois está escrito (Deuteronômio 32:18): ‘E a Rocha que te gerou, tu enfraqueces.'” » O significado óbvio da palavra traduzida como “você o enfraquece” é “você o despreza”, mas a tradução literal é mais especulativa do que o significado óbvio.

[15] E essa maneira de colocar o homem no nível mais baixo não nos ensina que o outro como outro é sempre superior e interno?

[16] As letras iud, hey, vav, hey do alfabeto hebraico, as quais perderam seus sons atrelados a vogais, eram a forma de referir-se a Deus apreendida durante o exílio do povo judeu na Babilônia [N. do T.].

[17] Poder-se-ia até perguntar — levantamos esta questão a título rigorosamente pessoal, mas, a menos que nos contentemos com uma doxografia pura e com a busca de suas fontes, a interpretação é inevitável numa leitura que tenta apreender as implicações de um pensamento que avança apenas por meio de referências a textos — se a oração, antes de ser o dizer de algo dito, não é uma maneira de invocar, buscar ou desejar, irredutível a qualquer intencionalidade apofântica ou dóxica e a qualquer derivado ou espécie de intencionalidade; poder-se-ia perguntar se a oração não é uma maneira de buscar aquilo que não pode entrar em nenhuma relação como termo e onde, portanto, teríamos apenas que lidar com uma quase-referência. Essa quase-referência não seria, contudo, meramente implícita. Nem sua incapacidade de atingir um termo seria uma maneira de afundar na indiferença. Uma quase-referência a um Deus inominável, ela se distinguiria não apenas da intencionalidade temática e objetivante, mas até mesmo da interpelação do diálogo, porque não equivaleria de forma alguma à colocação de um termo. Poderíamos ousar perguntar se a intencionalidade já não deriva da oração, que se originaria do pensar-sobre-o-Ausente. Não conseguimos desenvolver aqui as contribuições particularmente ricas sobre a oração apresentadas no “portal”.

[18] A sutileza dessa “referência”, recusando a referência (ver nota anterior), recusando a relação, estaria assim expressa na mutação inusitada que ocorre na sintaxe da proposição, ou pelo significado subterrâneo, ultraliteral, ou ao contrário, já simbólico, que se faz ouvir por baixo do significado óbvio.

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Estevan de Negreiros Ketzer é Psicólogo clínico (PUCRS). Mestre e Doutor em Letras (PUCRS). Pesquisador nos arquivos do IMEC na França, em 2015. Assessor da Uniritter para a implementação da disciplina de Escrita Criativa ao ano de 2016. Pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. Pós-doutorando em Letras (UFMG).

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