
Autor: Peter Kalkavage
Tradução: Adriel Teixeira
O que, então, os grandes livros fazem por nós? Por um lado, eles nos apresentam ideias e maneiras de ver o mundo que são novas para nós. Eles fornecem uma refrescante distância das tendências, modas, gostos e opiniões politicamente corretas de nossa cultura atual. Grandes livros nos convidam a deixar de lado por um tempo nossa maneira de ver o mundo e entrar na perspectiva de outra pessoa – uma perspectiva muito maior, mais profunda e mais ponderada do que a nossa.
O St. John’s College e o Great Books Program (Programa de Grandes Livros) da Mercer University têm muito em comum. Ambos os programas giram em torno de um conjunto de grandes obras da civilização ocidental. Em ambos os programas, esses trabalhos são abordados por meio de discussão e não de palestras.
Em ambos, os alunos são incentivados a aprender uns com os outros – em vez de se envolverem em discussões e debates – e escrevem ensaios em vez de trabalhos de pesquisa. Além disso, em ambos os programas, os professores deixam de lado sua experiência profissional e voz de autoridade para orientar a discussão como aprendizes companheiros, ainda que mais avançados.
Meu objetivo nesta manhã é colocar diante de vocês algumas reflexões sobre os grandes livros em si. No final de minha palestra, farei algumas observações sobre por que a discussão, em vez da palestra, é a melhor maneira de ser apresentado a esses livros.
Ler grandes livros é vital para quem deseja se tornar um ser humano com educação liberal. Há uma grande necessidade hoje em dia – já há muito tempo – de programas acadêmicos dedicados à educação liberal. Tais programas estão surgindo em todo o país, muitos deles em faculdades e universidades cristãs. Mas uma tendência esmagadora em direção aos conteúdos não liberais persiste.
Muitas vezes confundimos educação com treinamento profissional, compreensão genuína com know-how, e aprendizado com sucesso em testes e resultados mensuráveis. As profissões são, com certeza, necessárias e nobres – necessárias porque atendem às demandas, necessidades e bem-estar da vida cotidiana; nobres porque inspiram vidas de sucesso, serviço e auto-sacrifício.
Mas a vida humana não é coextensiva à vida profissional. Há também as vidas que levamos à parte de nossos empregos e profissões, as vidas que levamos na medida em que somos seres humanos. É esta vida, a vida humana enquanto humana, que a educação liberal procura cultivar e aperfeiçoar. É a vida não do nosso negócio, mas do nosso ócio.
É a vida que levamos quando, livres do fardo de trabalhar para viver ou lutar pela realização profissional, somos deixados a nós mesmos, às nossas famílias e aos nossos amigos. É a vida que nos encontra, depois de um longo dia de trabalho, aninhados em uma aconchegante poltrona com um livro nas mãos, ou ouvindo algumas de nossas músicas favoritas, ou curtindo uma conversa com os amigos. É também a vida de nossa ação e atividade moral como cidadãos.
Herdamos essa ideia de educação liberal, esse cultivo das artes do ócio, dos antigos gregos. Ser liberalmente educado é ser libertado, tornado livre. O que, então, significa liberdade neste contexto? Como a educação liberal nos torna livres? Ou, mais modestamente, como ela contribui para nossa liberdade? E, voltando ao meu tema, qual é o papel dos grandes livros na busca pela verdadeira liberdade?
Começo com o benefício mais óbvio de ler grandes livros. Ao ler os livros do seu Programa de Grandes Livros, você é iniciado na tradição cultural e intelectual da civilização ocidental. Você conhece, em primeira mão, algumas das obras fundamentais que moldaram o pensamento social, político, filosófico e científico ocidental nos últimos dois mil anos ou mais.

Isso por si só é libertador, pois nos liberta da ignorância sobre nossas próprias origens. Ela nos liberta de preconceitos e equívocos adquiridos sobre grandes livros e grandes ideias do passado. Um dos preconceitos mais comuns dos quais nos libertamos é a crença de que todos esses “homens brancos mortos” não tinham nada a nos ensinar, que eles estavam de algum modo no escuro sobre as questões mais profundas da vida humana, e que, de algum modo, os transcendemos, progredimos ou evoluímos além deles.
Ler grandes livros nos liberta dessa arrogância. Liberta-nos da suposição de que sabemos mais do que os grandes autores do passado simplesmente porque viemos a existir mais tarde na história humana, e de que vivemos – assim pensamos – em tempos mais iluminados.
Em vez de confiar em resumos da tradição ocidental derivados de fontes secundárias e palestras – ou, o que é pior, de ataques a essa tradição provenientes de alguma perspectiva ideológica pós-moderna – você, no Programa de Grandes Livros, está lendo os próprios grandes autores.
Você está fazendo um esforço para descobrir por si mesmo o que esses autores queriam dizer antes de formar um juízo sobre a verdade, falsidade ou relevância do que eles disseram. Os grandes autores, por mais “homens brancos” que tenham sido, estão longe de estar mortos. Nas palavras do poeta inglês Henry Vaughan, eles são “os mortos, vivos e ocupados” (To His Books).
Nesta palestra, não vou discutir como sabemos a diferença entre um grande livro e um livro simplesmente muito bom. Parto do pressuposto de que os livros do Programa de Grandes Livros são de fato ótimos. Qualquer um que tenha passado algum tempo com eles sabe que essa suposição é verdadeira.
Quem passou algum tempo lendo Homero, especialmente se o continua lendo, sabe por experiência direta que a Ilíada e a Odisseia são grandes poemas e que, ademais, são grandes reflexões poéticas sobre a própria grandeza. Parte da razão pela qual sabemos ser isso verdadeiro é que as pessoas continuam lendo esses poemas vez após vez, e de geração em geração. Essas obras parecem inesgotáveis porque constantemente se provam ser assim.
Heródoto nos diz que Homero foi o educador de toda a Grécia. Mas a grandeza de Homero vai muito além da Grécia. Seus poemas ressoam através dos tempos. E assim como a Ilíada e a Odisseia inspiraram Virgílio, cuja poesia, por sua vez, inspirou Dante, elas continuam a nos inspirar. Esses autores permanecem “vivos e ocupados”, generosamente fazendo seu trabalho de ensinar e enobrecer todos os que os leem.
Certamente, seria possível buscar os sinais manifestos de grandeza nos grandes livros tomados em si mesmos como artefatos escritos. Isso traria resultados interessantes. Mas, por ora, quero enfatizar a resposta humana aos livros em seu Programa de Grandes Livros – o efeito que eles tiveram nos leitores ao longo dos tempos e continuam a ter em nós ainda hoje.
Aristóteles nos diz que, se queremos saber o que é uma coisa, devemos olhar para o que ela faz: ser é atividade ou estar-em-ação. Se aplicarmos essa perspectiva à grandeza dos grandes livros, sua grandeza se manifestará imediatamente. Nenhum livro de outro tipo é tão ativo e gerador em seu ser; nenhum outro tipo de livro faz por nós o que os clássicos podem fazer – se assim os permitirmos.
O que, então, os grandes livros fazem por nós? Por um lado, eles nos apresentam ideias e maneiras de ver o mundo que são novas para nós. Eles fornecem uma refrescante distância das tendências, modas, gostos e opiniões politicamente corretos de nossa cultura atual.
Grandes livros nos convidam a deixar de lado por um tempo nossa maneira de ver o mundo e entrar na perspectiva de outra pessoa – uma perspectiva muito maior, mais profunda e mais ponderada do que a nossa. Esses livros são um meio poderoso pelo qual podemos reconhecer e examinar criticamente nossos juízos e preconceitos individuais, bem como os de nossa cultura atual.
Ao lermos o relato de Antígona, em Sófocles, ou da Guerra do Peloponeso, em Tucídides, encontramo-nos emitindo juízos de todos os tipos. Questionamos grandes autores à luz de nossas próprias opiniões, e assim devemos proceder. Mas, à medida que questionamos as ideias que encontramos nos grandes livros, eles também nos questionam; isto é, questionam nossas opiniões. É claro que, mais uma vez, eles só o fazem se permitirmos.

Grandes livros e autores nem sempre são professores que nos questionam como se fossem de outro mundo. Às vezes, quando habitamos imaginativamente o mundo de uma grande mente, parece que voltamos para casa. É como se estivéssemos conversando com um amigo próximo, alguém que conhece nossos corações e mentes e que nos fala com palavras que sabem como nos impactar.
Nossos poetas favoritos falam conosco dessa maneira. Eles parecem estar escrevendo apenas para nós. Grandes livros com um tom pessoal marcante – as Confissões de Santo Agostinho, ou a Divina Comédia de Dante, ou os Ensaios de Montaigne – tendem especialmente a ter esse efeito.
Há uma bela passagem de uma das cartas de Maquiavel, na qual o grande florentino fala do tipo de retorno ao lar e amizade de que estou falando. Suas palavras referem-se a grandes homens do passado, homens de ação, cujos discursos e atos aparecem nos grandes livros dos historiadores antigos. Eis o que ele diz:
Quando a noite chega, volto para casa e vou para meu escritório. Na porta, tiro minhas roupas do dia, cobertas de lama e sujeira, e coloco minhas roupas reais e cortesãs; e, vestido decentemente, entro nas antigas cortes dos homens antigos, onde, recebido por eles com amor, nutro-me do alimento que é meu e para o qual nasci. Ali, não me envergonho de lhes falar e perguntar o motivo de suas ações; e eles, em sua humanidade, me respondem. E, pelo espaço de quatro horas, não sinto tédio, esqueço todas as dores, não temo a pobreza, e a morte não me assusta.
Talvez, essa experiência que Maquiavel descreve de maneira tão comovente seja familiar à sua experiência de ler seus autores favoritos. Para nós, como para Maquiavel, um grande autor amado é como um amigo sábio e de grande alma que nos oferece um lar intelectual, hospitalidade, honestidade e nutrição.
E assim como entramos em confrontos e discussões com nossos amigos, também nossa amizade com um grande autor às vezes envolve certa quantidade de luta intelectual com suas ideias. Lutamos com um grande autor amado como se fosse um ser superior que, no entanto, está muito próximo de nós, assim como Jacó lutou com um anjo.
A amizade e intimidade com grandes autores traz à tona outra característica geral dos grandes livros: os grandes livros transcendem a época histórica em que foram escritos. Quando estamos realmente imersos em um grande livro, levando a sério que algo nele pode ser verdade, a lacuna entre a distância temporal e a diferença cultural é suprimida. O livro deixa de ser apenas um produto de sua época.
Isso é algo que nós, professores, que ensinamos por meio de grandes programas de livros, devemos guardar escrupulosamente: o tremendo potencial que tais livros têm para estar vivos no presente, em vez de confinados a um passado remoto e morto.
Quando os alunos de um seminário sobre Homero começam a proferir generalidades sobre “os gregos”, sei que algo está errado. Não conseguindo ler Homero, eles, em vez disso, o mantêm à distância, relegando-o a uma categoria histórica vaga e não examinada. Para aqueles que estão lendo Homero pela primeira vez, é muito mais importante que Homero diga hoje, no presente, o que já foi dito uma vez, no passado.
Grandes livros são libertadores para profissionais, bem como para os jovens. Eles podem até trabalhar para aprofundar a compreensão de um profissional sobre sua própria profissão – sua relação humana e compromisso com essa profissão. Grandes livros dão a médicos, advogados, empresários, cientistas e professores a oportunidade de repensar os objetivos, pressupostos e limites inevitáveis de seu profissionalismo.
Se o leitor for médico, um grande livro pode induzir à reflexão sobre o que significa ser médico, ou sobre o papel da saúde na busca da felicidade. Se o leitor for advogado, um grande livro pode suscitar profundas questões sobre a relação entre direito e moral. Se o leitor é um estadista, um grande livro pode provocar séria reflexão sobre o propósito último da política, o verdadeiro sentido da liberdade, a fragilidade das repúblicas ou a conexão entre cidadania e educação.
Além de nos iniciar nas ideias e tradições fundamentais de nossa própria civilização, grandes livros também abrem nossos olhos e inspiram nosso questionamento. Se ser livre é conhecer a si mesmo, então os grandes livros contribuem muito para a nossa liberdade. Um grande livro oferece um espelho para seu leitor. É um espelho vivo que volta a olhar para o leitor com um olhar que lhe pergunta: “Você se conhece?”
Os diálogos platônicos são um exemplo perfeito de como os grandes livros funcionam em nossa busca de autoconhecimento e liberdade. Espero que aqueles de vocês que leram um pouco de Platão, ou estão prestes a lê-lo, continuem a ler seus diálogos não incluídos no Programa Grandes Livros. Você ficará surpreso com sua riqueza e profundidade.
Nos diálogos, encontramos um filósofo chamado Sócrates, que circula constantemente por Atenas fazendo perguntas a seus concidadãos. Ele é um dos personagens mais fascinantes que conhecerá em um livro. Havendo-o conhecido uma vez, talvez vocês não consigam retirá-lo de suas mentes pelo resto de suas vidas.
A pergunta favorita de Sócrates, que ninguém consegue responder com sucesso, tem uma forma infantilmente simples: “O que é isso?” “O que é virtude?” – pergunta ele no Mênon. A pergunta simples de Sócrates obtém respostas distintas das pessoas com quem ele conversa. Mas todas essas respostas se chocam na rocha da investigação sustentada.
É conveniente descartar Sócrates como um trapaceiro que é melhor do que qualquer outro em fazer com que as pessoas se contradigam. Isso nos poupa o trabalho de levar a sério suas refutações. Mas é mais útil para o nosso aprendizado, e mais preciso, considerar Sócrates como alguém que sabe despertar as oposições que jazem adormecidas em toda opinião não examinada. Às vezes, o que ele desperta é a consciência de que uma opinião que mantemos com muita força e que achamos que criamos por conta própria é realmente a opinião de outra pessoa, da qual nos apropriamos sem pensar.
Por meio de seu herói Sócrates, Platão nos ensina que, até que reflitamos sobre nossas opiniões e as submetamos ao questionamento, somos seus escravos. É por isso que, para citar Sócrates, “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Este famoso ditado pode ser traduzido de uma forma ainda mais alarmante: “Uma vida não examinada não é vivida”.
O vínculo entre reflexão e liberdade, e entre irreflexão e escravidão, é precisamente capturado na alegoria da caverna contida na República de Platão. Aqui, Sócrates conduz o nosso pensamento não logicamente, por meio de um argumento, mas poeticamente, por meio de uma imagem. Não devemos simplesmente interpretar a imagem, mas ser atingidos por ela.
A imagem é paradoxal: ela expõe o caráter potencialmente escravizador das imagens, especialmente no âmbito da política convencional ou, como poderíamos assim chamar, do teatro político. Os cidadãos-prisioneiros da caverna são presos desde o nascimento em uma espécie de posição fetal. Suas cabeças só podem olhar para frente, para sombras em movimento projetadas na parede da caverna por projecionistas inteligentes.
Esses projecionistas encantam os prisioneiros da caverna com excitantes imitações de coisas reais. As imitações provocam o público cativo a se envolver em competição perpétua, debate e batalha por reconhecimento ou honra. Os projecionistas, devemos notar, são eles próprios prisioneiros da caverna – escravizados pela fascinação de outros seres humanos. Sendo senhores, eles também são escravos.
A imagem de Sócrates é profundamente inquietante, pois nos retrata em nossa condição de incultos. Nós somos os prisioneiros da caverna. E o que tomamos por sofisticação, sutileza, conquista, cultura e poder não passa de uma escravidão grosseira ao jogo de sombras da opinião e ao calor sedutor da logomaquia. Muito pior do que estar nessa condição sem educação é não sabermos que estamos nela.
A educação, na analogia de Sócrates, nos liberta dos grilhões da opinião não examinada. Sócrates nos diz que, para nos libertarmos de nossas amarras, devemos passar pelo que ele chama de metanoia ou conversão. A alma inteira, diz ele, deve ser convertida do que vem e vai para o que dura para sempre – do Devir mortal para o Ser imortal.
Em outras palavras, a educação genuína é mais do que apenas uma mudança no que pensamos: é também uma mudança, uma ascensão, no que amamos e do que desfrutamos. É uma transformação completa de nossas vidas. Segundo a descrição de Sócrates, essa conversão total envolve dor. À medida que subimos para a luz do sol dos seres verdadeiros e saímos da caverna das excitantes ilusões, a luz que chega machuca nossos olhos. Sofremos quando somos compelidos a deixar a falsa clareza à qual nos acostumamos.
Vale notar que a palavra grega para “opinião”, doxa, também significa “glória” ou “reputação”. A escravização à opinião é, portanto, dupla. Somos escravizados por opiniões cuja origem, consequências e valor não são examinados; e somos escravizados pelo nosso desejo de obter honra por meio dessas opiniões. Esforçamo-nos não pela sabedoria, mas por sua aparência. As refutações feitas por Sócrates sobre as mais importantes coisas atingem o cerne dessa dupla escravidão: ataca tanto a irreflexão de nossas opiniões, que são como tiranas da alma, quanto nosso orgulho igualmente tirânico.

Sócrates, sua fatal e sedutora indagação “O que é isso?”, sua refutação de seus concidadãos, os surpreendentes mitos por ele às vezes contados, seu eventual julgamento e morte – qualquer um desses tópicos poderia facilmente ocupar toda a minha palestra. Aqui, desejo apenas fazer uma analogia entre a conversão de que fala Sócrates e a leitura de grandes livros.
Grandes livros nos tiram de nossas cavernas e nos convidam a contemplar a luz do sol do pensamento genuíno. E se eles não nos levam a uma visão da luz do sol da própria verdade, pelo menos eles fornecem inspiração e orientação. Quando lidos com esse espírito de auto-investigação, grandes livros podem nos converter, não a mais um dogma irrefletido, mas a um hábito de reflexão ao longo da vida. Este é o hábito de considerar as opiniões com rigor, honestidade, cuidado e coragem.
Os diálogos de Platão fazem um excelente trabalho ao nos ajudar a adquirir esse hábito. Eles o fazem retratando seres humanos sofrendo discursivamente as consequências de suas opiniões não examinadas. Ao nos mostrar como Sócrates questiona e refuta seus interlocutores, Platão nos oferece a oportunidade de examinar nossas próprias opiniões e as razões pelas quais as sustentamos.
Mas às vezes não é um argumento que mais nos desperta. Às vezes é uma imagem, uma história, ou talvez apenas uma única frase ou palavra de um grande livro. Acabamos de testemunhar na analogia da caverna como uma imagem pode induzir a reflexão e nos ajudar a começar nossa jornada para longe do encantamento em direção ao que parece ser a luz do sol daquilo que é.
Esse aspecto poético dos diálogos de Platão sinaliza uma característica importante de todos os grandes livros. A forma como esses livros são escritos desempenha um papel decisivo em sua grandeza e em sua capacidade de libertar o leitor ao acordá-lo.
Para tomar uma imagem emprestada de Homero, os grandes livros nos falam com palavras aladas formadas com precisão. A frase de Homero refere-se à palavra falada. Mas pretendo estender a imagem do “alado” também à palavra escrita. As palavras escritas, como as faladas, têm asas quando podem voar em nossas almas e nos despertar para um ato de pensamento apaixonado e atento. As palavras dos grandes livros não nos fazem apenas pensar: elas inspiram o pensamento.

Homero é o mestre das palavras aladas. Exemplos disso são inumeráveis. Um dos meus favoritos é um símile que Homero usa em um ponto da Ilíada para descrever a raiva. No final da história, o herói Aquiles medita, com pesar, sobre sua raiva. Ele chama isso de “aquele fel de raiva que fervilha como fumaça dentro do coração de um homem e se lhe torna uma coisa muito mais doce do que o gotejamento de mel” (Ilíada 18.108-110).
Claro, isso soa ainda mais alado no original. As palavras de Homero, que em grego são maravilhosamente rítmicas, voam da página e entram em nossas almas. À medida que nos levam acima do reino da linguagem comum, também nos levam à realidade humana da raiva. O símile não é mera ornamentação: é uma percepção perfeitamente trabalhada de uma verdade sobre a experiência humana capturada na forma de uma semelhança. Aquiles sente sua raiva como amarga e doce. O fato de ele saber isso sobre si mesmo torna a raiva ainda mais ameaçadora.
Algo semelhante acontece nas peças de Shakespeare, quando um personagem – Macbeth, por exemplo – confronta e descreve sua própria escuridão anímica. A justaposição de coração e mel no símile de Homero nos faz sentir como nossa raiva é preciosa para nós, como ela realmente parece pingar, como mel, em nossos corações. Nós a saboreamos, degustamos, e não nos separamos dela para ir ao mundo, mesmo que isso possa destruir nossos amigos, nossas comunidades e nós mesmos. As palavras aladas de Homero, aqui, são precisas – e aterrorizantes. Não consigo pensar nelas sem estremecer.
Dante também é um poeta de palavras aladas. Em sua Divina Comédia, as palavras têm uma conexão óbvia com as asas. Elas são os meios pelos quais Dante revive sua jornada pelo Inferno, Purgatório e Paraíso e nos leva junto consigo.

Que leitor pode esquecer as imagens aterrorizantes e belas de Dante? Quem pode esquecer os pombinhos Paolo e Francesca, chicoteados eternamente na tempestade de sua paixão ilícita? Ou o discurso que Francesca faz sobre os sentimentos ternos que foram a causa de sua condenação? O mais impressionante de tudo, dado o meu tema, é que a ocasião para o ato adúltero foi a leitura de um livro, a história de Lancelot e Guinevere, que, na mente de Francesca, parecia enobrecer e justificar sua entrega à paixão. O caráter alado das palavras de Dante nesta parte do Inferno exerce um efeito poderoso sobre o leitor.
As imagens poéticas não apenas voam – elas mergulham. Sentimos empatia pelos amantes malditos, mesmo quando somos chamados a julgá-los e a pensar por que eles estão no inferno. As palavras aladas de Dante nos fazem sentir a tensão entre nossos desejos e nossos deveres. Não há moralização fácil aqui, nenhum juízo do tipo “Veja, eles tiveram o que mereceram!” Dante quer que acreditemos que o Inferno é obra da justiça divina. Mas ele também quer que seus leitores vejam e experimentem as complexas razões pelas quais os seres humanos se enganam, divinizam suas paixões e abusam de seu livre arbítrio – em suma, como acabamos perdendo “o bem do intelecto”. Suas palavras aladas inspiram o pensamento.
A asa é evidente não apenas em poemas e romances, mas também em tratados filosóficos e trabalhos em matemática e ciências. Bertrand Russell encontrou as asas dos Elementos de Euclides em sua belíssima exibição de proposições. Essas proposições estão lindamente ordenadas e lidam com coisas perfeitamente formadas: triângulos, círculos, razões e números. Russell, um mestre das sóbrias ciências da lógica e da matemática modernas, comparou sua leitura de Euclides pela primeira vez ao fenômeno do apaixonamento. “Eu não imaginava”, disse ele, “que havia algo tão delicioso no mundo”.
Para ler os Elementos de Euclides, é preciso trabalhar duro. Mas o pensamento aí envolvido não se restringe ao trabalho árduo de analisar ideias e resolver problemas. Inclui imaginação e, como nos recorda Russell, certa capacidade de responder à beleza.
Aristóteles nos oferece um bom exemplo de como as palavras podem ser aladas sem serem poéticas. As obras de Aristóteles são peculiares a esse respeito: são palestras transcritas em vez de tratados, de modo que, portanto, muito diferentes dos diálogos platônicos, devem-se às asas da palavra falada.
Ao lado das asas evidentes de Homero e Platão, Aristóteles pode, a princípio, parecer seco, incolor e irremediavelmente preso à terra. Mas ele se torna menos assim quando pensamos mais profundamente sobre o que ele tem a nos dizer.
Um bom exemplo do alado em Aristóteles é a definição de felicidade que encontramos no primeiro livro de sua Ética a Nicômaco. A felicidade, diz ele, é “uma atividade da alma conforme a virtude”. Essas palavras de Aristóteles voam em nossas almas e inspiram o pensamento. O termo “atividade”, a palavra mais importante no vocabulário filosófico de Aristóteles, é a coisa realmente alada aqui.
“Felicidade”, dizemos a nós mesmos, “não é aquele sentimento que temos quando nossos desejos são satisfeitos?”. Aristóteles evita esse caminho familiar. Ele prefere o caminho do engajamento ativo ou do estar-em-ato. Se deixarmos sua definição alada de felicidade voar em nossas almas, então podemos começar a questionar nossas noções familiares de felicidade. Podemos voltar a nossas vidas mais atentos a quão gratificante parece ser, e é de fato, estarmos engajados em nossa atividade favorita.
Levados pela definição de Aristóteles, podemos começar a levar a sério a ideia de que somos mais felizes e “alados” quando estamos desfrutando da atividade em que somos mais nós mesmos – quando, como dançarinos, somos o próprio ato de dançar.
Mesmo os argumentos e teorias científicas que encontramos em alguns livros reais podem ser alados. Um bom exemplo desse tipo de fala alada aparece em A Origem das Espécies de Darwin, que é um dos trabalhos científicos do seu programa. Este, o mais legível e envolvente de todos os grandes textos científicos, merece receber o qualificativo de alado.
Independente de concordarmos ou não com a teoria darwiniana, ficamos surpresos (ou deveríamos ficar) com a forma como Darwin utiliza sua impressionante riqueza de observações para construir o que ele chama de “um longo argumento” e então escrever sobre sua revolucionária teoria de modo feliz e gracioso.
Ficamos maravilhados com a forma como, começando com os fatos mais familiares da criação de plantas e animais, Darwin prossegue investigando esse “mistério dos mistérios”, como ele o chama – a origem das espécies. Ele faz isso por meio de argumentos e observações, é claro, mas também lança metáforas provocativas ao longo do caminho – metáforas como “a política da natureza” e “a face da natureza”.
A parte mais alada do livro, para mim, a parte que mais inspira meu pensamento, é o capítulo intitulado “Dificuldades na Teoria”. Aqui, Darwin reconhece francamente os enormes obstáculos que impedem a crença de que as espécies se originam da “descendência com modificação”. Ele luta para superar esses obstáculos, nunca esquecendo que a luta é necessária.
Este capítulo, e de fato o livro como um todo, nos dá a oportunidade de explorar de que modo se pode sustentar uma teoria científica na ausência de evidências diretas e experimentais – de que modo uma teoria abrangente sobre a vida, que ataca crenças arraigadas e, às vezes, parece mesmo ser contraintuitiva, luta para se mostrar persuasiva.
No início da minha palestra, prometi falar sobre por que é melhor abordar grandes livros por meio de discussões em vez de palestras. Uma resposta parcial já veio à tona. O objetivo da educação liberal é cultivar a liberdade humana inspirando, nutrindo e guiando o pensamento individual do aluno. Não é para transformar estudantes em acadêmicos, mas sim para inspirá-los a serem aprendizes autossuficientes ao longo da vida.
O solo próprio deste hábito de reflexão é a conversação. A conversação, esta espécie ameaçada pela vida moderna e, infelizmente, pela maioria dos centros de ensino superior, é um exemplo de fala com asas. Na conversa, a fala voa de um indivíduo para outro, ganhando impulso à medida que avança. Ainda que seja constituída por uma sequência de falas individuais, uma vez que a conversa começa a desenvolver vida própria.
Vital para o objetivo liberal de ajudar os jovens a se tornarem plenamente humanos, a conversa exige que seus participantes sejam amigos em vez de concorrentes – parceiros no aprendizado. Ela pode nos levar a lugares que nos são novos e despertam nossa admiração e questionamento, lugares para os quais não poderíamos voar sozinhos. Grandes livros são coisas dotadas de asas. Mas às vezes suas asas não são aparentes. Às vezes, precisamos conversar com outras pessoas para que nosso aprendizado decole.
A conversação serve aos fins do aprendizado liberal de outra maneira importante: ela estimula e refina a conversa que temos com nós mesmos. No diálogo Teeteto, Sócrates nos diz que o próprio pensamento é apenas isto: “uma conversa que a alma tem consigo mesma”. É importante para nossas vidas o modo como falamos para nós mesmos.
Muitas vezes, não falamos o suficiente para nós mesmos, ou então, quando o fazemos, dizemos justamente as coisas erradas: usamos o discurso interior para mentir para nós mesmos, para justificar em vez de admitir nossas falhas, para agitar as brasas de velhos ressentimentos em vez de perdoar e esquecer, ou para inflamar em vez de moderar nossas paixões já exageradas.
O Odisseu (Ulisses) de Homero é um herói circunspecto, se é que já houve um. Ele é um exemplo maravilhoso de como é importante falarmos a nós mesmos da maneira certa. Ulisses é muito bom em saber falar com os outros. Isso deve ter a ver com o fato de ele saber falar consigo mesmo. Na Odisseia, testemunhamos o herói multifacetado deliberando sobre se, como e quando revelar sua verdadeira identidade. Nós o vemos considerando vários cursos de ação possíveis, refletindo sobre as coisas antes de agir e usando o discurso interior para acalmar suas paixões.
Vale a pena repetir este ponto importante: conversar com outras pessoas sobre grandes livros estimula e refina a conversa que temos dentro de nós mesmos, nosso discurso interior. Ajuda-nos a aprender como deliberar inteligentemente com outros seres humanos sobre as questões mais importantes da experiência humana, como explorar alternativas às nossas próprias visões e lidar com desacordos. Ao moldar nosso discurso interior, a conversa sobre grandes livros também molda nosso caráter e nossas vidas.
Então, o que acontece em uma conversa? Pois bem, suponhamos que eu tenha lido um grande livro e me encontre com algumas ideias e perguntas dispersas e mal formuladas. Então tenho uma conversa sobre o livro. Além de ouvir as ideias e perguntas de meus colegas aprendizes, posso agora explorar as implicações de meus próprios pensamentos e reações.
Cultivando a arte de ser um ouvinte atento, torno-me um melhor ouvinte de meus próprios discursos. A conversa dá a todos os participantes a chance de se aprofundar no livro e em suas próprias ideias sobre o livro. Às vezes, ocasiona novos insights e é muito emocionante. Mas às vezes ela para, ou fica presa em um ponto mesquinho, ou se torna vítima de alguém que quer assumir o controle. Às vezes, pode degenerar em debate ou conflito de personalidades. Quando essas coisas acontecerem, não se desespere! Tudo faz parte de como, por meio da conversa, aprendemos a arte de usar nossa liberdade. Se uma conversa não tivesse a possibilidade de ir mal, também não teria a liberdade de ir bem. Não seria uma conversa.
Este último ponto me leva a uma das características mais importantes do Programa de Grandes Livros aqui na Mercer e do programa de artes liberais na St. John’s. Os professores desses programas conduzem discussões sobre livros fora de sua área de especialização. Isso é vital para uma discussão genuína e para o aprendizado liberal. O professor, aqui, orienta a discussão e se abstém de ministrar palestras. O professor ensina sendo um colega aprendiz, que não apenas orienta os alunos na discussão, principalmente por meio de perguntas, mas também atua como um exemplo de como os adultos podem transcender sua expertise profissional e continuar sua luta por autoconhecimento e sabedoria.
Deixe-me agora reunir os fios da minha conversa sobre grandes livros. Grandes livros fazem o seguinte: eles nos iniciam nos textos e ideias fundadoras de nossa civilização; eles auxiliam nosso autoconhecimento e nos ajudam a cultivar nossa liberdade, tornando-nos criticamente conscientes de alternativas às nossas opiniões e preconceitos habituais.
Grandes livros colocam nossa vida profissional adulta no contexto da vida humana como um todo e convidam à reflexão sobre os limites de nosso conhecimento profissional. As palavras aladas dos grandes livros voam em nossa alma e inspiram a imaginação, bem como o pensamento crítico sobre as questões mais profundas e importantes da vida humana; eles educam nossos sentimentos e desejos e, portanto, têm um papel poderoso a desempenhar em nossa educação moral. Em particular, eles ajudam a cultivar o gosto e a admiração pela nobreza – uma apreciação inteligente de todas as coisas grandes, belas, ricas em detalhes e inteligentemente compostas. Ler e discutir grandes livros também estimula e refina nosso discurso interior, a conversa que temos com nós mesmos. Assim, molda nosso caráter e nossas vidas.
E, finalmente, alguns grandes livros, aqueles que mais admiramos e amamos, são como amigos sempre confiáveis que sempre têm coisas sábias e maravilhosas a dizer, e com quem lutamos com prazer e proveito. Graças especialmente a esses livros, por várias horas não sentimos tédio, esquecemos todas as dores e não tememos nem a pobreza nem a morte.
Grandes livros são mais do que grandes professores, amigos e parceiros de luta livre. Eles também são grandes belezas – coisas a serem apreciadas ao longo de nossas vidas, como flores fantásticas sempre desabrochando, ou gemas resplandecentes e multifacetadas.
Em homenagem à beleza dos grandes livros, termino evocando a memória de uma das beldades mais famosas de todos os tempos. Com desculpas a Antônio e Cleópatra de Shakespeare, digo dos grandes livros o que um personagem dessa peça diz da lendária femme fatale: “A idade não os pode levar, nem os costumes envelhecem sua infinita variedade: outros livros saciam os apetites que alimentam, mas estes dão fome àqueles que mais satisfazem.”
Texto publicado originalmente como Winged Words: Reading & Discussing Great Books, no blog Imaginative Conservative