
O que faz uma obra artística ser grandiosa e bela? Em Introdução as Artes do Belo, o filósofo francês Étienne Gilson nos convida a uma reflexão sobre a natureza da arte e o que define o trabalho artístico. Ao expor sua teoria sobre a filosofia da arte, Gilson retira a reflexão sobre a arte do alto de nuvens e a põe em nova perspectiva. A arte, colocada nesta nova abordagem, torna-se um produto que brota não de uma essência pré-concebida na natureza ou na mente do artista, mas um produto contínuo e espontâneo do processo do fazer por fazer do artista.
Tiago Barreira
O que é a arte? O que faz uma obra artística ser grandiosa e bela? Duas são as maneiras possíveis de respondê-la. A primeira é pela abordagem clássica e platônica, que define a arte bela enquanto a manifestação de um ideal de Beleza atemporal e universal, transcendente a individualidades, cultura e história. A este grupo estão situados pensadores conservadores como Roger Scruton. A segunda é a abordagem moderna, que irá colocar a arte como um produto da afirmação interior e subjetividade artística do gênio de um indivíduo, povo ou cultura, mutável e não obedecendo a juízos objetivos e externos de beleza. A este grupo, presente em germe no romantismo do século XIX e manifestado por Herder e Nietzsche, aprofundar-se-ia mais ainda com o advento do modernismo e pós-modernismo do século XX.
Houve, contudo, um pensador situado no campo cristão no século XX que conseguiu realizar um equilíbrio balanceado entre as duas vertentes, contemplando tanto as virtudes do formalismo da teoria clássica quanto subjetivismo da teoria moderna da arte. É o que revela o filósofo medievalista francês, Étienne Gilson.
Em Introdução às Artes do Belo – O que é Filosofar sobre a Arte?, Gilson nos convida a uma reflexão sobre a natureza da arte e o que define o trabalho artístico. Ao apresentar uma teoria sobre a filosofia da arte, Gilson se contrapõe a teorias convencionais da estética centradas na busca de uma pureza essencial na arte.
A arte como factividade
Gilson inicia sua obra levantando a principal questão sobre o problema da arte. Como defini-la? A resposta deve ser buscada a partir da classificação dada por Aristóteles aos campos de atividade humana. Baseando-se na filosofia aristotélica, Gilson estabelece que são três as principais operações do homem: a do conhecer, do agir e fazer,
Para Gilson, estas três operações distinguem-se quanto aos tipos de objetos direcionados. As operações da ordem do conhecimento são objetos da lógica, epistemologia, gramática e todas as ciências e artes da linguagem e da expressão. As operações da ordem da ação constituem o objeto da ética e o seu domínio é o da moralidade. Já as operações da ordem fazer estão relacionadas àquilo que ele denomina como factividade, ligadas à produção e fabricação sob todas as suas formas, e constituem uma ordem distinta.
Todas as artes para Gilson, portanto, são da alçada da factividade. Só há arte onde a operação não consiste nem em conhecer nem em agir, mas em “produzir e fabricar”.
Gilson destaca que o homem desde o princípio sempre foi um ser que fabrica coisas, o homo faber, sendo a atividade de fabricação como que uma promoção do seu ato de existir. A pré-história constata a presença de objetos que não podem ser considerados obra da natureza, mas obras humanas. Gilson observa que o imenso desenvolvimento da produção industrial, sobretudo desde a invenção de máquinas que operam como ferramentas, atesta a pujança desta necessidade primitiva de fabricar e a fecundidade de que o homem é capaz. Para Gilson, o homem sempre possuiu, portanto, a necessidade espontânea de fazer alguma coisa.
Gilson recupera à palavra arte o seu sentido mais geral, isto é, aquela da expressão tradicional de Arts & Crafts (artes e ofícios), pode-se dizer que em sentido amplo os produtos da indústria, e todas as grandes obras do homem, são obras de arte. Nesse sentido, toda obra de arte produzida, incluindo aquelas feitas para fins úteis, possui algum grau de beleza.
A beleza de uma turbina e de um automóvel, Gilson prossegue, pertence à beleza das obras feitas pelo homem, mas tais produtos de arte não foram feitos em vista de sua beleza, sendo uma beleza “funcional”. Cabe às artes do belo – ou as belas-artes, como a música, poesia, literatura e pintura – esse papel. Portanto, refletir sobre as artes do belo é ter como objeto o conjunto dos domínios da factividade cujo fim próprio é produzir coisas belas, qualquer que seja o seu gênero de beleza.
O erro dos filósofos e estetas
Gilson em seguida considera que, precisamente porque a arte é fabricação, é também trabalho, esforço, labuta, cuidado técnico – coisas, em suma, que não afagam o sentimento e nem engendram qualquer paixão. Ao levar em consideração estes aspectos na avaliação de uma obra artística, a filosofia da arte termina por se distinguir fortemente da filosofia estética. Gilson ressalta que é preciso haver uma distinção “entre o ponto de vista do artista e do espectador, ouvinte ou leitor”, e não se deve confundir a filosofia das artes que produzem o belo com a “filosofia do conjunto de experiências em que contemplamos a beleza”.
Gilson nota que durante séculos, sábios, letrados e filósofos consideravam a vida de conhecimento e contemplação como diferente – e mais elevada – da vida prática. Muitos tenderam a negligenciar um pouco a classe dos artistas, que então não se distinguia da dos escravos e, mais tarde, da de simples trabalhadores manuais. Assim, o filósofo constata:
“Contrariamente a esse preconceito, o homem pode mais do que aquilo que sabe – no que, aliás, ele se assemelha à natureza, que muito produz e não sabe nada. Ainda que o saber do homem aumente consideravelmente o seu poder com a ciência e o conhecimento, as forças que este saber coloca à sua disposição não deixam de ser forças naturais.“
Também o artista, nesse sentido, se assemelha à natureza: sobretudo, ele pode muito mais do que aquilo que sabe. “Por acaso havia estetas em Lascaux? Não sem dúvida, mas pintores havia”. Um artista não precisa saber o que é arte, contanto que saiba o que, afinal, ele quer que a sua arte seja.
A arte não é imitação
Gilson em seguida nota que filósofos da estética, por ignorar a dimensão da arte do ponto de vista do fazer do artista, terminaram por criar teorias que não refletem a verdadeira natureza da arte.
Gilson observa, por exemplo, a teoria clássica do belo artístico. A definição clássica, o filósofo segue, estabelece a Beleza artística em sua essência como o esplendor da Verdade. Desenvolvendo-se o mesmo princípio, a verdade acabou por ser definida como a “natureza”, e a finalidade da arte seria a imitação desta natureza.
A doutrina da arte como imitação, segundo Gilson, é tida como a raiz funesta de uma confusão entre a beleza do conhecimento e a beleza da arte. Pois: “Quem se importa com a verdade ou a falsidade do que um poema, um romance, uma tragédia, um desenho ou um quadro nos mostra?” Com efeito, uma obra de arte não é verdadeira e nem falsa.
Portanto, a arte escapa à definição clássica de imitação da verdade e da natureza. Para Gilson, é tarefa dos filósofos combater este erro, a fim de procurar a beleza da arte em si própria, e não em coisas externas. Desde logo, trata-se de ver claramente que a beleza de uma obra escrita ou pintada se deve à ” sua unidade, integridade e perfeição, mas que essas qualidades devem ser da própria obra, e não do que ela representa”. É a integridade da obra que conta, e não do tema representado.
A arte não é inspiração
Gilson prossegue sua análise das teorias estéticas da arte. Segundo ele, se a doutrina clássica da arte como imitação da natureza é confusa, igualmente confusa é a doutrina romântica, que reduz a arte a qualquer tipo de intuição subjetiva e inspiração profética pela mente de um artista.
A teoria romântica, embora se baseie em uma noção de arte que respeite a criatividade do artista, herda as dificuldades da doutrina clássica, ao ainda conceber o valor de uma obra artística enquanto mero veículo de uma representação. No caso, ao invés dessa representação ser de coisas do mundo exterior, são de ideias subjetivas do mundo interior do artista, reduzindo-se a arte a um espelho de uma revelação interior.
A doutrina da arte-inspiração, portanto, assim como toda intepretação intelectualista da arte, concebe a fecundidade criativa da arte como análoga à invenção de uma ideia nova. Contudo, serão mesmo as ideias produtos da mente humana? Gilson crê que não, afirmando que “a mais potente imaginação criadora permanece sempre a imaginação de um homem”, e todas as imagens que produz, compõe e impõe à matéria não são originárias de sua mente, mas têm sua origem última nas sensações que os objetos já existentes nos causam.
Dita de outra forma, a maior crítica a esta mentalidade romântica está no fato de que o homem, sendo contingente no tempo, não pode jamais pôr em existência ou antever uma ideia eterna, pois não possui pleno domínio criativo sobre ela, tal como seria a criação divina, obra de um autor eterno. O homem não é o autor pleno das suas ideias, mas Deus.
A arte como produção (poiesis)
Como a obra artística então é criada se não é inspirada por um modelo ideal? Esta própria se autocria pelo próprio ato de fazer do artista. É o que Gilson expõe, de forma brilhante, na seguinte passagem:
“Cada um traz em si o gérmen donde, em alguns casos, se desenvolverá mais tarde o poder de produzir obras de arte; a criança que, aprendendo a escrever, experimenta sensivelmente em sua mão o prazer de desenhar as letras; o homem cujo punho parece inventar sozinho uma rubrica ou assinatura; o viajante que acompanha o ritmo do trem com uma canção; a criança que desenha árvores e bonecos sem sequer prestar atenção nos que estão à sua volta; o adolescente que descobre o prazer de fazer versos e que se tornará quem sabe um versificador impenitente, cuja consciência demasiado visível garante a sinceridade – qual é, nesses casos, a relação entre o que fazem e uma qualquer intuição?”
Para Gilson, portanto, é nesta produtividade primitiva do artista que se encontra o princípio de toda arte do belo, como, de resto, de todas as artes do útil, na medida em que tanto umas como outras têm o efeito de aumentar a realidade.
O fazer ou produzir, é, pois, justamente o elemento primeiro e como que a essência mesma do saber poiético, definindo a sua especificidade. Trata-se de um conhecimento em vista da produção de uma obra, não em vista de si mesmo nem tampouco para a manifestação de uma verdade.
Quando um filósofo fala sobre a beleza, Gilson afirma, raramente é sobre a beleza da arte o que tem em mente. É antes a ideia da beleza que lhe retém atenção. A tradição filosófica ocidental, Gilson prossegue, sempre se manteve fiel a esse ponto de vista, o qual reduz a arte ao conhecimento e faz da beleza produzida pelo homem uma variedade e “cópia” da verdade intuída ou imitada. Fazem do artista uma espécie de “vidente”, quando falam a seu respeito.
Contrariando essa visão, Gilson coloca a obra artística não como um produto com uma essência acabada e fechada em si mesma, antevista pelo artista, mas uma obra aberta e parte de um contínuo ato de livre autoexpressão do autor. Da arte como processo e um reflexo espontâneo da vida e existência artística, e não uma essência pré-fabricada, pronta e acabada.
O tema não importa na arte
Gilson assim considera que, pelo fato da arte ser livre, o fim justifica os meios. Nada impede que o artista coloque sua arte a serviço de uma causa moral, patriótica ou religiosa, ou até mesmo a serviço da representação de temas naturalistas, como uma natureza-morta. Mas a arte que utiliza para esses diversos fins, a “serviço” dessas causas e temas, permanece essencialmente estrangeira a todos eles. Pois:
“Escolhendo livremente o seu fim o artista também é livre para escolher os seus meios, cuja justificação é total se lhe permitirem atingi-lo. Em arte, o bom é o bem-sucedido. Porque a arte consiste em incorporar uma forma em certa matéria com o objetivo de produzir o belo. “
Tome-se por exemplo uma obra de arte moderna, tão criticada pelos estetas clássicos. Para Gilson, a arte moderna abstrata é o que contém o processo artístico no seu modo mais pleno, pois não se encontra amarrada à representação do tema ou causa, exprimindo precisamente a decisão de praticar uma arte cuja beleza não deve nada à beleza do tema.
A escolástica cristã na modernidade
Para Gilson, esta concepção moderna da arte como produção criativa de seres belos que não existiam e não de representação ou imitação de seres que já existem, só tem sentido em uma cosmovisão cristã de criação.
O filósofo recorre ao pensamento escolástico para justificar o seu ponto. Caberia à teologia cristã, graças a Santo Tomás de Aquino, encontrar o Deus que se pode legitimamente esperar uma iniciativa criadora. Segundo Gilson: “o Ser causa seres, e, sendo Ato, os seres que causa também são atos capazes de subsistir por si, operar e, por sua vez, causar seres semelhantes a si”.
Assim, num universo criado por uma fecundidade primitiva, tudo o que é age e opera, seja segundo a sua mera natureza, seja, como o homem, segundo a sua natureza e inteligência, a qual lhe permite conceber outros seres ainda não realizados. Todas as artes “são-lhe métodos a seguir na produção de obras que acrescenta às da natureza já existente, sendo pois, as belas-artes técnicas de produzir objetos cujo fim próprio é serem belos”.
Levando isso em consideração, Gilson sustenta que o homem ocidental, portanto, não errou ao reivindicar os seus direitos de quase-criador. Ter tomado consciência da extensão do domínio aberto à livre iniciativa do artista é, pois, “um título de honra para o homem ocidental dos séculos XIX e XX”.
Os limites da liberdade artística
Entretanto, Gilson também alerta que conferir tal título ao homem ocidental como se deve não nos dispensa, porém, de frisar os seus perigos. O Existencialismo e o humanismo ateu ganham aí o seu sentido mais profundo, ao entronizar o homem como senhor supremo da realidade. Prevalece na mentalidade moderna a estetização da ética e do conhecimento, esfera pertencentes ao agir e conhecer, mas nunca ao fazer.
Gilson considera que a única ordem que o homem pode inventar como bem queira as obras da sua vontade é as artes do belo, domínio próprio da poiética. Em alusão à obra transgressora de Baudelaire, Flores do Mal, Gilson prossegue que resta aos homens cultivarem este estreito domínio da arte do belo em que, precisamente porque só produz “flores divinamente inúteis”, tudo é livre.
Em contraste, Gilson também alerta para os riscos de a arte moderna extrapolar o seu campo de atuação para o conhecimento e moral. Grandes artistas se deixaram seduzir pelo espírito da modernidade, sacrificando a sua razão e sendo “consumidos” imprudentemente pelas suas obras. Não deveria ser esse o caminho da arte. Se de um lado, Gilson segue, o mérito da modernidade foi a recusa do reducionismo do espírito a um mero objeto entre os objetos, seu maior erro foi o de fomentar a redução de todas as coisas do real ao mesmo espírito, “sacrificando o conhecimento da verdade e do bem à factividade”.
A solução estaria, como sempre, no retorno à sabedoria, que não reconhece outro primado senão o do ser, “do qual procede toda inteligibilidade, toda criatividade, e com os seres nascidos de sua fecundidade inteligente e livre, o quinhão de verdade e beleza desses seres”. Verdade, beleza e bem, embora operem em esferas distintas e independentes de conhecer, agir e fazer, a serem julgadas segundo suas próprias leis, devem harmonizar-se na unidade da alma humana de forma sábia.
Conclusão
Filósofos e estetas tentaram durante séculos definir em vão o que seria uma arte perfeita e pura, sem maculações, o que é algo impossível. A arte ideal “perfeita” é aquela que se produz dentro de um espaço-tempo concreto, e não algo que vem pronto, planejado e encomendado de um mundo puro e abstrato de ideias.
Se é verdade que nada se faz sem conhecimento, o conhecimento somente por si só também não faz nada. O próprio aristotelismo escolástico afirma que a forma necessita se atualizar e manifestar-se materialmente na existência concreta, sem a qual não passaria de mera possibilidade abstrata.
Assim, enquanto estetas enfatizam a arte enquanto seu caráter ideal e formal, enquanto um produto fechado, perfeito e acabado em si, seja esta uma imitação ou intuição genial de uma ideia, Gilson retira a reflexão sobre a arte do alto de nuvens e a põe em nova perspectiva, sob o ponto de vista material. A arte, colocada nesta nova abordagem, torna-se um produto que brota não de uma essência pré-concebida na natureza ou na mente do artista, mas um produto contínuo e espontâneo do processo do fazer por fazer do artista.
E mais. À medida em que o processo artístico se desenrola, a essência de uma arte toma forma e corpo pelas mãos do artista. É assim que grandes obras-primas foram criadas e grandes obras artísticas foram concebidas. Nada muito diferente daquilo também operado pela arte dos homens pré-históricos. Se a beleza da arte é universal, a sua universalidade provém daquilo que há de mais primordial da natureza humana, enquanto homo faber que faz e fabrica. Um fazer que é tão fundamental para o progresso da vida e existência humana quanto o ato de conhecer, infelizmente tão negligenciado ao longo de séculos por teóricos doutores do conhecimento.
É sobre isso que Gilson justamente alerta aos filósofos e cientistas de hoje, arvorados no saber: “Desse mundo de obras esquecidas, assim como das que teve a felicidade de ver nascer, o filósofo preguiçosamente se contentou com o desfrute. A arte não lhe deve nada. Ele morreu sem enriquecer a terra com o mais diminuto objeto que aumentasse a sua beleza”.
Referência
GILSON, Étienne. Introdução às Artes do Belo – O que é filosofar sobre a arte? São Paulo: Editora É Realizações, 2010. Trad. Érico Nogueira.
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