Os fisiocratas: o camponês vale mais que o ouro

No século XVIII, a França deu origem a uma das teorias econômicas mais importantes e funcionais da história, a fisiocracia. Segundo essa teoria, o único setor da economia capaz de gerar uma cadeia (cadeia de produção) não era o comércio, mas a agricultura, enquanto fonte de alimento e trabalho. A teoria fisiocrática desenvolveu o primeiro modelo macroeconômico baseado em dados empíricos, o que a torna uma precursora de qualquer metodologia econômica moderna. Hoje em dia, limitar a economia ao valor produzido pela terra seria anacrônico, mas tirar desta experiência do passado algumas boas reflexões para contrastar com a atual dependência econômica de países estrangeiros não pode ser senão um bem.

Artigo original: Liliane Jessica Tami. Tradução: Tiago Barreira

A Revolução Francesa, ao derrubar o sistema monárquico, destruiu aquele que para Adam Smith (1723 – 90) era um dos sistemas econômicos mais funcionais da história da humanidade, nomeadamente a Fisiocracia. A economia da França monarquista era baseada na natureza, ou seja, nas riquezas vindas da terra, o que garantiam a autossuficiência alimentar da nação. Um país fundado em uma economia mercantilista, que depende do comércio com outros países, não consegue se alimentar. É por isso que os camponeses se levantaram contra a Revolução Francesa (1789), na Guerra da Vendéia (1793-95), vinculados à própria terra.

Durante o reinado do rei Luís XV (1710 – 74), a França deu origem a uma das teorias econômicas mais importantes e funcionais da história da humanidade, a saber, a fisiocracia. O mercantilismo internacional, com a usura e as sociedades anônimas – hoje amplamente difundido – foi freado graças ao advento das teorias fisiocráticas de François Quesnay (1694 – 1774), Victor de Riqueti, Marquês de Mirabeau (1715 – 89) e Pierre Samuel du Pont de Nemours (1739-1817).

Os três principais teóricos da teoria fisiocrática (da esquerda para a direita): Victor de Riqueti, marquês de Mirabeau (1715 – 89), François Quesnay (1694 – 1774) e Pierre Samuel du Pont de Nemours (1739 – 1817).

Fisiocracia, do grego, significa “Poder da natureza” e se encontra no texto de Du Pont de Nemours intitulado Fisiocratie ou Constitution Naturelle Du Gouvernement le Plus Avantageux, de 1767. Segundo essa teoria, o único setor da economia capaz de gerar uma cadeia (cadeia de produção) não era o comércio, mas a agricultura, enquanto fonte de alimento e trabalho. De fato, só a agricultura é capaz de gerar riqueza real, e até o Banco Mundial reconheceu em 2008 que o crescimento do sector agrícola contribui para a redução da pobreza mais do que qualquer outro setor. Quesnay, que foi médico pessoal da Marquesa de Pompadour (1721 – 64) em Versalhes, demonstrou em seu Tableau Économique que o trabalho e a agricultura eram a base de todo progresso do Reino, de toda força e de toda virtude da sociedade. Nessa visão aristocrática da economia, em que a riqueza era garantida pela posse da terra e de seus frutos, não havia espaço para teorias mercantilistas ou usurárias.

Quesnay, que era filho de camponeses, levantou a hipótese de que a riqueza não dependia da quantidade de ouro e prata possuída, mas era gerada pela produção, ou seja, o trabalho do camponês ou artesão. De acordo com essa teoria, os comerciantes não geram riqueza, pois se limitam a transportar mercadorias de um lugar para outro, enriquecendo comprando-as mais baratas e revendendo-as a um preço mais alto. Da mesma forma, os empréstimos em dinheiro com juros não geram riqueza total, porque simplesmente a transferem dos bolsos do tomador para o credor. Esses pensadores franceses, que se autodenominavam Les Économistes, fizeram florescer a monarquia do rei Luís XV, mas desafiaram a abordagem mercantilista que dominava a reflexão econômica da época, para a qual era necessário promover o desenvolvimento de atividades comerciais entre as nações e o acúmulo de ouro.

Fisiocratie ou Constitution Naturelle Du Gouvernement le Plus Avantageux. Médico pessoal de Madame de Pompadour e membro da Academia de Ciências de Paris, François Quesnay (1694-1774) é considerado o fundador da primeira escola sistemática de economia política científica. Com seus poucos discípulos, incluindo Dupont de Nemours, Le Trosne, Le Mercier de La Rivière, Abbé Baudeau, Turgot e Mirabeau, ele estabeleceu uma doutrina econômica baseada na ideia de que somente a terra é produtora de riqueza, que a única classe produtiva é a dos agricultores e que existem leis naturais baseadas nos princípios da liberdade e da propriedade que permitem a manutenção da ordem social.

A tabela econômica de Quesnay é o primeiro modelo macroeconômico baseado em dados empíricos derivados de um estudo aprofundado do sistema econômico francês: isso torna este texto um precursor de qualquer metodologia moderna para estudar a economia e até mesmo Adam Smith deste sistema dirá que ” é talvez a aproximação mais próxima da realidade que já foi publicada sobre o tema da economia política”.

Como resultado desse estudo, Quesnay defendeu que os proprietários de terras deveriam investir pelo menos metade de sua renda na agricultura, a fim de manter o setor agrícola sempre produtivo. Ele também disse que os camponeses, o primeiro pilar da sociedade, não devem ser oprimidos com uma carga tributária excessiva, tanto direta quanto indireta, para que possam investir seu capital em tecnologias agrícolas para aumentar a produção.

Outro ponto fundamental da doutrina fisiocrática, além da desoneração tributária, era a não intromissão do Estado: o laissez-faire, que mais tarde se tornou o mantra das escolas liberais e liberais, não pretendia ser o convite à hegemonia do privado sobre o público, mas foi a simples observação de que a natureza e a agricultura, embora possa haver períodos de crise, geralmente tendem a se reequilibrar. Quem possui e pode cultivar um campo e usar o arado, de fato, pode passar por momentos de fome, mas nunca morrerá de fome. Segundo Quesnay, de fato, pode haver momentos de baixa produção, mas a terra sempre é capaz de gerar um mínimo de produtos agrícolas e alimentícios. O camponês e o aristocrata, que possui a terra na qual o camponês trabalha em troca de defesa e proteção, podem sentir falta de dinheiro, mas não miséria e fome.

Por exemplo (veja a tabela abaixo), em um ano o setor agrícola produz um valor igual a 5. A classe produtiva dos agricultores utiliza uma parte do produto (2) para pagar os trabalhadores, os lucros dos agricultores (férmiers) e repor os fatores de produção (insumos, sementes etc.) para iniciar um novo ciclo produtivo. Outra parte da produção (1) é utilizada pelos agricultores para adquirir os meios de produção dos artesãos. O setor agrícola gera, portanto, um produto líquido igual a 5-3 ou 2. Esse excedente (2) é a renda agrícola dos proprietários de terra (aristocracia). No Tableau Économique, os proprietários rurais representam a classe distributiva do sistema econômico, pois utilizam a renda agrícola (2) para comprar produtos agrícolas (1) e manufaturar (1). O artesanato e o comércio são, ao contrário, uma classe estéril. No Tableau, os artesãos obtêm um fluxo de caixa de 1+1 com a venda de seus produtos a agricultores (1) e proprietários de terras (1). No entanto, o valor da riqueza obtida (2) é integralmente reaproveitado na compra de produtos agrícolas (2), necessários à sobrevivência da família. Segundo os fisiocratas, portanto, artesãos e comerciantes não agregam novas riquezas, ainda que produzam bens e serviços úteis para fazendeiros e proprietários de terras.

Quesnay descreve um sistema econômico circular no qual agricultores, comerciantes, artesãos e proprietários de terras trocam bens e serviços por dinheiro. A seguinte representação do Tableau Économique mostra os fluxos monetários gerados pelo comércio. A primeira versão do Tableau Économique data de 1758. A “tabela” foi posteriormente aprofundada e aperfeiçoada em 1767 (“Análise da fórmula aritmética da tabela econômica”). Na segunda versão, o Tableau économique assume uma forma moderna que, apesar de simplificada, antecipa as matrizes insumo-produto de Leontief e a análise do equilíbrio geral e das interdependências estruturais ao longo do tempo.

Como afirmam Les Économistes, que eram principalmente aristocratas, todas as classes sociais, exceto a do camponês, são “estéreis”, pois são incapazes de produzir qualquer coisa. Hoje em dia, limitar a economia ao valor produzido pela terra seria anacrônico, pois a riqueza gerada pela indústria e serviços é fundamental para o funcionamento dos Estados, mas tirar desta experiência do passado algumas boas reflexões para contrastar com a atual dependência econômica de países estrangeiros não pode ser senão um bem.

Colocar os produtos da terra no centro das atenções da economia nacional enobreceu o trabalho do agricultor e sacralizou o setor primário: se ainda hoje a França tem uma boa tradição gastronômica e vitivinícola e uma atenção tão particular para as empresas que produzem vinhos excelentes, queijos, verduras e carnes, isso se deve à teoria fisiocrática. A Revolução Francesa derramou sangue em nome da Liberdade, mas na verdade a França, abandonando a fisiocracia, tornou-se escrava do comércio internacional e dos mercadores.

Artigo publicado originalmente por Liliane Jessica Tami no site L’Altro – Das Andere

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