As Categorias de Aristóteles – Tiago Barreira

Fonte: Britannica

Resgatar e reconstituir os conceitos que fundamentam o edifício de um pensamento antigo torna-se de suma importância para o aprendizado filosófico. Categorias, uma obra enxuta, porém, densa, constitui o ponto de partida e introdução aos estudos aristotélicos, e cumpre um importante papel de direcionar e balizar todos os modos de raciocínio e investigação filosófica que serão desenvolvidos no Ocidente nos séculos posteriores.

Tiago Barreira

Uma das maiores dificuldades para se lidar com a leitura de textos filosóficos antigos está na grande distância de vivências entre o autor e o leitor. Milênios separam o universo cultural e social vivido por um cidadão grego médio do século V a.C e pelo cidadão de uma democracia moderna do século XXI d.C.

Olhamos para um edifício antigo e o contemplamos como algo distante, similar a peças e relíquias de museu. É possível, felizmente, darmos um passo além e entendê-lo como um conhecimento a nos ensinar, e a ser reproduzido e replicado hoje, se captássemos este edifício não somente em seu aspecto visível e aparente, mas nos fundamentos de sua estrutura. Isso vale também para os grandes teóricos da filosofia antiga. Resgatar e reconstituir os conceitos-chaves que dão alicerce a todo o edifício teorético de um pensamento antigo torna-se de suma importância para a compreensão e aprendizado filosófico.

Um importante alicerce que sustenta o pensamento filosófico antigo é a obra Categorias de Aristóteles, que enumera, classifica e organiza o conhecimento da realidade ao redor de categorias do Ser. Categorias, uma obra enxuta, porém, densa, constitui o ponto de partida e introdução aos estudos aristotélicos. Sem a Categorias, torna-se uma tarefa extremamente árdua compreender não somente os escritos metafísicos, éticos, psicológicos e políticos aristotélicos, como tudo o mais que se discutiria em termos de filosofia nos autores ocidentais posteriores, seja pelos autores estoicos e neoplatônicos, seja os da Patrística ou Escolástica.

Assim, Categorias cumpre um importante papel de direcionar e balizar todos os modos de raciocínio e investigação filosófica que serão desenvolvidos no Ocidente nos séculos posteriores. Todo grande sistema de pensamento que procure entender o real em sua totalidade necessita se estruturar em conceitos organizados categoricamente. Foi o que fez Kant, que tomou a obra de Aristóteles como modelo para estruturar sua própria concepção de categorias do pensamento humano. Embora o edifício teorético construído por modernos como Kant seja mais suscetível a fissuras e uma cópia inferior com relação ao edifício teorético de Aristóteles, não se pode negar a influência que o pensamento antigo do Estagirita exerceu sobre todo o pensamento ocidental moderno da posteridade, de cujo impacto se faz presente até mesmo em críticos como Kant.

O Ser em Aristóteles

O que são as categorias do Ser? Segundo Aristóteles, o Ser pode ser dito de múltiplas formas. Isso significa que o Ser não é unívoco, este não possui um único sentido. Ao negar a univocidade do Ser, Aristóteles distancia-se de Platão, que coloca toda a multiplicidade da realidade sensível e imanente como subordinada ao Ser transcendente ideal, o Sumo Bem.

Para Aristóteles, o Ser não é unívoco, mas imanente e múltiplo. O que significa dizer que não há uma unidade essencial e transcendente do Ser ao redor das multiplicidades das coisas, como acreditava Platão. Pois o Ser se encontra presente não nos ideais universais generalizantes, como na ideia de Brancura ideal, mas no particular, nesta rosa branca. Não há ser em ideias abstratas, mas em coisas individuais concretas da realidade. O Ser é palpável, ele é uma substância. Se Kant se orgulhava de ter feito uma “revolução copernicana” na epistemologia, Aristóteles teria feito muitos séculos antes uma “revolução copernicana” na metafísica, invertendo a hierarquia das realidades do Ser de essências etéreas do alto dos céus ideais para o mundo imanente, situando as essências nos substratos mais inferiores e ocultos de objetos individuais e materiais.

É justamente nesse sentido que o Ser não é Uno para Aristóteles, como o era para Platão, mas Múltiplo. Pode-se dizer que esta cadeira constitui um Ser tão distinto quanto uma outra cadeira. Ambos embora compartilhem as mesmas qualidades e a mesma forma de cadeira, ainda assim compartilham de substância distintas e, portanto, são seres distintos.

A substância do ser

É aí que entra a noção de categorias. A essência de um ser está na particularidade do seu substrato que o torna único em relação aos demais seres. Aristóteles chama esse substrato das coisas individuais (ou instâncias) de categoria de Substância (sub-stantia). É a categoria de substância que constitui o primado de toda as coisas da realidade.

Contudo, por esta constituir o substrato mais inferior das coisas, ela é desprovida de formas, de cores, de som, de medidas. Ela não pode ser vista diretamente pelos sentidos, mas tão somente inteligida. Quando vemos uma cadeira, estamos diante de todas as suas características materiais e sensíveis. Mas nada disso que é visível e aparente é a sua substância. A substância da cadeira é invisível aos sentidos, mas somente pode ser vista pelo intelecto. Chamamos esta visão da substância de intelecção.

A substância, portanto, nada mais é do que o ser que habita no interior das coisas sensíveis, e esta é inteligida pelo intelecto em duas etapas. Primeiro o intelecto despe e retira fora, ou abstrai (ab-strahere) da substância todas as aparências sensíveis. Ao fazer isso ele cria um objeto intermediário, o conceito. Em seguida, e de forma paradoxal, através da nudez do conceito, ele “vê” a plenitude da substância. Chamamos esse processo de “ver” do intelecto de intuição. Inteligir é, portanto, esta operação do intelecto que consiste em abstrair para intuir, despir para ver. O ver “atravessado e pleno” do real, assim, é somente possível quando antes despido e retirado o véu da ilusão da realidade, do “desvelar” de essências a partir das aparências de coisas. Aristóteles nesse sentido é seguidor fiel de Platão.

Os acidentes do ser

Feita essa digressão, fica então claro que em termos de comparação, podemos dizer que todo ser possui uma substância oculta e desnudada, que é a sede de sua essência, e que ele possui também roupas que nada dizem sobre sua essência, mas que definem sua aparência e o tornam visível a outros seres da realidade. Chamamos estas roupas de categorias de acidentes.

Aristóteles enumera então 9 categorias de acidentes:

  • Qualidade (a cor da cadeira),
  • Quantidade (peso da cadeira),
  • Relação (cadeira do lado da mesa),
  • Quando (a data em que a cadeira está presente),
  • Onde (o local onde se encontra a cadeira),
  • Ação/paixão (a cadeira sofre a ação de ser sentada por alguém),
  • Posição (cadeira em pé e não deitada no chão)
  • Hábito (quem é o dono da cadeira).

Todo acidente está subordinado à sua substância, e jamais pode existir de forma independente. Tomemos uma cor branca. A brancura jamais pode ser um ser tal como a cadeira necessitando de uma superfície física para que possa existir. Não há materialidade física na brancura. Acidentes precisam de substâncias para existir. Além de que cadeiras podem ser vermelhas, azuis. A acidentalidade em nada muda o núcleo de definição de cadeira. Uma cadeira não é menos cadeira por ser branca, vermelha ou azul.

Predicando definições de sujeitos

Retornemos ao tópico anterior de que o ato de abstrair e intuir a essência de coisas consiste em saber separar e desvelar essências de aparências. Um outro nome que Aristóteles dá para esse processo é predicamento de definições em sujeitos. Conseguimos predicar uma definição quando damos uma delimitação clara daquilo que um sujeito é, e daquilo que o distingue de outros sujeitos.

O que é uma cadeira? Esta pergunta dificilmente será respondida se definirmos uma cadeira pelo que há de mais superficial e aparente em seus acidentes. Uma cadeira não é aquilo que é branco, aquilo que eu tenho na sala, ou aquilo que o rei Charles costuma se sentar. Todas essas respostas respondem características sobre certos tipos de cadeiras, mas não definem a substância da cadeira, que é aquilo que a faz ser o que é, ou Aquilo o qual se encontra tanto na minha cadeira quanto na cadeira do rei Charles.

Este Aquilo da cadeira não pode ser um acidente, mas uma outra substância, um ser mais geral, inerente à cadeira particular, mas também subordinado a esta. Aristóteles então assume que toda definição de um sujeito substancial particular necessita ser predicada por uma substância mais geral. A definição de uma cadeira, assim, está em ser um móvel para assento. Vemos aí que a cadeira é uma espécie do gênero móvel, voltada para uma finalidade própria, que é o assento. A finalidade do móvel cadeira a distingue de outras espécies pertencentes ao gênero móvel, como estante (móvel que não tem finalidade para assento) ou mesa (móvel que também não tem finalidade para assento).

Conclusão

Compreender, classificar e hierarquizar coisas em agrupamentos de gêneros e espécies, mais do que um mero exercício diletante de colecionistas, é uma ferramenta poderosíssima para o ganho de inteligência e da conquista de maior lucidez sobre a realidade. A obra Categorias de Aristóteles cumpre essa função, ao delimitar, clarificar, hierarquizar e especificar os seres e coisas da realidade ao redor daquilo que é uma categoria essencial e daquilo que é uma categoria ilusória e acidental. Definir cadeiras como coisas que são brancas, vermelhas em nada acrescentam ao conhecimento da cadeira em sua essência. O mesmo pode ser estendido para os estudos das ciências em geral. Quantos são os conceitos mal definidos, fruto da má formulação de questões e de hipóteses, e que se fazem tão presentes nos métodos de investigação e que passam despercebidos por cientistas! Re-categorizar os conceitos da realidade torna-se então um ensinamento valioso que o pensamento clássico pode trazer às ciências contemporâneas, a fim de recuperá-las da crise epistemológica a qual se encontram.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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