A Tradição da Ordem Espontânea – Parte I

Centro_de_SP

Primeira parte da série de ensaios sobre a Ordem Espontânea do filósofo político Norman Barry, publicado em 1982 pelo Literature of Liberty. Traduzido e adaptado do artigo  The Tradition of Spontaneous Order. Texto original disponível no Library of Economics and Liberty.

Original:Norman Barry; Tradução: Tiago Barreira

Introdução: O Retorno da Ordem Espontânea

A Teoria da Ordem Espontânea possui uma longa tradição na história do pensamento social, e não seria exagero afirmar que, até a última década (anos 70), havia sido eclipsada nas ciências sociais do século XX. Durante a maior parte desse período, a ideia de ordem espontânea – de que muita das coisas que beneficiam a todos em um sistema social são produtos de forças espontâneas que estão além do controle direto do homem – foi ofuscada por várias doutrinas de “racionalismo construtivístico” [1] (usando o termo de Friederich A. Hayek em Lei, Legislação e Liberdade). Sem dúvida, a atração por essa noção rival de racionalismo se deve em parte ao sucesso das ciências sociais, com seus métodos típicos de controle, previsão exata, e experimentação. São esses métodos que possuem um apelo irresistível para determinada hubris no homem, que associa os benefícios da civilização não a ordenamentos espontâneos, mas à direção consciente a fins preconcebidos. Em particular, é lamentável que os efeitos do racionalismo construtivista sejam sentidos principalmente na economia. É lamentável, não apenas porque tentativas de dirigir a economia provaram fracassadas repetidamente, mas também porque a disciplina da economia deveu seu desenvolvimento em quase sua totalidade à teoria da ordem espontânea.

HAYEK-NOBEL

Os últimos anos tem assistido a uma reabilitação da filosofia econômica do liberalismo clássico; de fato Hayek, seu maior expoente contemporâneo, foi premiado com Prêmio Nobel em Ciências Econômicas em 1974. Mas o complemento daquela teoria econômica, a filosofia das instituições sociais e legais, tem sido largamente ignorada pelo establishment das ciências sociais. Esse erro ainda ocorre, mesmo tendo o grosso dos trabalhos de Hayek dos últimos 30 anos consistido de reconstrução da filosofia social do liberalismo clássico, e mesmo tendo ele próprio afirmado que o entendimento da economia como somente alocação de recursos é inadequado para a compreensão da ordem em uma sociedade livre. De fato, a especialização nas ciências sociais é, por si só, um obstáculo relevante para a aceitação da doutrina da evolução espontânea, precisamente porque sua teoria derruba muito das fronteiras entre as disciplinas acadêmicas.

“Os últimos anos tem assistido a uma reabilitação da filosofia econômica do liberalismo clássico; de fato Hayek, seu maior expoente contemporâneo, foi premiado com Prêmio Nobel em Ciências Econômicas em 1974. Mas o complemento daquela teoria econômica, a filosofia das instituições sociais e legais, tem sido largamente ignorada pelo establishment das ciências sociais.”

Os principais elementos da Teoria da Ordem Espontânea

Resumidamente, o principal ponto da teoria da ordem espontânea consiste, em dizer que ela se preocupa com as regularidades em uma sociedade, ou ordem de eventos, nos quais não são nem (1) o produto deliberado de ideias humanas, e nem (2) ligados a fenômenos puramente naturais (tais como o tempo, que existe independentemente da intervenção humana). Enquanto as palavras convencional e natural se referem, respectivamente, àquelas duas regularidades, a “terceira esfera”, a de regularidades sociais, consiste em determinadas instituições e práticas que são o resultado da ação humana, mas não o resultado de alguma intenção humana em específico. [2]

Padrões Sociais da “Mão Invisível” & Individualismo Metodológico

Apesar da complexidade do mundo social, que parece desmentir a existência de regularidades que podem ser estabelecidas pela observação empírica, existe uma ordem hipotética que pode ser reconstruída independentemente das atitudes, ações ou opiniões de indivíduos e que tem poder de explicação considerável. O mais importante da teoria da ordem espontânea é que as instituições e práticas que ela investiga revelam padrões sociais bem-estruturados, que parecem ser o produto de alguma mente criadora onisciente, mas que são na verdade resultados coordenados espontaneamente de ações de milhões de indivíduos, que não tinham a intenção de produzir uma ordem agregada em sua totalidade. Explicações dadas a esses padrões sociais tem sido, de Adam Smith em diante, conhecidas comumente de “Mão Invisível”, uma vez que dizem respeito ao processo no qual o homem é levado a promover um fim que não planejou.” [3] É fundamental na teoria da ordem espontânea o argumento de que as estruturas agregadas investigadas são resultados de ações de indivíduos. Neste sentido a ordem espontânea está firmemente associada com a tradição do individualismo metodológico.

Ordem Espontânea & ‘Razão’

O papel da ‘razão’ é crucialmente importante aqui, uma vez que os teóricos da ordem espontânea estão ligados à tradição anti-racionalista no pensamento social. Entretanto, não que isso signifique que a doutrina tenda a algum grau de irracionalismo, ou que a persistência e continuidade de sistemas sociais seja obra de intervenção divina, ou alguma outra força sobrenatural que seja invulnerável à explicação racional. Pelo contrário, a posição é mesma formulada originalmente por David Hume. Hume argumentava que a razão humana pura e por si só é incapaz de determinar a priori normas legais e morais necessárias para a manutenção de uma ordem social. Além disso, Hume defendia que a tradição, fruto da experiência, e os aspectos gerais da natureza humana já contenham guias suficientes para uma conduta social apropriada. Em outras palavras, longe de ser irracionalista, o argumento humeano é o de que a racionalidade deva ser usada para invalidar as exageradas reivindicações em favor da razão feitas pelos intelectuais iluministas. O perigo aqui, porém, é o de que a doutrina da ordem espontânea tenda a degenerar a certo tipo de relativismo: a eliminação da importância da razão em criar argumentos universais sobre a estrutura apropriada de uma ordem social pode compelir um teórico social a aceitar determinada estrutura de regras, apenas porque ela é produto de processos tradicionais.

O ‘racionalismo’, ao qual a teoria da ordem espontânea se opõe, antecede o Iluminismo, e talvez se encontre expressado mais nitidamente no século XVII, nas doutrinas da Lei Natural. No modelo de sociedade de Thomas Hobbes, por exemplo, considera-se que uma razão ‘natural’ simples é capaz de construir regras universais, adequadas para a conservação da ordem e continuidade. É assumido que esta razão só poderia conceber uma ordem legal com regras que emanam de um único soberano, no topo de um sistema hierárquico. Uma dada sabedoria imanente e oculta em um sistema evolucionário e disperso é, no entanto, sistematicamente ignorada em favor de um estatuto ou código estrutural. Apesar de certos teóricos da Lei Natural do século XVII tomarem uma visão mais generosa da natureza humana, ao ponto de produzirem estruturas mais favoráveis à liberdade e direitos, não altera o fato de pertencerem a uma epistemologia racionalista e anti-tradicionalista em comum.

“O perigo aqui, porém, é o de que a doutrina da ordem espontânea tenda a degenerar a certo tipo de relativismo: a eliminação da importância da razão em criar argumentos universais sobre a estrutura apropriada de uma ordem social pode compelir um teórico social a aceitar determinada estrutura de regras, apenas porque ela é produto de processos tradicionais.”

A teoria da ordem espontânea, então é concebida como determinado processo natural, que não é produto da razão ou intenção. O exemplo clássico é a economia de livre mercado na qual a coordenação dos objetivos e propósitos de incontáveis atores, que não podem conhecer os objetivos e propósitos de mais do que alguns dos seus colegas cidadãos, é alcançada pelo mecanismo de preços. Uma mudança no preço de uma commodity é simplesmente um sinal que alimenta de volta informações no sistema, permitindo que os agentes produzam ‘automaticamente’ aquela coordenação espontânea que parece ser produto de uma mente onisciente. As crises repetidas em sistemas dirigistas são em essência crises de informação, uma vez que a abolição do mercado deixa o planejador central sem aquele conhecimento econômico que é requerido para a harmonia. Não há exemplo maior da hubris construtivista do que este fracasso em buscar ordem em um processo natural ( o que não é um tipo diretamente físico). Assim como Hayek diz em “Princípios de uma Ordem Social Liberal”:

Ordem Espontânea e ‘Lei’

Seguindo às considerações sobre a razão para explicar ordens espontâneas , está uma consideração relacionada sobre a ‘lei’. Existem problemas terminológicos aqui, uma vez que teóricos da ordem espontânea nem sempre usam o termo ‘Lei Natural’ para descrever aquelas regras gerais que governam uma sociedade livre, precisamente porque a frase tem, como já obesrvamos, tons racionalistas. A Lei ‘Natural’ da teoria da ordem espontânea se refere às regularidades no mundo social, trazidas por homens gerando e adaptando as mesmas leis de maneira apropriada a suas circunstâncias. Assim, a Lei propriamente dita não é (1) o mandamento da razão pura na qual a estrutura de uma ordem legal é criada independentemente da experiência, e nem é (2) a lei positiva de, digamos, da Escola dos Comandos em que toda lei é deliberadamente criada por um ato de vontade. A teoria da ordem espontânea defende que tanto a lei natural dedutivista como a lei positiva são estruturas legais propensas a serem menos regulares e mais arbitrárias. Esta arbitrariedade surge precisamente porque, uma vez que essas estruturas legais ignoram as ordens legais existentes, elas dependem de uma supermente tomando conta tanto de todas as possíveis circunstâncias humanas como derivando regras apropriadas de princípios fundamentais. Em contraste, regras apropriadas para uma ordem espontânea são mais propensas a serem descobertas do que deliberadamente criadas.

Está, evidentemente, implícito em todos os escritores dessa tradição a noção de uma compensação ética: ou seja, somos propensos a obter benefícios ao cultivar mecanismos espontâneos e naturais e tratar as reivindicações baseadas somente na razão com algum ceticismo. Bem-estar, em outras palavras, é mais o produto de algum tipo de acidente do que de uma causa intencionada. Este é um argumento quase-utilitário, usado para contrabalançar as teses utilitárias mais convencionais de que o bem público pode ser racionalisticamente abstraído de preferências individuais e diretamente promovidos pela lei positiva centralizada. A teoria da ordem espontânea argumenta que as complexidades dos assuntos sociais são tantas a ponto de implicar que todo projeto racionalista é quase certo de fracassar, mesmo que se possa assumir a existência de legisladores benevolentes e bem-intencionados. Como observado por Adam Smith: “ Nunca soube muito do bem realizado por aqueles movidos a praticar comércio pelo bem comum”.[5]

“A teoria da ordem espontânea argumenta que as complexidades dos assuntos sociais são tantas a ponto de implicar que todo projeto racionalista é quase certo de fracassar, mesmo que se possa assumir a existência de legisladores benevolentes e bem-intencionados. Como observado por Adam Smith: ‘Nunca soube muito do bem realizado por aqueles movidos a praticar comércio pelo bem comum’.”

Dois Sentidos da Ordem Espontânea: Padrões de Crescimento Não-coercivo vs. ‘Sobrevivência dos mais Aptos’

Uma questão importante tem sido levantada e ajuda a melhor explicar a doutrina da ordem espontânea. Se baseia no fato de que a teoria possui dois significados interrelacionados, no qual os escritores em discussão não distinguem claramente. De um lado tratamos da ordem espontânea enquanto estrutura agregada complexa que é formada de ações não coercitivas de indivíduos, enquanto em outro sentido falamos de um desenvolvimento evolucionário de leis e instituições por um tipo de processo darwiniano de ‘sobrevivência dos mais aptos’ (e a analogia biológica não é inapropriada). Em ambos os sentidos descrevemos estruturas sociais que são semelhantes por não serem criações conscientes e que emergem independentemente de nossas vontades, mas as explicações são significativamente diferentes.[6] Uma versão mostra como instituições e práticas podem emergir de uma maneira genética-causal enquanto em outra mostra o processo pela qual sobrevivem.

Nós podemos talvez ilustrar esta diferença nos significados da ordem espontânea comparando a ordem de mercado com uma ordem legal. A explicação da emergência de uma ordem de mercado pela mão invisível é altamente plausível, uma vez que há um mecanismo, o sistema de preços, em trazer o requisito de coordenação. No entanto, não é óbvio o caso equivalente de que há um mecanismo que produz determinada ordem legal e política a partir da a coordenação de ações individuais. Logo o sistema legal de que uma sociedade possui pode ter sobrevivido como o mais apto, mas não necessariamente ser inclinado à ordem do liberalismo clássico. Processos evolucionários não-planejados podem muito bem produzir becos sem saída, e a saída para esses becos envolveria mais o uso extensivo da razão do que aqueles convencionalmente associados com a doutrina da ordem espontânea.

Ver Parte II aqui

Norman Patrick Barry (1944 – 2008) foi um filósofo político inglês melhor conhecido como um expoente do pensamento liberal clássico. Atuou durante a maior parte de sua carreira como professor de teoria política e social na Univerrsidade de Buckingham.

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  1. F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, vol. I, Rules and Order, (1973), pp. 8-11; vol. III, The Political Order of a Free People, (1979), p. xii. É no último em que Hayek usa a palavra ‘construtivística’ ao invés de ‘construtivista’, mais familiar.
  2. Ver o ensaio de Hayek, “The Results of Human Action but not of Human Design,” em Studies in Philosophy: Politics and Economics (London: Routledge and Kegan Paul, 1967), pp. 96-105; ver também o importante artigo de Edna Ullman-Margalit, “Invisible Hand Explanations,” in Synthese 39 (1978): 263-291.
  3. Adam Smith, The Wealth of Nations, R. H. Campbell e A. S. Skinner (eds.) p. 456. A referência à ‘mão invisível’ ocorre também na Teoria dos Sentimentos Morais de Smith, D. D. Raphael and A. Macfie (eds.), p. 58.
  4. Hayek, “Principles of a Liberal Social Order,” em Studies in Philosophy, Politics and Society, p. 167. O único tratamento compreensivo dos problemas sociais e econômicos contemporâneos de um ponto de vista Hayekiano é Knowledge and Decisions (1980) de Thomas Sowell.
  5. Adam Smith, The Wealth of Nations, p. 456.
  6. Ver Edna Ullman-Margalit, “Invisible Hand Explanations,” pp. 282-286.

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