A Imaginação Primitiva e a Tirania Civilizacional no Brasil – Tiago Barreira

Leviathan. Imagem: London School of Economics

A ideia do “homem primitivo” como um ser mecânico e bestial foi introduzida nas ciências humanas por Thomas Hobbes, resultando na noção moderna de um ser humano desespiritualizado e em eterno conflito violento com outros homens, abrindo caminho para o surgimento de ideologias totalitárias que se arrogam de combatê-la. Atualmente, no Brasil, este imaginário primitivista que bestializa o homem convive com a divinização de instituições ditas “civilizatórias” como a Suprema Corte. Esse embate entre extremos é no fundo um grande teatro de tesouras.

Tiago Barreira

Todo o imaginário primitivista e selvagem da cultura brasileira, e suas repercussões (culto idolátrico ao corpo físico e sexo biológico, exaltação da cultura da malandragem, estreitamento da consciência espiritual com a bestialização midiático-cultural da classe shudra) possui uma origem definida na história das ideias. Penetrou-se inicialmente com o movimento modernista da Semana de 22, através da noção de “bárbaro tecnizado” do manifesto Antropofágico. E também com o advento do imaginário positivista e naturalista no final do século XIX, tal como expresso em O Cortiço, como mencionado neste ensaio.

Podemos estender essa origem do imaginário primitivista brasileiro a períodos ainda mais remotos, indo até o advento da modernidade, no século XVII, com advento de novas ideias filosóficas do mecanicismo físico cartesiano. Não nos estenderemos aqui neste ensaio sobre as principais características deste pensamento, sendo um tema já tratado anteriormente neste artigo.

O ponto principal a ser feito neste artigo é que o mecanicismo das ciências naturais, inaugurado por Descartes e Galileu, encontraria sua primeira aplicação no campo das ciências sociais e humanas com Thomas Hobbes, ao cunhar o estado de natureza humano e construir a noção de “homem natural primitivo”, sintetizado pela máxima homo homini lupus.  

É com Hobbes que pela primeira vez a noção de natureza humana, tal como entendemos hoje, surge na história do pensamento ocidental. Este “homem primitivo” de Hobbes é colocado como essencialmente ateu e sem espírito. Um ser construído segundo princípios de funcionamento mecânico materiais, um autômato bestial, puramente voltado para interesses biológicos, e em eterno conflito violento com outros homens. Nenhum pensador havia pensado o homem primitivo dessa maneira antes. Trata-se de uma ideia originalmente pensada como uma abstração hipotética racional filosófica, mas que paulatinamente ganharia força em outros campos da cultura humana, gerando implicações profundas no imaginário poético, literário, estético e artístico nos séculos subsequentes.

É através de Hobbes que a alma humana inconsciente e profunda se torna selvagem e crua, perdendo qualquer conexão com a transcendentalidade divina tal como entendida pelos clássicos, enquanto detentora de potências noéticas despertas onde ainda se armazena resquícios anamnéticos do Logos. O impacto disso no imaginário sensível é imediato. Pois o inconsciente imaginativo humano perde sua inteligibilidade divina, incapaz de apreender de forma espontânea e interiormente noções auto evidentes de Verdade, Bem e Mal. Mas se isso ocorre, ele se torna um lugar obscuro e de trevas, uma caverna alojada no interior de uma selva. Nada mais resta então ao processo ascético humano do que imergir nesta selva, e entregar-se às intuições tenebrosas desse inconsciente. É exatamente essa a situação do estado de natureza hobbesiano.

E não é por coincidência que é em nome do combate a esse estado de natureza que as ideologias totalitárias prosperaram e se multiplicaram no ocidente moderno. O “iluminismo” dos ilustrados da Suprema Corte mais do que comprova essa tese. Defender o estado democrático de direito é pregar a supremacia civilizatória das instituições sobre o “estado de natureza”.

Tolhe-se toda manifestação ou interesse espontâneo humano alegando-se ser origem de ódio, divisões e destruição social. Toda a liberdade interior humana é colocada sob suspeita, e daí que surge em consequência a figura do crime de opinião. Controlar a opinião, policiar a linguagem, é a melhor maneira de colocar sob controle policial o exercício do pensamento e sentimentos interiores.

A situação atual no Brasil é essa. De um lado bestializou-se até o extremo a vida e liberdade interior humana, cortando conexão com o Logos, a Lei natural, e as suas noções intuitivas auto evidentes de Verdade, Bem e Mal. Noções estas, diga-se de passagem, que seriam apreendidas interiormente sem maiores dificuldades por qualquer outra civilização espiritualizada. De outro diviniza-se uma instituição até o talo como fiadora da paz, como a nossa Suprema Corte, que arroga para si ser o único poder constituído capaz de elevar homens bestiais a um estado de beatitude e felicidade infinita, que eles chamam de Estado Democrático de Direito. E tudo isso feito magicamente através de um contrato social (que só eles sabem qual é), que eles chamam de Constituição “cidadã”.

Esse dualismo civilização exterior x barbárie interior em nenhum lugar do mundo é entendido de maneira tão antagônica e violenta como no Brasil. São dois pares antagônicos, mas que no fundo são complementares. O excesso de um potencializa o excesso de outro, e vice-versa. A verdade é que não se promove a dita civilização democrática sonhada pelos ilustrados da Corte destruindo a liberdade interior e tudo aquilo que há de mais espontâneo dela. Assim como não se afirma a liberdade humana destruindo a civilização, como os românticos revolucionários sonharam.

Assim, o que vemos no Brasil, na prática, é um grande embate de extremos (populismo romântico x hobbesianismo autoritário) que, embora busquem declaradamente se destruir, no fundo se aproximam e se alimentam mutuamente. Um embate que se resume a um grande teatro de tesouras, esse sim, muito mais amplo e completo do que o outro teatro de tesouras político tão exaustivamente conhecido.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Ágora Perene.

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