A Poesia Meditativa de Ângelo Monteiro – Bernardo Souto

Poeta Ângelo Monteiro.

A linguagem, quando é posta a serviço do falatório, perde o seu poder de lançar luz sobre a existência, tornando-se oca e ineficaz. O papel da Poesia e da Filosofia é justamente dinamitar o falatório — reino dos lugares-comuns semanticamente vazios e repletos de clichês e de expressões pré-moldadas — devolvendo às palavras seu poder de nomear e de explicar o ser.

Bernardo Souto

A poesia meditativa (que Heidegger chamou de denkendes Dichten), embora tenha surgido há milênios, só ganha corpo e contornos definitivos com as obras dos poetas pré-românticos europeus, dentre os quais merecem destaque Leopardi, Blake e Hölderlin. Para o autor de Ser e Tempo, a poesia meditativa é uma ‘topologia do ser’, na medida em que é uma espécie de perscrutação do estar-no-mundo. Nesse sentido, aproxima-se bastante da Filosofia. Mas, enquanto a linguagem própria da Poesia é a analógica (daí o predomínio da metáfora), a linguagem própria da Filosofia é a conceitual (daí o predomínio do conceito abstrato). Benedito Nunes, no livro Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger, esclarece bem a questão:

“Tudo começa e termina na linguagem, o tópos por excelência do ser, em que se abastecem poetas e pensadores, e é em torno do qual eles convergem no caminho de retorno ao país natal. (…) Entretanto, os poetas e pensadores, próximos entre si na medida em que atendem ao mesmo apelo do ser na linguagem, estariam a grande distância uns dos outros por força do dizer que os avizinha. ‘Cantar e pensar são troncos vizinhos do poético’. Como abertura, como irrupção no meio do ente, a poiésis é o princípio de todo o pensamento, e, nesse sentido, todo pensamento é de caráter poético.”

A linguagem, no dizer de Heidegger, inaugura o ser, uma vez que é apenas através dela que o homem pode refletir sobre a existência e, por conseguinte, compreender a estrutura da realidade. No artigo “Salvação pela linguagem”, Ângelo Monteiro diz que:

“Não apenas os homens necessitam dessa espécie de salvação pela linguagem, mas todas as coisas querem se fazer ouvir por meio dela, já que, em total cumplicidade, elas participam de uma polifonia produzida pelo eco de vozes vivas e mortas ao mesmo tempo (…) Daí nossa indisfarçável semelhança com os peixes ao não conseguirmos respirar fora das águas da linguagem. Será que escrevemos unicamente para não deixar as coisas em seu silêncio ou, ao contrário, para que seu silêncio chegue até nós?”

Ocorre que a linguagem, quando é posta a serviço do falatório, que, segundo Heidegger, é o modo de ser típico do discurso automatizado do cotidiano, perde o seu poder de lançar luz sobre a existência, tornando-se oca e ineficaz. Ora, o papel da Poesia e da Filosofia é justamente dinamitar o falatório — reino dos lugares-comuns semanticamente vazios e repletos de clichês e de expressões pré-moldadas — devolvendo às palavras seu poder de nomear e de explicar o ser. É precisamente a esta modalidade de linguagem, que possui como característica lançar luz sobre as coisas, que Ângelo Monteiro se refere no trecho supracitado. Tanto assim que, no seu “Soneto de Réquiem”, pertencente ao livro De Passagem, Monteiro — que também é filósofo de ofício, além de ser poeta — nos alerta para a decadência da linguagem em nossa época, condenando a parolagem, palavra que é, obviamente, sinônimo de falatório:

SONETO DE RÉQUIEM

Castigada a beleza como um vício
Fez-se treva no centro da linguagem:
Na ausência do dizer a parolagem
Impôs-se por missão e por ofício.

A palavra, em seu último suplício,
Não mais serve de ponte e de passagem:
E os homens se vêem sós e sem mensagem,
Por negar-se da glória ao sacrifício.

Já não sonhamos mais se o céu se cala
Aos apelos da terra. E nada abala
Da solidão o indevassável muro.

Nas entranhas da vida o tédio lavra
E privada de sal morre a palavra
No coração do homem sem futuro.

Para o poeta, portanto, a parolagem (ou falatório) faz com que a palavra não sirva mais “de ponte e de passagem”, criando um discurso vazio de sentido ou, para usarmos as palavras do próprio Monteiro, “sem mensagem”. E tudo isso ocorre porque a beleza foi castigada como um vício. E o que significa isto? Significa tanto o desprezo, em nossa época, pela linguagem típica da Poesia — que, segundo Heidegger, é capaz de abrir clareiras no ser, desvelando-o — como também o menosprezo pelas questões fundamentais da existência, questões essas que estão também no nascedouro da Filosofia. Daí o poeta alagoano dizer que não nos importamos mais “se o céu se cala aos apelos da terra”, porque não buscamos mais a transcendência e, por isso mesmo, o tédio lavra nas entranhas da vida. “Escrevo por causa do silêncio de Deus”, disse certa vez o poeta italiano Eugenio Montale.

Poesia e Filosofia, portanto, são ramos da mesma árvore, pois ambas se rebelam contra o falatório e nascem do assombro do homem ante o Desconhecido ou Indeterminado, que o filósofo pré-socrático Anaximandro de Mileto chamava de Ápeiron (ἄπειρον). Aristóteles, em sua Metafísica, afirma que:

“É pelo assombro que os homens começam, agora e num princípio, a filosofar, assombrando-se primeiro com as coisas estranhas que tinham mais à mão, e depois, ao avançar assim pouco a pouco, indagando-se sobre as coisas mais sérias, tais como os movimentos da Lua, do Sol e dos outros astros e a geração do todo.”

Esse assombro, que é a fonte comum da Filosofia e da Poesia Meditativa, é a semente da qual germinou o “Para que somos feitos?”, poema que pertence ao livro Os Olhos da Vigília:

PARA QUE FOMOS FEITOS?

Nem para a terra nem para o céu
fomos feitos. Nem mesmo para ser lembrados.
No encontro entre a luz dos nossos olhos  
e a imagem das coisas provisórias
consistem nossa noite e nosso dia.

Não tem preço e é inútil
aquilo pelo qual suspiramos.
Mas também é inútil o que é perfeito
 e não tem preço a sua perfeição.
Por fim não tem preço e é inútil
tudo que nos perde ou que nos salva.

Fomos feitos para além da vida
pequena e — porque pequena —  anunciada.
Fomos feitos para o clamor do que não sabemos.
Para ouvir o som das flores — graças às abelhas —
no murmúrio e no anúncio do seu mel.

O poema acima é uma resposta poética a uma questão genuinamente filosófica e, além de filosófica, teológica. Como notou Jorge Luis Borges, nem sempre é possível delimitar bem as fronteiras entre Poesia e Metafísica. E, não raro, também, a religião é expressa através de poemas, como ocorre nos Salmos do Rei Davi.

Podemos concluir, portanto, que Filosofia e Poesia são afluentes do mesmo rio, ou, para usarmos as palavras de Martin Heidegger, “o pensamento diz o ser. O poeta nomeia o sagrado”.

***

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Metafísica vols. I, II, III, 2ª edição. Ensaio introdutório, tradução do texto grego, sumário e comentários de Giovanni Reale. Tradução portuguesa Marcelo Perine. São Paulo. Edições Loyola. 2002.

HEIDEGGER, Martin.  A caminho da linguagem. Trad. Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003.

_____. Alétheia: Heráclito, fragmento 16. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.

_____. A origem da obra de arte. Trad. Maria da Conceição Costa. Lisboa: Edições 70, 1990.

_____. Hölderlin y la esencia de la poesía. In: Arte y poesia. Trad. Samuel Ramos. México: Fondo de Cultura Económica, 1958.

_____. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.

_____. Ser e tempo (1927), Partes I e II, tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2002. _____.Que é metafísica? (1929) in Conferências e escritos filosóficos, tradução de Ernildo Stein, São Paulo: Nova Cultural, 2005.

MONTEIRO, Ângelo. Todas as coisas têm língua. Recife: CEPE, 2008.

NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1986.

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