Como as Mulheres Começaram a Guerra Cultural (parte I)

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Trecho extraído do capítulo do livro “Verdade Absoluta – Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural” da filósofa e teóloga Nancy Pearcey

A modernização provoca uma dicotomização insólita da vida social. A dicotomia está entre as maiores e mais poderosas instituições da esfera pública […] e da esfera particular.

PETER BERGER

Eu havia acabado de falar em um painel de debate numa grande universidade secular, quando uma mulher no plenário se levantou e disse:”Não sou feminista, mas…”, esta era indicação clara de que ela iria dizer algo segundo a perspectiva feminista. “Por que este programa não mencionou nenhuma mulher? Nenhum dos palestrantes citou obras escritas por mulheres. Por que vocês estão ignorando a metade da raça humana?”, a mulher olhou ao redor com raiva e ferocidade, e acrescentou: “Não se incomodem em responder”, e começou a sair do plenário com arrogância e gravidade, encenando uma saída dramática. Agarrei o microfone e disse: “Não saia!”

Naquela noite, eu falara sobre o conceito dividido da verdade que corre como uma brecha por todo o pensamento ocidental. “A divisão fato/valor não é meramente acadêmica”, disse eu. “Foi incorporada nas instituições sociais modernas como uma divisão entre a vida pública e a vida particular. Isso afeta até as relações entre homens e mulheres.”

Isso prendeu a atenção da mulher, e o ambiente foi ficando em silêncio. Expliquei que a concepção do conhecimento em dois pavimentos reestruturou não apenas a grade curricular universitária, mas também a casa, a igreja e o local de trabalho. Este é aspecto importante da divisão da verdade em dois pavimentos, porque chama nossa atenção para o fato de que não é só questão de idéias, mas é também uma força poderosa que remodela o modo como vivemos.

AS MULHERES E OS DESPERTAMENTOS

Voltemos à metade do segundo grande despertamento. Em 1838, apareceu um artigo controverso exortando as pessoas a “pensar por si mesmas” nos assuntos de religião. Habitualmente, uma mensagem como esta mal teria sido notada. Como vimos, a chamada para as pessoas comuns ler e interpretar a Bíblia por conta própria era tema central no movimento evangélico daquela época. O que tornou o artigo tão controverso foi ter sido escrito por uma mulher — uma mulher que pedia às mulheres que lessem a Bíblia por conta própria: “Acredito que é o dever solene de toda mulher examinar as Escrituras por conta própria, com a ajuda do Espírito Santo, e não ser governado pelas opiniões de homens ou grupos de homens .

Assim que o movimento evangélico adotara o populismo espiritual, foi difícil conter a lógica de igualdade limitada a homens brancos. Em termos de números absolutos, os despertamentos alcançaram mais mulheres que homens, sobretudo mulheres mais jovens. Os reavivalistas permitiam que elas orassem e falassem em público, e até se tornassem “exortadoras” (assistentes de ensino), fato que escandalizava os críticos. Tendo em vista que os reavivalistas acentuavam o lado emocional da religião, a mensagem parecia ter sido feita em especial para mulheres. Eles diziam que as mulheres eram mais naturalmente religiosas que os homens, e exortavam as esposas a serem o meio de conversão para os maridos mundanos.

Semelhantes às outras tendências que determinamos, esta continua até hoje. As igrejas americanas atraem mais mulheres que homens, dando origem ao estereótipo de que religião é para mulheres e crianças. Este padrão está tão disseminado que há quem fale em “feminização” da igreja. “Os homens ainda administram a maioria das igrejas”, conclui certo estudo, mas “nos bancos de igreja as mulheres excedem numericamente os homens em todos os países da civilização ocidental”.

É interessante que isso não ocorra em outras religiões: na ortodoxia oriental, a sociedade é mais ou menos equilibrada, sendo que no judaísmo e no islamismo os homens predominam. O padrão não pode ser explicado dizendo que os homens são naturalmente menos religiosos que as mulheres. O fato é que o cristianismo ocidental é incomum neste aspecto. Por quê?

A resposta está na divisão entre o público e o particular, o fato e o valor, que lançou o cristianismo para o pavimento de cima. Não se tratava de mera mudança de conceito sobre religião; acarretava também mudanças no mundo material, ou seja, nas estruturas institucionais da sociedade. Assim que nos inteirarmos deste processo, ficará mais fácil entender o estado do evangelicalismo atual e as questões como o papel da igreja na sociedade e o papel do homem e da mulher no lar.

CASAS TRABALHANDO

Falando historicamente, o ponto decisivo fundamental foi a Revolução Industrial, que causou a separação entre o reino particular da família e da fé e o reino público dos negócios e da indústria. Para entender estas mudanças com mais clareza, comecemos fazendo um quadro da vida antes da Revolução Industrial.

No período colonial, as famílias viviam de maneira muito semelhante ao modo como viveram por milênios nas sociedades tradicionais. A maioria das pessoas morava em fazendas ou em aldeias rústicas. O trabalho produtivo era feito em casa ou em seus anexos. O trabalho não era feito por indivíduos sós, mas por famílias ou casas. Uma casa era uma unidade econômica relativamente autônoma, abrangendo parentes, aprendizes, criados e trabalhadores assalariados. Lojas, escritórios e oficinas ficavam na parte da frente da casa, enquanto a família morava em cima ou nos fundos. Isso significava que o limite entre casa e mundo era bastante permeável: O “mundo” entrava continuamente na forma de fregueses, colegas de profissão, clientes e aprendizes.

Esta integração entre vida e trabalho sobrevive em bolsões da sociedade moderna. Quando tinha doze anos, minha família morou por um ano em uma pequena aldeia próximo a Heidelberg, Alemanha. Para fazer compras, pegávamos uma cesta grande e, na mesma rua, íamos ao padeiro, ao açougueiro, ao merceeiro e assim por diante. Cada frente de loja era a parte da frente da casa, e a família morava em cima ou na parte de trás. O marido e a esposa trabalhavam juntos o dia inteiro. A escola acabava ao meio-dia (até à escola de Ensino Médio) para que as crianças fossem para casa ajudar a abastecer estantes e operar a caixa registradora. Cada negócio era um genuíno empreendimento familiar.

Certo fim de tarde, quando fui a uma lojinha de presentes, uma mulher saiu do compartimento dos fundos com um bebê no colo. Ela me atendeu segurando o bebê com um braço, depois acenou adeus e voltou a fazer o jantar. Até os anos sessenta, nas aldeias alemãs, ainda se podia experimentar a forma pré-industrial do empreendimento familiar.

O que significou a integração colonial de trabalho e vida para as relações familiares? Significou que marido e mulher trabalhavam lado a lado todos os dias, tomando parte no mesmo empreendimento econômico Para a mulher colonial, escreve certo historiador, casamento “significava se tornar colega de trabalho do marido, […] aprender novas habilidades em açougue, ourivesaria, impressão ou estofaria, qualquer que fosse a habilidade especial que o trabalho do marido requeresse”. Medida útil do tratamento de uma sociedade de mulheres é o estado civil das viúvas. Os registros históricos mostram que nos dias coloniais não era incomum as viúvas continuarem o empreendimento familiar depois da morte do marido. Isso significava que elas tinham aprendido as habilidades necessárias para manter o negócio andando por conta própria.

É lógico que as mulheres também eram responsáveis por uma multidão de tarefas domésticas que exigiam ampla gama de habilidades: fiar lã e algodão; tecer tecidos; coser as roupas da família; cuidar da horta e conservar alimentos; preparar as refeições sem ingredientes pré-processados; fazer sabão, botões, velas, remédios. Muitos dos bens usados na sociedade colonial eram fabricados por mulheres e, como escreve Dorothy Sayers, elas “trabalhavam com a cabeça e também com as mãos”.

O fato de tudo isso ocorrer em casa significava que as mães combinavam trabalho economicamente produtivo com criação de filhos. Significava também que os pais estavam muito mais envolvidos na criação dos filhos que hoje. Não podemos entender a mudança no papel das mulheres, a menos que ao mesmo tempo consideremos a mudança no papel dos homens.

MASCULINIDADE COMUNAL

No período colonial, o marido e pai era considerado o cabeça da casa. A autoridade tinha uma definição muito específica: era um ofício divinamente sancionado que conferia o dever de representar, não seus interesses particulares, mas os da casa toda. Esta era uma extensão da teoria política republicana clássica analisada no Capítulo 10. Esta condição considerava a instituição social (família, igreja ou estado) como unidade orgânica, em que todos tomavam parte de um bem comum. Havia um “bem” para indivíduos, mas também havia um “bem” do todo, o qual era mais que a soma de suas partes. E este bem do todo era da responsabilidade do indivíduo em posição de autoridade. Ele foi chamado para sacrificar seus interesses particulares — a ser desinteressado — e representar os interesses do todo. ” Maridos e pais não deviam ser dirigidos por ambição pessoal ou egoísmo, mas tinham de assumir a responsabilidade pelo bem comum da casa inteira.

Poderíamos dizer que a definição culturalmente dominante de masculinidade era “masculinidade comunal”, termo cunhado por Anthony Rotundo em American Manhood. Significava que o homem devia classificar o dever acima da ambição pessoal. Usando uma frase comum daqueles dias, ele tinha de se satisfazer por “utilidade pública” mais que por sucesso econômico.

Na vida do dia-a-dia, o pai desfrutava a mesma integração de trabalho e responsabilidades de criar filhos que a mãe. Com a produção centrada no círculo familiar, o pai era “uma presença visível, ano após ano, dia após dia”, enquanto treinavam os filhos para trabalhar ao lado dele. Ser pai não era atividade separada que tinha de voltar para casa depois de um dia no trabalho; fazia parte integrante da rotina diária do homem. Os registros históricos revelam que a literatura colonial sobre cuidados paternais e maternais — como sermões e manuais de criação de filhos — não era direcionada à mãe, como a maioria é hoje. Era direcionada tipicamente ao pai. O homem era reputado como o pai primário e particularmente importante na educação religiosa e intelectual dos filhos.

Cada casa era uma pequena comunidade chefiada por um Hausvater (literalmente,”pai da casa”). Em meados do século XIX, escreve o historiador John Gillis,”não só artesãos e fazendeiros, mas homens de negócio e profissionais administravam muito o seu trabalho em casa, auxiliado pela esposa e filhos”. Em consequência disso, “não havia diferença entre o tempo [do Hausvater] e o da sua esposa, filhos e criados.Todos comiam e oravam juntos; eles se levantavam e iam dormir no mesmo horário”. Por mais que seja surpreendente,”os homens […] se sentiam tão à vontade na cozinha quanto as mulheres, porque tinham a responsabilidade de abastecer e administrar a casa. Até o século XIX, os livros de receitas e os de gestão doméstica eram dirigidos principalmente para eles, e tão dedicados à decoração quanto à hospitalidade”.

Em termos da presença constante do pai em casa, os Estados Unidos do século XIX estavam de fato mais próximos do mundo de Martinho Lutero do que do nosso.”Quando o pai lava as fraldas e faz outra tarefa simples para o filho, e alguém o ridiculariza dizendo que é um tolo efeminado”, escreveu Lutero, ele não deve se esquecer de que “Deus com todos os seus anjos e criaturas estão sorrindo”.

Não estamos idealizando a vida colonial, que era uma vida árdua de trabalho opressivo. Em termos de relações familiares, não há dúvida de que as famílias se beneficiavam da integração de vida e trabalho, algo extremamente raro em nossa época de fragmentação.

O LAR COMO PORTO SEGURO

Tudo isso mudou com a Revolução Industrial, pois o seu principal impacto foi levar o trabalho para fora de casa. Esta mudança a princípio simples — no local físico do trabalho — desencadeou um processo que levou a um declínio acentuado na significação social outorgada à casa, alterando de forma drástica o papel do homem e da mulher.

A industrialização aconteceu nos Estados Unidos em velocidade vertiginosa, aproximadamente entre 1780 e 1830. Nas primeiras fases, famílias inteiras iam trabalhar nas fábricas ou trabalhavam por empreitada em casa. Afinal de contas, as pessoas estavam acostumadas a trabalhar juntas como uma unidade. Mas logo ficou claro que o trabalho industrial era muito diferente da cultura de trabalho centrada na família.

Considerando que crescemos acostumados com um local de trabalho industrializado, temos de usar um pouco de imaginação histórica para entender as diferenças. O antigo padrão estava fundamentado nas relações pessoais entre o fazendeiro, seus filhos e trabalhadores contratados, ou entre o artesão e aprendizes. Na revolução industrial, isso deu espaço a relações impessoais fundamentadas em salários. Na antiga tradição relativa às habilidades manuais, um único artesão planejava, projetava e executava o projeto. Porém, no capitalismo surgiu uma classe cada vez maior de gerentes e empreiteiros, que assumiu todo o planejamento criativo e a tomada de decisão, enquanto deixou aos trabalhadores as tarefas mecânicas divididas em etapas simples e repetitivas — a linha de montagem. Na sociedade agrária tradicional, a agricultura e as habilidades manuais eram “voltadas à tarefa”, estruturadas pela necessidade humana e exigências de acordo com a estação. Mas, na sociedade industrial, o trabalho de fábrica era “voltado ao tempo”, estruturado pelo relógio e regularidade da máquina.

O novo local de trabalho fomentou uma filosofia econômica de individualismo atomístico, quando os trabalhadores foram tratados como unidades intercambiáveis que são conectadas no processo de produção — cada um lutando para se promover à custa dos outros. Para muitos, o mundo da indústria se afigurava a uma guerra darwinista social de um contra todos. (Há quem sugira que o conceito de Darwin da luta pela sobrevivência fosse mera extrapolação na biologia do etos competitivo do começo do industrialismo. )

Logo, um grande clamor social se levantou contra este estilo de trabalho novo e hostil, ao mesmo tempo em que amplos esforços foram mobilizados para restringir seus efeitos desumanizadores. A estratégia primária era delinear um posto avançado, em que os “antigos” valores pessoais e éticos fossem protegidos e preservados, a saber, a casa. Esse lugar representava os valores e ideais duradouros que as pessoas queriam desesperada-mente manter a despeito da modernidade: coisas como amor, moralidade, religião, altruísmo e abnegação.

Para proteger estes valores em extinção, foram aprovadas leis que limitavam a participação de mulheres e crianças nas fábricas. Em seguida, a partir do início da década de 1820, houve uma enxurrada de livros, folhetos, manuais de aconselhamento e sermões que delineou o que os historiadores denominam doutrina de esferas separadas: a esfera pública dos negócios e finanças seria isolada da esfera particular do lar e família. Assim, a casa se tornaria um refúgio, um porto, do mundo cruel e competitivo, um lugar de conforto e renovação espiritual.

POR QUE OS HOMENS SAÍRAM DE CASA

Como estas mudanças afetaram os homens e as mulheres? A mudança mais óbvia foi que os homens não tiveram escolha senão acompanhar o trabalho fora das casas e campos, e entrar em fabricas e escritórios. Por conseguinte, a presença física dos homens em casa caiu drasticamente. Ficou difícil eles continuarem agindo como o pai primário. Os pais já não passavam bastante tempo com os filhos para educá-los, impor disciplina regular ou treiná-los em habilidades manuais e profissões de adulto.

A característica mais surpreendente dos manuais de criação de filhos de meados do século XIX é o desaparecimento de referências a pais. Pela primeira vez, encontramos sermões e folhetos sobre o tópico da criação de filhos dirigidos exclusivamente a mãe, e não a pai ou a ambos. Os homens passaram a se sentir ligados aos filhos mais por suas esposas. Conta-se a história de um pai vitoriano com dezesseis filhos que não reconheceu a própria filha numa festa de Natal na igreja:

— E você garotinha, de quem você é filha? — perguntou ele. Diante do que a pobre criança respondeu:

— Eu sou sua filha, Papai.

O incidente foi provavelmente excepcional, contudo não há dúvida de que o pai de classe média estava se tornando pai secundário.”

O impacto sobre as mulheres foi, no mínimo, muito mais dramático.

Depois da Revolução Industrial, a casa deixou de ser o local de produção e se tornou o local de consumo. Isso significava que as mulheres em casa foram aos poucos passando de produtoras a consumidoras. As indústrias em casa com sua gama de serviços mútuos foram substituídas por fabricas e trabalho assalariados. Em vez de desenvolver inúmeras habilidades manuais — fiar, tecer, coser, tricotar, conservar, fermentar, assar e fazer velas —, as tarefas das mulheres foram mudando progressivamente para a administração básica da casa e o cuidado dos filhos. Em vez de desfrutar um senso de indispensabilidade econômica, as mulheres passaram a ser dependentes, vivendo do salário dos maridos. Em vez de trabalhar num empreendimento econômico comum com os maridos, as mulheres ficavam excluídas em um mundo de “retiro” particular. Em vez de trabalhar com outros adultos ao longo do dia — criados, aprendizes, clientes, fregueses e parentes —, as mulheres ficavam socialmente isoladas com crianças pequenas o dia todo.”

O papel das mães na criação dos filhos ficou mais saliente do que fora no passado, quando compartilhavam a tarefa com outros adultos na casa — avós, parentes solteiros, irmãos mais velhos, criados e, sobretudo, os pais. Quando estes saíram de casa para ir ao local de trabalho, criar filhos se tornou responsabilidade quase exclusiva da mãe.

Em poucas palavras, as mulheres experimentaram diminuição drástica na gama de trabalho que faziam em casa, ao mesmo tempo em que experimentaram aumento tremendo de responsabilidade pela estreita extensão de tarefas que restaram. Os registros históricos atestam a mudança dramática: As mulheres “desapareceram quase que totalmente de diversas profissões; elas apareciam com menos frequência em registros públicos como tipógrafas, ferreiras, fabricantes de armas ou proprietárias de pequenos negócios”.” Como mencionei anteriormente, as viúvas coloniais assumiam o negócio quando os maridos morriam, mas isso não acontecia mais. “No começo do século XIX”, escreve certo historiador, “as viúvas eram vistas como lamentáveis casos de caridade”, pois elas não tinham as habilidades trabalhistas para se sustentar.

Continua na parte II

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