Lágrimas de confiança

Amor também é dedicação. É um sentimento o qual por vezes somos afastados. Será que todas as pessoas sentem amor em suas vidas? Ao pensar sobre isso começaremos a ver pessoas que não são capazes de sentir o mínimo necessário para não serem elas mesmas… Somente o suficiente para os outros.

           

Estevan de Negreiros Ketzer[i]

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Não me lembro da última vez que vi um homem adulto a chorar. As lágrimas não podem ser públicas, sinais nítidos de fragilidade. Entretanto, quando caminho na rua, sempre vejo meninas jovens com as lágrimas descendo sutis seus rostos. Algumas choravam quase rindo, naquele tipo misterioso de fluxo emocional. Contudo, já vi tantos homens cegos… por não chorarem, ao deixarem o peso intranquilo soltar-se em uma ânfora de recordações ruins. Eu sei que as palavras devem soar como um vate de memórias vindas do futuro. Caso contrário, não haverá quaisquer sinais de esperança para esses que choram.

Esse tênue ato de cuidar dos líquidos emocionais das pálpebras ao mero sinal de desatino… Coube um alento mais reticente com as antigas confissões que se expressam na rua de maneira tímida e irregular. Sentimentos não são exatos como as sínteses matemáticas mais incríveis, porém, a beleza do humano merece um olhar aqui. Trago as cartas de Vincent Van Gogh para o seu irmão Théo, aquelas simples o suficiente para ao terminarmos de lê-las sairmos melhores:

Se continuarmos a amar sinceramente o que na verdade é digno de amor, e não desperdiçarmos nosso amor em coisas insignificantes, nulas e insípidas, obteremos pouco a pouco mais luz e nos tornaremos mais fortes (GOGH, 2010, p. 24).

Amor também é dedicação. É um sentimento o qual por vezes somos afastados. Será que todas as pessoas sentem amor em suas vidas? Ao pensar sobre isso começaremos a ver pessoas que não são capazes de sentir o mínimo necessário para não serem elas mesmas… Somente o suficiente para os outros. E isso é assustador para quem sente, pois observa o quanto as emoções também deixam de fluir com inteligência, não chegando ao seu destino. Pior ainda: podemos ter por alguém assim um estranhamento completo… Estranhos a nós mesmos. Eis uma questão de personalidade muito complicada. Aquela pessoa não se conecta e isso muda por completo. Como iremos reagir com ela? Pior do pior e ainda mais: podemos também ficar anestesiados… mais tempo do que gostaríamos… por não sermos nós mesmos! Ficamos em uma situação sem reação. E isso nos coloca por vezes em um momento complicado em nossas vidas, porque o tempo cronológico encontrado nos ponteiros de um relógio está passando. Nossa vida está passando! Como aprender nesse estado? O que estamos disponíveis para aprender? Com sofrimento fica mais difícil, talvez até muito dolorido e nos faça apontar para o lado errado: o lamento por tudo aquilo que a vida não foi. Este é o maior engano que podemos ter em nossas vidas, simplesmente porque acreditamos piamente que a vida deve ser como nos disseram ou como nossos ideais se desinteressaram pela realidade. Esta é uma terrível alienação.

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Gostaria, por fim trazer o exemplo de Santo Agostinho, bispo de Hipona. Este importante santo católico do século IV d.C. se envolvera em uma seita gnóstica persa dos maniqueístas, criador por Manes (216-274 d.C.). As elocubrações sobre Deus levaram esta seita a firme crença de que Deus era da forma do homem, mas em proporções enormes. Seus argumentos também levavam a ideia de que todos deveriam ser como eles, um proselitismo o qual consideraríamos como fundamentalista para os dias de hoje. Para eles a matéria era ruim e o mundo espiritual bom, recaindo aí o fundamento da crença de seus adeptos. Encontramos nos relatos da juventude de Agostinho o quanto os argumentos maniqueístas não se mostravam propensos a discussão profunda. Vale a pena conferirmos uma citação de Agostinho sobre seu envolvimento com esta seita:

A estes tiveram-nos na conta de loucos os ignorantes, que julgam conforme a “sabedoria humana” e avaliam todos os costumes do gênero humano pela medida dos seus – tal qual um néscio que, desconhecendo na armadura o que é apto a cada parte do corpo, quisesse cobrir a cabeça com uma couraça e guarnecer os pés com um capacete, e se queixasse de que não se adaptavam convenientemente. Ou como se na mesma casa alguém visse um escravo a manusear qualquer coisa que não é permitido tocar ao copeiro, ou fazer atrás de uma estrebaria qualquer serviço proibido à mesa, e se indignasse de que, sendo uma só a habitação, uma só a família, não tenham todos as mesmas atribuições em toda a parte (AGOSTINHO, 1999, p. 89).

Este embate interno de Agostinho mostra para nós sua vontade de aprender, pois algo o insatisfaz, enquanto vemos uma fragilidade diante de argumentos do tipo “é porque é”, isto é, deslocados do seu contexto. Tipo de aceitação por SUBMISSÃO, pois toda a seita tem um MESTRE, e o que ele diz é VERDADE indisponível à discussão. Ainda assim, Agostinho era um bom aluno, aprendendo muito e esforçando-se para deixar sua consciência livre para pensar e, assim, permitir que ele pudesse não apenas sonhar ser ele mesmo, mas alcançar esta árdua tarefa. “(…) minha piedade, como quer que ela fosse, me obrigava a crer que a bondade de Deus não criou nenhuma má, estabelecia eu duas substâncias opostas a si mesmas, ambas infinitas: a do mal, mais diminuta, e a do bem mais extensa” (AGOSTINHO, 1999, p. 138). Esta citação não é simples, pelo contrário, ela exige coragem para reconhecer o quanto se está perdido em dificuldades cruciais da vida intelectual o que, para uma pessoa como ele, significa elevar sua vida espiritual para além da dualidade “bem e mal”. Ele estava descobrindo como a fé não era apenas pré-intelectiva, não obedece a um sistema de crenças indefinidas ou costumes, mas sim a um sinal de unidade do conhecimento. O conhecimento da ciência quer revelar o mistério, o conhecimento da fé quer adentrar-se nele, dar ao mistério algo muito particular e que transforme as nossas vidas verdadeiramente. Esta é a chegada à maturidade e a sabedoria, e isto também leva a jornada de nossas buscas para um novo limiar, pois exige tanto coragem, como um fundamento adequado.

Agostinho ficou anos longe desta seita, mas os efeitos dela o acompanharam por muitos anos, só vindo a livrar-se dela anos depois, quando após muitos desencontros e conflitos, a voz de uma criança abriu seu coração, revelando-lhe em uma lágrima a entrega (páthos) de sua vida a Deus. Neste ato, vemos como a pedra fundamental do seu caminho, o renascimento, traz uma tranquilidade serena.

(…) penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram (AGOSTINHO, 1999, p. 223).

O que gostaria de trazer para encerrar este texto é o quanto nossa fragilidade por vezes é vítima de pessoas sem escrúpulos, as quais enganam com falsas promessas uma vida repleta de milagres, típicos do pensamento mágico, tornando-se um obstáculo maior ainda sobre qual seja o nosso legado. Lógico, quando estamos doentes, tendemos a encontrar pessoas doentes em nosso caminho, ao invés de mudar o rumo dos acontecimentos, de maneira simples. As coisas se complicam muito e nossa tendência é afundar. Chamamos isso em psicologia de prognóstico negativo.

Eu já presenciei amigos saírem de um estado psicológico neurótico e se dirigem a um estado psicótico pela influência de seitas assim, as quais causam uma confusão muito particular em suas vidas. Estas seitas, não se observam assim como “seitas”, facções de uma coisa maior, preferindo assumir o nome de grupo de estudos, um eufemismo que mascara muito bem a proposta insana de seus líderes. Para fugirem de processos com a Justiça, seus líderes tentam incutir a responsabilidade do que dizem (“façam isso”, “é assim”, “deve ser”) para a pessoa que está ali justamente seguindo a manada de ditos irresponsáveis. Este jeito de lidar chamamos em psicologia de identificação projetiva: para o indivíduo se ver livre do sentimento de culpa, ele projeta a culpa em seu interlocutor, vendo-se completamente livre dela, mas deixando o interlocutor (aluno, discípulo), com um peso que não é o seu (SEGAL, 1975). A pessoa se sente muito culpada, por não ser boa o suficiente, por não agradar, por não corresponder aos sentimentos do mestre, o que a mantém no grupo para agradar a ele e também mantem sua esperança de que a palavra mágica chegará em breve. Vejo este processo como a destruição do respeito da pessoa por ela mesma, exigindo de si o que não é capaz de ter, emburrecendo aos poucos, acreditando em milagres ao invés de promover sua capacidade interna para lidar com os problemas de maneira realista.

Em minha ingenuidade, acreditava haver poucas seitas em nossa sociedade. Pelo contrário, a maioria das pessoas participa de seitas assim, sentindo-se acolhidas, uma vez que se enxergam como incapazes. Nossa sociedade também não ajuda muito em uma mudança de quadro promovendo uma educação melhor com mais conhecimento e contexto. As pessoas envolvidas em seitas assim costumam não saber de onde seu metre tirou o conceito, de que lugar, e passam a repetir piamente.

Esta captura da inteligência em todas as instituições de ensino parece ainda ser vista com morosidade por nossa população, ao assistir distante como professores autoritários dizem coisas sem o devido cuidado de como as pessoas irão reagir e interpretar. Querem uma espécie de seguidores para seus egos muito inflados, algo que certamente conseguem, pois nossa população possui um baixo QI, média de 87, enquanto no mundo temos uma média de 100 (FLORES-MENDOZA, 2012). Deveríamos somar a este resultado não somente a falta de estímulo, o desinteresse que vem de nossas famílias, a desmontagem do sistema de casta que leva a um filho se espelhar em seus pais e continuar os negócios da família, mas também a toda uma base emocional descontrolada, iludível facilmente com um jogo de palavras “místicas”. Esse belo jogo que “diz que sabe, mas não pode revelar”, tem sido pra mim, parte do esfacelamento de nossa sociedade, tal como um vírus que nos induz ao erro e obstaculiza ainda mais o acerto.

Vejamos a equação amor e rigor. O amor sempre deve estar lá, no princípio que nos traga a quem nós somos com carinho. Mas o rigor que assusta as pessoas está relacionado a um respeito muito importante sobre quem somos diante de alguém profundamente desconhecido. Por isso rezar nos ajuda a preparar gesto de amor para que possamos confiar cada vez em algo desconhecido, em um caminho de difícil acesso e, entretanto, caminho que Deus nos colocou ali como a mesma proporção de amor e rigor. Sem ambos a desconfiança não vem e as seitas se sentem no lugar de nos invadirem sem piedade.

Referências:

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Oliveira Santos; Ambrósio de Pina. São Paulo, Editora Nova Cultural, 1999.

FLORES-MENDOZA, Carmen et al. Considerations about IQ and human capital in Brazil.Temas psicol., Ribeirão Preto, v. 20, n. 1, p. 133-154, jun.  2012.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2012000100011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 31 ago.  2022.

GOGH, Vincent Van. Cartas a Théo. Tradução de Pierre Ruprecht. Porto Alegre: L&PM, 2010.

SEGAL, Hanna. Introdução à obra de Melanie Klein. Tradução de Júliu Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 


[i] Psicólogo clínico (PUCRS). Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected] .

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