
O presente artigo se propõe a analisar – a partir de diversos escritos kantianos -, sua crítica da metafísica bem como o seu sistema de dogmática filosófica a partir da análise da epistemologia através do que ele denomina lógica transcendental. O conceito de Aufklärung, ou, o Esclarecimento, é a condição essencial para a adquirir o uso da razão individual, saindo assim da menoridade. Além da investigação da faculdade de conhecer, Kant discute o papel do juízo e da crítica no sentido político bem como do uso público e privado da razão.
Eliseu Cidade
O presente trabalho objetiva explorar as bases da filosofia kantiana a partir da análise de alguns dos seus escritos, como por exemplo, os Prolegômenos, Crítica da Razão Pura e seu texto sobre o esclarecimento. Além disso, serão utilizados como materiais de apoio, alguns textos acadêmicos relativos ao pensamento do filósofo que serão coadjuvantes no processo da produção textual que se segue. A propósito, a abordagem de Immanuel Kant terá como recortes seu pensamento acerca da metafísica dogmática, e, posteriormente, versará sobre sua contribuição para os campos da epistemologia e política que contribuíram sobremaneira para a filosofia moderna intitulada de “revolução copernicana” da filosofia.
Ao adentrar na pretensa elaboração de Kant sobre a metafísica, urge ressaltar sua tentativa revisionista da mesma em seu âmago. No texto dos prolegômenos, a raiz, a fundamentação, a raison d’être da metafísica é colocada no centro da discussão pelo autor. O questionamento basilar do encadeamento científico é visto como algo natural no desenvolvimento das ciências. É consequência da interrogação do intelecto, que coloca as verdades antes aceitas, revistas à luz da razão humana. O papel da dúvida ressurge como critério de validação ou refutabilidade frente à realidade concedida pelo espírito humano e para isso, antes de sua atestação, determinada ciência passa a ser vista como possibilidade.
Na tentativa de auferir uma metodologia crítica para sua metafísica, Kant salienta a inexistência prévia de metafísica. Seu projeto reside, evidentemente, no surgimento de uma metafísica nunca vista antes. David Hume apresenta sua visão metafísica pautando-se na lógica das causas e dos efeitos. Esse conceito do desencadeamento necessário de fenômenos provocados pelos efeitos causais, desenvolvido por Hume, demonstra a impossibilidade de pensamento a priori e Kant mostra que a relação entre os conceitos que se sucedem não necessariamente mantém alguma conexão. Assim, a metafísica passa a ser assumida, nos termos de Kant, como hipótese imaginativa que está desvinculada do exercício pleno do ratio, ou seja, da razão humana.
Esse conhecimento apriorístico estaria em consonância com o pensamento de ser a experiência desnecessária para a obtenção da realidade, uma vez que a verdade seria anterior a já enunciada experiência, e poderia ser alcançada de maneira independente. A dimensão originária apresenta força imperativa da admissibilidade das ideias subsequentes. Kant alude a contribuição filosófica de Hume para o desencadear de seu sono dogmático, essencial para a sua compreensão de que o entendimento a priori da relação das coisas é resultado do entendimento puro, e não, como afirmava Hume, advindo da experiência. Kant enuncia sua árdua tarefa de analisar a metafísica anterior para solucionar seu problema, no entanto, ao mesmo tempo, mostra-se desvencilhando de sua existência, já que a admitia como mera possibilidade.
Outrossim, os Prolegômenos de Kant são uma espécie de iniciação, um prelúdio, em outras palavras, o escopo de seu projeto filosófico a saber. Esse texto objetiva sistematizar os limites e extensões do raciocínio puro. A sua crítica é a conditio sine qua non para qualquer ciência e, nesse sentido, objetiva apresentar a veracidade ou não da metafísica a partir da adoção de uma sistemática rigorosa levada à exaustão. Essa atitude teleológica almeja a descoberta de uma ciência puramente nova, quiçá, nem cogitada, por filósofos e eruditos anteriormente consolidados pela história. Essa ciência, derivada de reflexões morosas e elucubrações detalhadas, seguiria esse rigor sólido de análise, esculpido por Kant nos prolegômenos.
Dando sequência às considerações sobre a dogmática filosófica, sua crítica cirúrgica aos escolásticos se justifica pelo seu projeto dogmático de filosofia, distinto de filosofia dogmática derivada da metafísica. A dogmática, em termos kantianos, seria a possibilidade de assumir algo como verdadeiro e real, antes mesmo de submetê-lo à crítica daquilo que se pode ou não conhecer. O dogma foi capaz de substituir aos poucos a mera especulação, pela observação dos objetos de maneira empírica. Há uma revisão da concepção grega de Parmênides que submete a realidade ao Ser e admite a veracidade das verdades interiores em relação às exteriores. Por essa razão, muitos filósofos anteriores a esse período foram também aclamados como cientistas, tais como, Spinoza, Hume, Descartes, Hobbes e tutti quanti.
Desde seus Prolegômenos, mesmo ainda com seu projeto filosófico in nuce, o que Kant fornece ao debate é justamente novas formas de pensar o real. O instrumento pelo qual se deve utilizar a fim de assegurar a realidade, seria a crítica. O empirismo, por exemplo, traz vantagens sobre os escolásticos e filósofos anteriores, já que permite a análise da realidade de modo mais complexo e assim, obter conclusões mais baseadas em observação. Ao mesmo tempo, Kant assume a filosofia como um saber guiado pela lógica, que é mero pensamento, raciocínio abstrato. Todavia, ao adentrar mais na questão, observa-se que a lógica, como ferramenta do pensamento, é utilizada para a descoberta de novos conhecimentos. Desse modo, a lógica deve vir acompanhada de método que possibilite a faculdade de cogitar objetos e aplicá-los aos objetos da realidade. Esse modelo arquitetado pelo filósofo, seria a “lógica transcendental”. Essa lógica tem por função interagir os objetos intuídos pela sensibilidade aos conceitos já assegurados a priori pelo próprio pensamento humano para emitir juízos.

Em sua obra Crítica da Razão Pura, mais especificamente no prefácio, Kant ressalta a função primeira da lógica, que é, justamente, o estabelecimento de limites e delimitações às ciências. A Lógica está contemplada na demonstração das regras que regem o pensar, manifestadas em seu sentido, a priori ou empírico, para qualquer que seja seu objeto. A experiência seria um saber que necessita da participação do entendimento. Esse, por sua vez, pressupõe ser a priori, ou seja, antes do próprio contato com o objeto externo, devendo se regular a todos os objetos da experiência que se deve concordar. Desse modo, os juízos analíticos, que derivam da observância das leis e princípios que regem a natureza das coisas, seriam a priori na visão kantiana. Assumidamente, o predicado ocupa um locus indissociável do sujeito, pressupõe-se o prévio conhecimento do predicado, que leva a associação, por vias lógicas, ao sujeito. Já os juízos que o filósofo define como sintéticos apresentam natureza distinta. Os juízos sintéticos são conhecimentos novos do sujeito em questão que não são adquiridos com conhecimento prévio, são sujeitos cujos predicados não estão contidos.
Após breve análise de sua metafísica dogmática, é imprescindível abordar a questão epistêmica presente nos escritos kantianos. Ainda na Crítica a Razão Pura, o autor trata das coisas relativas ao conhecimento, de natureza epistêmica. O conhecimento, para Kant, seria advindo da experiência, de forma que os objetos tocam nossos sentidos pessoais e nos geram representações. Portanto, temos um processo de conexão, ruptura ou comparação com impressões sensíveis e a realidade da experiência. Não obstante, Kant atenta para o argumento de que nem todo o conhecimento é derivado da experiência, já que ele se origina de impressões e aquilo que nossa faculdade de conhecer fornece de maneira bastante sui generis. Além disso, Kant assume certos pressupostos racionalistas à medida que assume certos conhecimentos a priori antes da experiência. Por conseguinte, a solução kantiana está na posição intermediária, posto que afirma: “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas”.
O conceito kantiano de idealismo transcendental merece destaque, mesmo que en passant, pois constitui o ponto de sua “revolução copernicana” filosófica. Os empiristas afirmam que o conhecimento está nos objetos concretos, mas Kant afirma que o entendimento puro precede a experiência, fato que volta a reafirmar seu enunciado dito a priori. Assim, entende-se que todo conhecimento é acessado por meio de determinados pressupostos que irão afetar a interpretação teórica daquilo que se observa.
Ainda na temática epistêmica, o texto sobre o Esclarecimento (Aufklärung) atende em muito a análise do projeto kantiano para a capacidade do homem de conhecer. O Esclarecimento é definido por Kant como a saída do homem de sua menoridade, ou seja, de uma posição anterior durante sua existência, que seria de sua própria responsabilidade. O homem, na menoridade, é guiado pelo entendimento alheio e para sair de tal condição, necessita de coragem para pensar por si mesmo, é o lema Sapere Aude. Poucos são aqueles que conseguem se desvencilhar da menoridade e por seu esforço pessoal alcançar a iluminação. Não raro, fórmulas e preceitos engessam a faculdade do pensar, resultando, em última instância, na falta de liberdade.
Na visão política, Kant ressalta a importância do uso público da razão, já que seria útil a partir do momento que auxilia a difusão do esclarecimento entre os homens a partir do uso da própria razão. O uso privado da mesma atrapalha em muito o progresso do esclarecimento, devido a sua limitação entre os homens. Ademais, o uso privado da razão é de grande valia para os encargos públicos, uma vez que os homens dependem de seu esclarecimento para cumprir os objetivos demandados pelo poder do Estado a fim de cumprir as normas e obrigações que cabem ao cargo ocupado. Assim, o uso privado da razão, em sua manifestação, não é livre, visto que é o raciocínio de outros, hierarquicamente superiores no aparato burocrático do Estado.
O Esclarecimento do homem, segundo Kant, não se encontra somente em sua autonomia de raciocínio, seu modo de tecer ideias e elaborar argumentos baseados em seus julgamentos próprios. Ele se propaga além da esfera filosófica, pois envolve, de igual maneira, as questões relativas à religiões, artes e ciências. A menoridade é algo extremamente desonroso para o homem, consiste em fator limitador não só de suas críticas e exercício da liberdade, mas de sua própria existência no espaço e no tempo. Dessarte, o ser humano possui vocação inata ao pensamento livre, estágio de não temer as sombras, como ressalta o autor. O agir livremente é uma derivação do pensar livremente e tais atributos são inerentes para a dignidade do homem.
Ao afirmar sobre o estado de menoridade, Kant assegura que esses indivíduos, ainda não chegados ao estado de iluminação, não fazem uso do juízo individual e da capacidade crítica e de raciocínio. Portanto, seriam aqueles que se guiam pela razão dos outros, estão subordinados à autoridade racional dos demais, sem portanto, apresentar qualquer indício de poder decisório do ser, constituindo-se em erros da própria consciência e do entendimento. Assim, o uso da razão teria conexão com a autoridade, expressa pelo poder de quem a utiliza e, em última instância, da vontade, dado que para ser usada, necessita de reação diante daquilo que se apresenta diante dos humanos, seria a ação norteadora de aceitações e refutações, por assim dizer.
O momento divisor de águas para a saída de sua condição embrutecida, desumanizada e pueril da menoridade, seria, justamente, a iluminação, a ilustração, a dita Aufklärung. A saída do homem de sua menoridade, não é meramente o pleno exercício mental da razão, mas também uma decisão de vida que requer coragem e não é um processo simples para todas as pessoas. É preciso ousar para atingir a atividade do pensar por si, ainda que seja um ato coletivo entre os homens, visto por um viés mais sociológico, é evidentemente, um ato feito pelo sujeito, em seu sentido psicológico, da mais alta virtuosidade. Esse processo é derivado da manifestação da vontade humana.
A liberdade de consciência seria consequência dessa interação entre o uso público e privado da razão. A razão deve ser livre quanto ao seu uso público, todavia subordinada, quando em seu sentido privado. Como já debatido, o uso privado se enquadra nos serviços públicos prestados à nação, por exemplo. Nesse caso, a aplicabilidade de regras e princípios regentes das normas estatais devem ser seguidos para atingir seus próprios fins, portanto, nesse caso específico a razão está subordinada. O uso da razão deve estar adequado às situações que a exigem. Já o uso público da razão está conectado quando se pensa o homem como parte de uma comunidade universal fora de tais estruturas que influenciam diretamente no exercício pessoal da razão.
Quando se trata da questão pertinente à crítica, Kant afirma que após o estado em que toda a humanidade passar a fazer o uso público da razão, após a superação de subserviência ao intelecto alheio e observância de seu próprio raciocínio sem a presença de determinada autoridade, tem-se o momento crucial para a crítica. A crítica seria o instrumento utilizado a fim de se verificar as condições pelas quais se pode conhecer através da razão. Por definição, entende-se por crítica, o processo de avaliar em seus pormenores algo, podendo ser uma produção artística, intelectual, cultural, dentre outras. Ela se baseia em critérios que emanam do próprio ser que, razoavelmente, buscam emitir julgamentos que incluem tanto apreciações ou refutações sobre algo.
Para Kant, a crítica não deve ser uma atividade desacompanhada, que se emite de maneira isolada. O autor afirma a importância de se ter a presença de outros homens para o bom uso da faculdade de julgar e emitir juízos através da crítica. A crítica deve se dar com o entendimento de indivíduos que consigam entender a realidade e possuam capacidade de debater aquilo que se propõe. Em relação ao debate público proposto pelo filósofo, a comparação com os juízos alheios é de extrema importância na busca por evitar prejuízos ou falhas de julgamento e também, alcançar unanimidade. Portanto, a crítica apresenta papel fundamental na sociedade, uma vez que ela é indispensável para a emanação dos acordos mútuos e a própria apreciação comunitária da realidade comum aos homens.
As medidas revisionistas dos juízos são essenciais, pois a crítica não possui um critério resoluto e fechado em si mesmo, mas deve ser contemplada a fim de aprimorar os juízos dos homens com o tempo histórico. É de suma validade examinar pontos negligenciados ou ignorados previamente, a partir da perspectiva crítica, que se destaca em determinada época. Portanto, em sentido puramente político, Kant ressalta a revisão de políticas públicas, legislações vigentes e tradições. A crítica constitui recurso inesgotável à medida que sua utilização não perece diante dos fatos, mas se refina a cada análise. Do contrário, se a crítica fosse considerada uma verdade imutável, não teria razão de ser tal, portanto, seria um dogma. Kant afirma que é refutável a dogmática para os elementos que estão além da nossa experiência. Ele traz uma reinterpretação da dogmática à luz da metafísica utilizada pelos pensadores anteriores que se baseavam na razão para chegar a verdades que não poderiam ser concedidas pela experiência. Desse modo, a crítica é utilizada a fim de redirecionar saberes teóricos com o tempo.
O governante é aquele que se beneficia dos juízos concedidos pelos cidadãos, é crucial a autoridade estar disposta a colocar suas ações para serem debatidas pela comunidade, ou seja, seus próprios súditos. Essa condução estatal guiada pela crítica dos súditos é importante a fim de se obter um governo pautado na razão e não em interesses particulares de estadistas. A partir dessas reflexões que o autor confirma sua tese da liberdade de pensar publicamente, sendo o pressuposto real da emancipação dos homens e povos. Assim, verifica-se a atual importância de Kant na compreensão da opinião pública nos processos de aprimoramento e desenvolvimento das democracias contemporâneas.
Em síntese, o presente trabalho buscou atentar para alguns conceitos e termos inerentes à filosofia de Kant através do acesso a trechos de suas obras e materiais acadêmicos auxiliares. Nesse sentido, o foco esteve sobre a questão metafísica desenvolvida nos Prolegômenos em que o autor propõe o surgimento de uma nova ciência da metafísica à luz de novas conceituações e análise de filosofias que antecedem seu período filosófico. No campo epistêmico, foram analisadas suas contribuições para as faculdades de conhecer, juízos bem como o papel que a crítica exerce nesse processo. Em última instância, a análise política de Kant enuncia a função desempenhada pelo uso público e privado da razão e a participação dos juízos no processo de desenvolvimento das democracias, a razão como mantenedora das instituições governamentais que surgiriam graças à saída do homem de sua menoridade e daquilo que impede o uso próprio de suas faculdades de raciocínio intrínsecas aos homens.
REFERÊNCIAS
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