
Talvez assim o judaísmo tenha se dado conta de que, em relação às ideias, não tinha nada a se defender contra o mundo. Não que suas ideias fossem inferiores ou menos verdadeiras do que a civilização circundante, mas porque, incorporada ao patrimônio comum da humanidade, a ideia não lhe pertence mais. Em última análise, a ideia não tem origem. Daquilo que se tem, é o menos privado; um mundo onde se comunica por meio de ideias é um mundo de iguais.
Emmanuel Levinas[i]
Tradução de Estevan de Negreiros Ketzer[ii]
I
Se o judaísmo tivesse apenas a “Questão Judaica” para resolvê-la, teria muito a fazer, mas seria algo insignificante. É claro que se pode questionar se essa questão, mesmo em si mesma, não ultrapassa a busca por uma vida atraente ou suportável, estendendo-se a um apocalipse e a uma escatologia. Mas, colocada em termos exclusivamente políticos e sociais — e esta é a regra para reuniões públicas, na imprensa e até mesmo na literatura —, a questão se refere ao direito de viver, sem buscar uma razão de ser. Essa retórica que invoca o direito à existência de um indivíduo ou de um povo reduz ou recoloca o acontecimento judaico na categoria de um fato puramente natural. Por mais que se espere uma contribuição cultural e moral para o mundo a partir da independência política do povo de Israel, ainda assim não se espera mais do que mais um tipo de pintura ou literatura. Mas ser judeu não é apenas buscar refúgio no mundo, mas sentir para si um lugar na economia do ser.
Uma retórica diferente proclamou este lugar durante um século. A missão de Israel, a mensagem de Israel, seu monoteísmo e seu Decálogo tornaram-se lugares-comuns da apologética e da homilia das sinagogas. Dessa forma, o judaísmo exaltou a memória dos serviços prestados. Congratulou-se por redescobrir no mundo cristão ou liberal a colheita de antigas semeaduras. Justificou sua sobrevivência pela necessidade de zelar pelo amadurecimento dessas sementes semeadas. A futilidade desse papel, entre povos cristãos e democráticos que atingiram a maioridade, é fácil de demonstrar. É um papel que somente os santos poderiam ter assumido. Mas os judeus não são nem melhores nem piores do que os outros. Reivindicar uma mensagem que já caiu em domínio público é uma ambição negada por todo o impulso que, durante cento e cinquenta anos, levou o judaísmo à assimilação e no qual a religião, cada vez mais encolhida, se limita a um culto ancestral incolor. Nisso, há uma confissão da atração irresistível exercida sobre supostos missionários pelo próprio mundo onde deveriam pregar.
Talvez assim o judaísmo tenha se dado conta de que, em relação às ideias, não tinha nada a se defender contra o mundo. Não que suas ideias fossem inferiores ou menos verdadeiras do que a civilização circundante, mas porque, incorporada ao patrimônio comum da humanidade, a ideia não lhe pertence mais. Em última análise, a ideia não tem origem. Daquilo que se tem, é o menos privado; um mundo onde se comunica por meio de ideias é um mundo de iguais.
De fato, ao longo de toda a sua história, e enquanto o judaísmo permaneceu uma realidade viva, nunca fez um balanço de si mesmo, nunca enumerou as ideias contidas em sua herança. Colocou seu trabalho espiritual em sua existência, em vez de sua pregação.
II
Mas para qual tipo de existência tende a assimilação? Pode-se caracterizá-la como o simples desejo de não se fazer visível, de participar da vida das nações? É redutível a um fenômeno sociológico geral em que uma minoria se dissolve em uma maioria que a engloba e a fascina com sua força e o próprio valor de ser maioria? Talvez. Mas é legítimo retornar a causalidade sociológica ao seu significado espiritual. Um estudo histórico – que não empreenderemos aqui – pode mostrar, e isso acaba de ser feito brilhantemente pelo estudioso palestino Gershom G. Scholem[iii], como o próprio desenvolvimento do misticismo judaico no século XVII preparou o caminho para a ideia de emancipação e de fusão com as nações, e como, consequentemente, o movimento de assimilação foi, acima de tudo, um momento no pensamento religioso judaico.
Nós gostaríamos de tentar algo diferente: caracterizar o significado ontológico dessa existência do mundo não judaico ao qual a assimilação acedeu. É difícil conseguir isso em poucas linhas. O mundo moderno é uma noção infinitamente vasta e infinitamente variada. É cristão? É liberal? É posto em movimento por uma economia, uma política ou uma religião? Essas noções diferentes não estão separadas por um abismo? E, no entanto, existe uma espécie de afinidade entre todas as manifestações não religiosas deste mundo, e há uma afinidade entre estas e o cristianismo que continua sendo sua religião.
Talvez a característica mais marcante do cristianismo seja sua capacidade de se tornar uma religião de Estado e permanecer como tal após a separação entre Igreja e Estado, de suprir o Estado não apenas com seus feriados legais, mas também com toda a estrutura da vida cotidiana. O cristianismo é reivindicado com seriedade pelo Grande Rei e pelo senhor feudal, que podem ser arrogantes e benevolentes, e pelo camponês humilde e violento; e pelo burguês conservador e empreendedor e pelo trabalhador rebelde e subjugado. Monges que se separam do mundo retornam ao mundo, onde ensinam e agem. A poesia pagã das Geórgicas[iv], de campos com colheitas douradas, continua imperceptível e admiravelmente como a lírica religiosa de um Péguy, um Jammes, um Claudel. Há algo de parentesco entre duas formas de existência que à primeira vista são contraditórias. Uma delas é absolutamente livre, liberta de todas as restrições, tendo à sua disposição todos os recursos de uma vida interior que pode ser infinitamente renovada, incontáveis vezes reiniciada. A outra se desdobra como algo eterno: uma natureza humana definida para sempre, classificada em tipos estáveis em meio a um mundo de ritmos regulares, de formas preexistentes, de leis implacáveis.
Esta é uma situação que, longe de constituir uma simples contradição, aparece como a essência dialética do mundo. Esta situação não resulta de alguma hipocrisia fundamental que se denuncia precipitadamente. Não é prova de que o mundo cristão não seja suficientemente cristão. A vida profana no mundo, desdobrando-se no seio de uma realidade sem pathos[v] – imutável, mas cotidiana – está singularmente próxima de uma existência que se baseia na vida interior: cada um se compreende a partir do presente.
Pois a vida cotidiana é essencialmente um presente: ter que lidar com o imediato, introduzir-se no tempo não percorrendo toda a linha do passado, mas de uma só vez, ignorar a história. E se o imediato se relaciona com um passado, este, por sua vez, assume ares de presente. Sempre limitado, é arbitrariamente separado de um passado mais distante. Estar no presente é tratar o mundo, tratar a nós mesmos, como tratamos as pessoas ao nosso redor, cujas biografias desconhecemos, que, arrancadas de sua família, de seu círculo social, de seu interior, são todas “de um pai desconhecido”, abstratas de alguma forma, mas que, precisamente por isso, são dadas imediatamente. Portanto, a relação com o ser na vida cotidiana é ação. É como a espada de Alexandre, que não desata nós, que não refaz os movimentos de atar ao contrário, mas que corta. Ou é visão – relação instantânea – o fato de recortar um pedaço da realidade; de descrever os limites do horizonte; ignorância do resto, desinteresse pelo todo.
A exploração científica da realidade não rompe com o presente. Não apenas porque floresce na tecnologia e na ação, mas porque a ideia de lei que nos permite recuperar o todo que se perde na percepção nos devolve esse todo como um presente flutuante. Isto é, sem referência à origem que estava implícita, ainda, na ideia de causa. Se o mundo cotidiano é um mundo de aproximações, do imediato, do compromisso, onde se trata sempre de “primeiras coisas”, onde há sempre urgência, o mundo da legalidade científica permanece igualmente sem princípio. Em suma, a base idealista da ciência moderna consiste em substituir a origem pela liberdade, isto é, em última análise, pelo presente, por meio dessa maneira de se destacar do tempo e de sua continuidade, dessa maneira de interromper, de surgir a partir do nada, isto é, de si mesmo.
Mas o cristianismo também é uma existência a partir do presente. É verdade que, em grande medida, é um judaísmo. Mas não deve seu sucesso ao judaísmo. Sua originalidade consistiu em relegar a segundo plano esse Pai ao qual o judeu está ligado como a um passado, e em aceder ao Pai somente por meio do Filho encarnado, isto é, por meio de uma presença, por meio de sua presença entre nós. Não se trata de dogma, mas de emoção. Enquanto a existência judaica se refere a um instante privilegiado do passado e a posição absoluta do judeu dentro do ser lhe é garantida por sua filiação, a existência cristã possui esse ponto privilegiado de ligação em seu próprio presente. Deus é o irmão do cristão, isto é, seu contemporâneo. A obra da salvação é inteiramente interior, não se realiza com a própria entrada no ser, com o nascimento. Ela se encontra na potência de um novo nascimento prometido a cada instante, na conversão, no contato com a graça. Nisso, há uma atenuação da noção de origem em sua forma forte, em benefício da noção do presente. Daí toda a atmosfera pascaliana e kierkegaardiana: a posse da salvação é novamente posta em questão a cada instante, mas precisamente por isso a salvação é dada no frescor e na juventude de seu presente. Ela jamais poderia constituir uma aquisição estabelecida, mas se oferece à conquista. Daí, portanto, em outro contexto, a necessidade de repetir o mistério do Gólgota[vi], para tornar-se novamente seu contemporâneo.
III
Podemos agora dizer de forma mais precisa em que consiste a existência judaica. Sem reivindicar uma teologia. Simplesmente analisando a vontade de ser judaica, que se coloca novamente.
A experiência do hitlerismo não foi sentida por todos como um daqueles retornos periódicos à barbárie que, em suma, está fundamentalmente em ordem, e dos quais nos consolamos recordando o castigo que a atinge. O recurso do antissemitismo hitleriano ao mito racial lembrava ao judeu o quanto seu ser é irremissível. Não poder fugir da própria condição — para muitos, isso era como uma vertigem. É verdade que esta é uma situação humana, e nisso a alma humana talvez seja naturalmente judaica. Mas esta situação, tão desprovida de ansiedade quanto alheia à autossatisfação, é vivida em um halo de afetividade que nem o vocabulário da alegria nem o da dor poderiam transmitir com precisão. Daí o estranho eco do capítulo 53 de Isaías e do Livro de Jó.
Devido a esse desvio inesperado da execração para a exultação, a existência judaica não se encaixa no conjunto de distinções pelas quais Sartre, por exemplo, tenta apreendê-la. Ele talvez esteja certo em contestar a visão de que o judeu tem uma essência própria.
Mas se Sartre permite ao judeu, como a todos os outros mortais, uma existência nua e crua e a liberdade de criar uma essência para si mesmo – seja fugindo, seja assumindo a situação que lhe é imposta –, é legítimo questionar se essa existência nua admite alguma diferenciação. A “facticidade” judaica não é outra senão a “facticidade” de um mundo que se compreende a partir do presente?
Devemos avançar um pouco mais em certas noções que o grande talento de Sartre e o gênio de Heidegger substanciaram na filosofia e na literatura contemporâneas.
Há um movimento nesse pensamento que permite a transformação do compromisso supremo em uma liberdade suprema: não se comprometer ainda seria comprometer-se; não escolher ainda seria escolher. Seria uma tarefa longa demais, mas fácil, demonstrar que o compromisso por não compromisso é psicologicamente distinto do compromisso por decisão explícita e que abster-se é não agir. Seja como for, enfatizemos que, no caso em questão, a visão existencialista visa nada menos do que questionar a própria noção de passividade. De fato, essa visão parte da ideia de um fato tal que atividade e passividade se transformam uma na outra. Este é um ponto de partida natural quando se toma emprestada a noção de fato de um mundo sem origem e simplesmente presente. Um fato em uma existência contingente é ao mesmo tempo passivo, visto que não é desejado, e livre, visto que ninguém o desejou. Separar o fato de sua origem dessa maneira é precisamente habitar o mundo moderno, que em sua ciência abandonou a busca pela origem e em sua religião exalta o presente.
Mas um fato será fato de maneira absolutamente passiva se for uma criatura. O imperativo da criação, que se prolonga no imperativo do mandamento e da lei, inaugura uma passividade total. Fazer a vontade de Deus é, nesse sentido, a condição da facticidade. O fato só é possível se, além de seu poder de se escolher, que anula sua facticidade, tiver sido escolhido, isto é, eleito. O passado que a criação e a eleição introduzem na economia do ser não pode ser confundido com a fatalidade de uma história sem origem absoluta. O tempo infinito atrás de nós, longe de excluir a liberdade do presente, precisamente a torna possível, uma vez que os instantes da série infinita, instantes sem privilégio, prestam-se indiferentemente ao presente, à sua liberdade, à sua juventude, à sua ignorância do passado. Muito pelo contrário, o passado que a criação e a eleição introduzem na economia do ser comunica ao presente a gravidade de um fato, o peso de uma existência e uma espécie de base.
Assim, mesmo que seja verdade que o fato judaico existe nu, indeterminado em sua essência e chamado a escolher uma essência para si segundo a estrutura sartreana, esse fato é, em sua própria facticidade, inconcebível sem eleição. O fato judaico não é assim porque ele estava repleto de história sagrada; ele se refere à história sagrada porque é um fato como este. Em outras palavras, o judeu é a própria entrada do evento religioso no mundo; melhor ainda, ele é a impossibilidade de um mundo sem religião.
Este fato recebe a estrutura de sua pessoalidade da eleição. De fato, há uma contradição na noção de “eu” que define essa noção. O eu é posto como uma simples parte da realidade e, ao mesmo tempo, como dotado do privilégio excepcional da totalidade. O eu é equivalente à totalidade do ser, do qual constitui, no entanto, apenas uma parte. Esta é uma contradição que é superada na emoção da eleição. O significado da eleição, e da revelação entendida como eleição, não se encontra na injustiça de uma preferência. Pressupõe a relação de pai para filhos, na qual cada um é tudo para o pai, sem excluir os outros desse privilégio. Assim, a eleição judaica não é inicialmente vivida como orgulho ou particularismo. É o próprio mistério da pessoalidade. Contra toda tentativa de compreender o ego a partir de uma liberdade, em um mundo sem origem, o judeu oferece aos outros, mas já vive, o esquema emocional da pessoalidade como filho e como eleito.
Em um novo sentido, então, ser criado e ser filho é ser livre. Existir como criatura não é ser esmagado pela responsabilidade adulta. É referir-se, em sua própria facticidade, a alguém que carrega a existência por você, que carrega o pecado, que pode perdoar.
A existência judaica é, portanto, a realização da condição humana como fato, pessoalidade e liberdade. E toda a sua originalidade consiste em romper com um mundo sem origem e simplesmente presente. Ela se situa desde o início em uma dimensão que Sartre não consegue apreender. Não se situa ali por razões teológicas, mas por razões de experiência. Sua teologia explicita sua facticidade.
IV
Concretamente, essa dimensão é vivida por cada judeu em seu sentimento de existir metafisicamente. O menor trapeiro que se considera “libertado”, o intelectual que se considera ateu, ainda respira o mistério de sua criação e de sua eleição – o único mistério que lhe resta em um mundo onde tudo se tornou tão simples quanto a matéria, tão transparente quanto a ciência. Um apego ao judaísmo que permanece quando nenhuma ideia particular o justifica, quando ele vê que a moral de seus pais se tornou moral, seu monoteísmo se tornou monoteísmo, seus salmos se tornaram liturgia.
Assim é o judeu também para os outros. Quando uma conversa se volta repentinamente para um tema judaico, a voz assume tons metafísicos ou se dissipa no sussurro de uma anedota indecente. Como se alguém se aproximasse de uma zona ou setor de prostituição. Há algo além de mistificação ou mau gosto nessa conversa filosófica ou imprópria. O que no ódio se chama orgulho judaico, ou descaramento judaico, ou presunção judaica, decorre meramente da interpretação que o despeito ou a covardia emprestam a esse sentimento metafísico, ou representa as formas degeneradas – é preciso admitir – que esse próprio sentimento assume. Mas mesmo que nessas formas o judaísmo possa dar ocasião a tais reações, esse ódio é distintamente diferente daquele provocado por uma raça perseguida ou por qualquer minoria. Há nele misturado, não sei que tipo, um gosto pela obscenidade, pela imodéstia e pelo infinito. Um gosto pelo sagrado.
Artigo originalmente publicado “Être Juif” para a revista Confluences em 1947 (nº 1517, p. 253-264). Nossa tradução foi realizada do livro: LEVINAS, Emmanuel. Être Juif. Paris: Éditions Payot & Rivages, 2015.
[i] Filósofo francês de origem lituana. Professor da Sorbonne.
[ii] Psicólogo clínico. Doutor em Letras (PUCRS). Email: [email protected].
[iii] SCHOLEM, G. G. (1941). Major trends in Jewish mysticism (1st ed.). Jerusalem: Schocken Publishing House; 2nd ed. New York: Schocken Books Inc., 1946. Traduzido em português: SCHOLEM, Gershom. As grandes correntes da mística judaica. Tradução de Jacó Guinsburg, Dora Ruhamn, Fany Kon, Janete Meiches, Renato Mezan. São Paulo: Perspectiva, 2008 (N. do T.).
[iv] Poema de Virgílio publicado em latim no ano de 29 aec (N. do T.).
[v] Termo escrito em grego com o significado de “paixão, entrega” (N. do T.).
[vi] O Mistério do Gólgota, ou Calvário, refere-se ao local da crucificação de Jesus Cristo, um evento central no cristianismo, o qual é visto como um sacrifício de redenção para a humanidade (N. do T.).
O texto, basicamente, explora a complexidade da identidade judaica e a sua evolução ao longo do tempo, especialmente no contexto histórico e filosófico. Emanuel Levinas propõe que as ideias judaicas, embora valiosas, são parte do patrimônio comum da humanidade e que, em última análise, não têm uma origem única. Ele discute a assimilação judaica como movimento espiritual e cultural e reflete sobre a relação entre o judaísmo e o contexto religioso e sociopolítico mais amplo, salientando a tensão entre a identidade judaica e o mundo não-judeu. Levinas também examina a relação existencialista entre fato e essência, sugerindo que o povo judeu, através de sua história de eleição e criação, impede a concepção de um mundo sem religião. A existência judaica, segundo ele, expressa uma dimensão metafísica única que permanece relevante mesmo em contextos secularizados. O ensaio enfatiza que a experiência de ser judeu não é somente uma questão de sobrevivência cultural ou política, mas uma condição existencial e espiritual profundamente enraizada na eleição e na pessoalidade.
Parabéns ao autor por sua expressão exposta!